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PASSAGENS DA GUERRA REVOLUCIONÁRIA

Che Guevara

Este livro é extenso demais para caber em uma única página. Publicamos aqui a primeira parte e, em breve, disponibilizaremos a segunda. Agradecemos pela compreensão.


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PASSAGENS DA GUERRA REVOLUCIONÁRIA - Che Guevara | CLANDESTINO https://www.jornalclandestino.org/product-page/passagens-da-guerra-revolucion%C3%A1ria-che-guevara




PRIMEIRO ATO


Neste tipo de história, é difícil encontrar o primeiro dos atos. Para facilitar a narração, considerei como tal uma viagem que precisei fazer pelo território africano, na qual tive a oportunidade de conviver com muitos dos líderes dos distintos movimentos de libertação. Particularmente instrutiva foi a visita a Dar es Salaam, residência de uma considerável quantidade de Combatentes da liberdade, que, em sua maioria, vivem confortavelmente instalados em hotéis e fizeram de sua situação um verdadeiro ofício, às vezes lucrativo e quase sempre confortável. Nesse ambiente ocorreram as entrevistas, nas quais, em geral, solicitavam treinamento militar em Cuba e ajuda financeira. Esse era o tema principal de quase todos.

Conheci também os lutadores congoleses. Desde o primeiro encontro, pudemos perceber a extraordinária quantidade de tendências e opiniões diversas que caracterizavam o grupo de dirigentes dessa revolução. Fiz contato com Kabila e seu Estado-Maior; ele me causou uma excelente impressão. Dizia vir do interior do país. Parece que ele vinha de Kigoma, uma cidade tanzaniana à beira do lago Tanganyika, um dos cenários principais dessa história, que servia como ponto de partida para atravessar ao Congo e como um lugar confortável para os revolucionários quando se cansavam da vida azarada nas montanhas situadas do outro lado da faixa de água.

A exposição de Kabila foi clara, concreta e firme; deixou transparecer sua oposição a Gbenyé e a Kanza, e o pouco de acordo que tinha com Soumialot. A tese de Kabila era de que não se poderia falar em um Governo congolês porque Mulele, o iniciador da luta, não havia sido consultado, e, portanto, o presidente só poderia ostentar o título de chefe do Governo do Congo do nordeste. Com essa afirmação, ele também deixava fora da influência de Gbenyé sua própria zona, que era a sudeste e que ele liderava como vice-presidente do partido.

Kabila estava perfeitamente ciente de que o inimigo principal era o imperialismo norte-americano e se mostrava disposto a lutar de forma consequente até o fim contra ele. Suas declarações e o tom de certeza me causaram, como já disse, uma excelente impressão.

Em outro dia, conversamos com Soumialot. Ele era um homem distinto; muito menos desenvolvido politicamente, de muito mais idade, e tinha apenas o instinto primário de ficar em silêncio ou falar muito pouco e com frases vagas, com o que parecia expressar uma grande sutileza de pensamentos. No entanto, por mais esforços que fizesse, não conseguia impressionar como um verdadeiro líder do povo. Ele explicou o que, depois, ele mesmo declarou publicamente: sua participação como ministro da Defesa no Governo de Gbenyé, como foram pegos de surpresa pela ação deste etc. Ele também deixou clara sua oposição a Gbenyé e, especialmente, a Kanza. Não conheci pessoalmente esses dois últimos, exceto por um leve aperto de mãos com Kanza ao nos encontrarmos em um aeroporto.

Conversei bastante com Kabila sobre o que nosso Governo considerava uma falta estratégica de alguns amigos africanos; diante da agressão manifesta das potências imperialistas, era impulsionada a consigna: "O problema do Congo é um problema africano", e agia-se em conformidade. Nosso parecer era que o problema do Congo era um problema do mundo, e Kabila concordou. Ofereci em nome do Governo uns 30 instrutores e as armas que pudéssemos ter, e ele aceitou de bom grado. Recomendou urgência no envio de ambas as coisas, o que também fez Soumialot em outra conversa. Este último destacou a conveniência de que os instrutores fossem negros.

Decidi sondar a disposição dos outros Combatentes da liberdade; pensei em fazer isso em reuniões separadas, conversando amigavelmente com eles, mas devido a um erro do pessoal da embaixada, foi realizada uma reunião "tumultuária" na qual participaram mais de 50 pessoas, representantes de movimentos de 10 ou mais países, cada um dividido em duas ou mais tendências.

Fiz-lhes uma exortação, analisando os pedidos que, quase unanimemente, nos haviam feito em relação à ajuda monetária e ao treinamento de homens; expliquei o custo de treinar um homem em Cuba, a quantidade de dinheiro e tempo que se investe e a pouca segurança de que resultassem em combatentes úteis para o Movimento.

Expliquei nossa experiência na Sierra Maestra, onde conseguimos aproximadamente um soldado a cada cinco recrutas treinados, e um bom soldado a cada cinco soldados; argumentei com a maior veemência possível, diante dos Combatentes da liberdade exasperados, que o dinheiro investido no treinamento seria em grande parte mal aplicado; o soldado não se faz em uma academia e muito menos o soldado revolucionário. Ele se faz na guerra. Pode obter um título em qualquer centro de estudos, mas sua graduação real, como a de um profissional qualquer, é obtida no exercício da profissão, pela sua reação frente aos tiros inimigos, ao sofrimento, à derrota, ao assédio contínuo, às situações adversas. Nunca se poderia prever, pelas afirmações ou pela história anterior do indivíduo, sua reação a todos esses acidentes de luta na guerra popular. Portanto, propus que o treinamento não fosse feito em nossa distante Cuba, mas no Congo próximo, onde se lutava, não contra um fantoche qualquer como Tshombé, mas contra o imperialismo norte-americano que, em sua forma neocolonial, ameaça a recém-adquirida independência de quase todos os povos da África ou ajuda a manter subjugadas as colônias. Falei-lhes da importância fundamental que, em nosso conceito, tinha a luta de libertação do Congo; uma vitória teria alcance e repercussões continentais, e uma derrota também.

A reação foi mais do que fria; embora a maioria tenha se abstido de fazer qualquer comentário, alguns pediram a palavra para me repreender por esse conselho. Afirmavam que seus povos, maltratados e subjugados pelo imperialismo, iriam reclamar que as vítimas não seriam da opressão nesse país, mas de uma guerra para libertar outro estado. Tentei fazer-lhes ver que aqui não se tratava de uma luta dentro de fronteiras, mas de uma guerra contra o senhor comum, onipresente tanto em Moçambique quanto em Malawi, Rodésia ou África do Sul, Congo ou Angola. Ninguém entendeu assim.

Fria e cortesmente se despediram, e ficou claro em nós a impressão de quanto ainda a África tinha que caminhar antes de alcançar uma verdadeira maturidade revolucionária, mas sempre nos restava a alegria de termos encontrado pessoas dispostas a seguir a luta até o fim. Desde aquele momento, estava definida a tarefa de selecionar um grupo de cubanos negros e enviá-los, voluntariamente, é claro, para reforçar a luta no Congo.




SEGUNDO ATO


Este segundo ato começa em Cuba e abrange alguns episódios de significado que não podem ser esclarecidos no momento, como minha designação para liderar as tropas cubanas, apesar de ser branco, a seleção dos futuros combatentes, a preparação da minha saída clandestina, as poucas despedidas possíveis, as cartas explicativas; toda uma série de manobras subterrâneas, que é perigoso, ainda hoje, colocar no papel e que, em todo caso, poderão ser explicadas posteriormente.

Após o agitado e amargo processo das despedidas, que, no melhor dos casos, seriam para muito tempo, restava o último passo, o da viagem clandestina, que também não é oportuno narrar.

Abandonaria quase onze anos de trabalho para a Revolução cu­bana ao lado de Fidel, um lar feliz, até onde pode ser chamado de lar a residência de um revolucionário consagrado à sua tarefa, e um monte de filhos que mal sabiam do meu carinho. Reiniciava-se o ciclo.

Um dia, apareci em Dar es Salaam. Ninguém me reconheceu; nem o próprio embaixador, velho companheiro de luta, invasor conosco e capitão do exército rebelde, conseguiu me identificar quando cheguei.

Nos instalamos em uma pequena propriedade, alugada para nos abrigarmos enquanto esperávamos o grupo de 30 homens que me acompanharia. Até aquele momento éramos três: Moja, coman­dante, negro, oficialmente chefe da tropa; Mbili, companheiro branco, com grande experiência nessas tarefas; e eu ‘Tatú’, que atuava como médico, explicando minha cor pelo fato de falar fran­cês e ter experiência guerrilheira. Nossos nomes significavam: um, dois e três, nessa ordem; para evitarmos problemas, decidimos nos numerar de acordo com a ordem de chegada e usar como nome o número em swahili que nos coubesse.

Não havia comunicado a nenhum congolês minha decisão de lutar em seu país, assim como, agora, minha presença. Na primeira conversa com Kabila, não pude fazer isso porque nada estava decidido, e, após a aprovação do plano, teria sido perigoso que meu projeto fosse conhecido antes de chegar ao destino; era preciso atravessar muito território hostil. Decidi, então, apresentar um fato consumado e agir conforme reagissem à minha presença. Não me escondia o fato de que uma recusa me colocaria em uma posição difícil, pois já não poderia voltar, mas também calculava que para eles seria difícil se negar. Estava fazendo uma chantagem de corpo presente.

Surgiu um problema não previsto: Kabila, como todos os membros do governo revolucionário, estava no Cairo, discutindo os aspectos da unidade da luta e a nova constituição da organização revoluci­onária. Seus segundos, Masengo e Mitudidi, estavam com ele. Res­tava apenas um delegado chamado Chamaleso, que depois tomou o apelido cubano de "Tremendo Punto". Sob sua responsabilidade, Chamaleso aceitou os 30 instrutores que oferecíamos inicialmente, mas, ao comunicar-lhe que tínhamos cerca de 130 homens dispostos a começar a luta, todos negros, também sob sua responsabilidade, os aceitaram. Isso mudava um pouco o aspecto inicial de nossa estratégia, pois pensávamos em atuar com base em 30 cubanos aceitos como instrutores.

Um delegado partiu para o Cairo para comunicar a Kabila e seus companheiros que os cubanos haviam chegado – embora minha presença não fosse mencionada –, enquanto aguardávamos a chegada dos primeiros contingentes.

A tarefa mais urgente era encontrar um barco com bons motores, rápido, que nos permitisse cruzar com relativa segurança os 70 quilômetros de largura que o lago Tanganyika tem no ponto de travessia. Um de nossos bons especialistas havia chegado anteriormente para se encarregar da tarefa dupla de comprar as lanchas e realizar o cruzamento exploratório do lago.

Após uma espera de vários dias em Dar es Salaam, que não era curta mas foi angustiante para mim, que queria estar dentro do Congo o mais rápido possível, na noite de 20 de abril, partiu o primeiro grupo de cubanos, éramos catorze e deixamos quatro que haviam acabado de chegar e para os quais o equipamento ainda não estava comprado. Nos acompanhavam dois motoristas, o delegado congolês – Chamaleso – e um delegado da polícia da Tanzânia para evitar problemas na rota.

Desde o primeiro momento, entrávamos em contato com uma realidade que nos perseguiu durante a luta: a falta de organização. Isso me preocupava, pois nosso trânsito já deveria ter sido detectado pelo imperialismo, que domina todas as companhias aéreas e aeroportos da região, sem contar que em Dar es Salaam deveria chamar a atenção a compra de itens em grandes quantidades, como mochilas, nylons, facas, cobertores etc.

Não só a organização congolesa era ruim; a nossa também. Não havíamos nos preparado adequadamente para enfrentar a tarefa de equipar uma companhia e só havíamos assegurado fuzis e munições para os soldados – todos armados com o FAL belga.

Kabila não havia chegado e anunciava, pelo menos, duas semanas a mais de permanência no Cairo, de modo que, sem ter podido discutir com ele minha participação, tinha que continuar a viagem incógnito e, portanto, não podia me anunciar ao governo da Tanzânia e pedir sua anuência. Para ser sincero, esses contratempos não me desagradavam muito, pois tinha interesse na luta do Congo e temia que minha oferta provocasse reações muito intensas e que algum congolês, ou até o próprio Governo amigo, me pedissem para me abster de entrar na luta.

Na noite de 22 de abril, chegávamos à Kigoma após uma viagem cansativa, mas as lanchas não estavam prontas e tivemos que permanecer ali, esperando até o dia seguinte para a travessia. Imediatamente, o comissionado da região, que nos recebeu e nos acomodou, me deu as queixas dos congoleses. Infelizmente, tudo parecia indicar que muitas de suas avaliações eram justas; os comandantes da zona, que haviam recebido nossa primeira delegação exploratória, estavam agora em Kigoma e pudemos constatar que estavam dando passes do front para irem até lá. Este povoado era um refúgio onde os mais afortunados podiam chegar para viver à margem dos azares da luta. A nefasta influência de Kigoma, seus bordéis, suas bebidas e, sobretudo, seu refúgio seguro, nunca seria suficientemente valorizada pela liderança revolucionária.

Finalmente, na madrugada do dia 24 de abril, tocávamos terra congolesa diante de um grupo de soldados surpresos, com bom armamento de infantaria, que solenemente nos prestaram uma pequena guarda de honra. Passamos a ocupar um barraco desalojado expressamente para nós.

As primeiras informações, obtidas não sei como por nossos agentes de inspeção, nos diziam que o lado congolês era formado por uma planície de 10 milhas de largura e depois surgiam as montanhas; na realidade, o lago é o estreito fundo de um vale preenchido com água e as montanhas, tanto em Kigoma como do outro lado, começam na mesma borda. No lugar chamado Kibamba, sede do Estado-Maior, praticamente a dez passos de desembarcar, começava a subir uma íngreme colina, que para nós se tornava ainda mais difícil devido à falta de treinamento prévio.




PRIMEIRAS IMPRESSÕES


Quase imediatamente após chegar, após a pausa de um breve sono no chão do barraco, entre mochilas e tralhas, começamos a conhecer a realidade congolesa. Percebemos desde os primeiros momentos uma divisão clara: ao lado de pessoas com pouca preparação, na maioria camponeses, notávamos outras com uma cultura superior, com vestimentas diferentes, maior conhecimento do francês; entre um grupo e outro, uma distância total.

As primeiras pessoas com quem fiz conhecimento foram Emmanuel Kasabuvabu e Kiwe, que se apresentaram como oficiais do Estado-Maior Geral; o primeiro como responsável por abastecimentos e armamentos, o segundo, de informações. Eram dois rapazes falantes e expressivos, que rapidamente, pelo que diziam e pelas suas reticências, deram a ideia das divisões existentes no Congo. Mais tarde, Tremendo Punto me convocou para uma pequena reunião, onde não estavam esses companheiros, mas sim outro grupo integrado pelo comandante da base e pelos chefes de algumas brigadas: o da Primeira Brigada, coronel Bidalila, que comandava o front de Uvira; em representação da Segunda Brigada, comandada pelo general maior Moulane, estava o tenente-coronel Lambert, e, representando o que provavelmente seria outra brigada no futuro, segundo se dizia, estava André Ngoja, que lutava na zona de Kabambare. Tremendo Punto, muito entusiasmado, propôs que Moja, chefe oficial de nossas forças, participasse de todas as reuniões e decisões do Estado-Maior com outro cubano que ele mesmo nomearia; observei as caras dos presentes e não pude perceber aprovação à proposta; parecia que Tremendo Punto não gozava de particular simpatia entre os chefes.

A causa da hostilidade entre os grupos residia no fato de que uns homens, mal ou bem, permaneciam algum tempo nos seus fronts, enquanto os outros transitavam apenas entre a base do Congo e Kigoma, sempre em busca de algo que não estava à mão. O caso de Tremendo Punto era mais grave aos olhos dos lutadores, pois, como delegado em Dar es Salaam, só aparecia ocasionalmente.

Continuamos amigavelmente a conversa, ignorando a proposta feita, e fiquei sabendo de algumas coisas novas para mim. O tenente-coronel Lambert, simpático, com ar festivo, me explicou como para eles os aviões não tinham importância, pois possuíam a dawa, medicamento que torna as balas invulneráveis.

–  Me deram várias vezes e as balas caem sem força no chão.

Ele explicou isso entre risos e me senti obrigado a rir da piada, na qual vi uma forma de demonstrar a pouca importância dada ao armamento inimigo. Logo percebi que a coisa era séria e que o protetor mágico era uma das grandes armas de triunfo do exército congolês.

Essa dawa causou bastante dano para a preparação militar. O princípio é o seguinte: um líquido onde estão dissolvidos sucos de ervas e outras substâncias mágicas é aplicado sobre o combatente, ao qual se fazem alguns sinais cabalísticos e, quase sempre, uma mancha de carvão na testa; agora ele está protegido contra todo tipo de armas inimigas – embora isso também dependa do poder do feiticeiro –, mas não pode tocar qualquer objeto que não lhe pertença, não pode tocar mulher e nem sentir medo, sob pena de perder a proteção. A solução para qualquer falha é muito simples; homem morto: homem com medo, homem que roubou ou se deitou com alguma mulher; homem ferido: homem com medo. Como o medo acompanha as ações da guerra, os combatentes achavam muito natural atribuir a ferida ao medo, ou seja, à falta de fé. E os mortos não falam; pode-se culpá-los pelas três faltas.

A crença é tão forte que ninguém vai para o combate sem fazer a dawa. Sempre temi que essa superstição se voltasse contra nós e que nos culpassem pelo fracasso de algum combate em que houvesse muitos mortos. Busquei várias vezes conversar com diferentes responsáveis para tentar fazer um trabalho de convencimento contra isso, mas foi impossível; é reconhecida como um artigo de fé. Os mais politicamente evoluídos dizem que é uma força natural, material, e que, como materialistas dialéticos, reconhecem o poder da dawa, cujos segredos são dominados pelos feiticeiros da selva.

Terminada a conversa com os chefes, entrei em uma entrevista particular com Tremendo Punto e expliquei quem eu era; a reação foi de aniquilamento. Ele repetia as frases "escândalo internacional" e "que ninguém fique sabendo, por favor, que ninguém fique sabendo"; aquilo caiu como um raio em um dia sereno e temi pelas consequências, mas minha identidade não podia continuar oculta por mais tempo se quiséssemos aproveitar a influência que poderia exercer.

Naquela mesma noite, Tremendo Punto partiu com a missão de informar Kabila sobre minha presença no Congo. Junto com ele seguiram os funcionários cubanos que nos haviam acompanhado na travessia e o técnico naval. Este último recebeu a missão de enviar, a curto prazo, dois mecânicos, já que uma das deficiências observadas era a absoluta falta de manutenção nos diversos motores e barcos responsáveis pela travessia do lago.

No dia seguinte, pedi que nos enviassem para o acampamento definitivo, uma base situada a cinco quilômetros do Estado-Maior, no ponto mais alto da serra que, como já disse, nasce na borda do lago. Ali mesmo começaram as delongas; o comandante tinha ido à Kigoma, onde precisava resolver alguns assuntos, e deveríamos esperar o seu retorno. Em vez disso, discutiu-se um plano de treinamento bastante arbitrário, e eu fiz uma contraposição: dividir cem homens em grupos não maiores de vinte e dar-lhes noções de infantaria a todos, com alguma especialização em armamento, engenharia – principalmente para cavar trincheiras –, comunicações e exploração, adequadas à nossa capacidade e aos meios de que dispúnhamos; fazer um programa de quatro a cinco semanas e enviar o grupo para realizar ações, comandado por Mbili. Depois voltariam à base e faríamos uma seleção dos homens que tivessem se mostrado úteis. Enquanto isso, a segunda companhia estaria em treinamento, e, quando retornasse uma do front, iríamos enviar a outra. Dessa forma, pensava eu, poderíamos fazer a necessária seleção simultaneamente ao treinamento dos homens. Explicava, mais uma vez, que devido à forma de recrutamento, deveríamos considerar que dos 100 homens, apenas 20 restariam como possíveis soldados e, desses, apenas dois ou três como futuros quadros dirigentes – no sentido de serem capazes de conduzir uma força armada ao combate.

Como de costume, recebemos uma evasiva como resposta; pediram que o passasse por escrito. Assim foi feito, mas nunca soube do destino do papel. Continuamos insistindo em subir e começar o trabalho na Base Superior. Tínhamos calculado perder uma semana no acondicionamento da base para iniciar o trabalho com certo ritmo e esperávamos apenas a solução do simples problema do translado, mas não podíamos subir porque o comandante não tinha chegado; era necessário esperar porque "estávamos em reuniões". Assim passou um dia e outro. Quando o assunto era novamente colocado em pauta – e eu o fazia com uma persistência realmente irritante –, surgia sempre um novo pretexto que, até hoje, não sei a que atribuir. Talvez fosse real que não quisessem iniciar os trabalhos preparatórios para não desconsiderar a autoridade correspondente, neste caso o comandante da base.

Um dia, dei a ordem a Moja para que fosse com alguns homens até a Base Superior, com o pretexto de treinamento em marchas; assim fez e o grupo retornou à noite, cansado, molhado, congelado. Tratava-se de um lugar muito frio e úmido, com constante neblina e chuva persistente; estavam fazendo uma cabana, segundo diziam, para nós, e isso demoraria alguns dias. Com mútua paciência, eu expunha diversos argumentos para subir: poderíamos contribuir na construção da casa com nosso trabalho, pois viemos com espírito de sacrifício e a ajudar, não para ser uma carga etc. etc., e eles buscavam novos pretextos dilatórios.

Nesta temporada de descanso obrigatório, começaram as saboro­sas conversas com o companheiro Kiwe, o chefe de Informação. Ele é um conversador incontrolável que fala francês a uma veloci­dade quase supersônica. Foi me fazendo, dia após dia, no meio de várias conversas, a análise de diversos personagens importantes da Revolução congolesa. Um dos primeiros a sofrer os embates de sua língua foi Olenga, general que esteve na zona de Stanleyville e no Sudão. Segundo Kiwe, Olenga era pouco mais que soldado, talvez tenente nas tropas de Bidalila; este lhe encarregou de fazer umas excursões para a zona de Stanleyville e depois retornar, mas Olenga iniciou suas ações nos momentos fáceis do fluxo revoluci­onário e, toda vez que tomava uma cidade, se autodenominava um grau. Quando chegou a Stanleyville, já era general. Ali pararam as conquistas do Exército de Libertação, o que não deixou de ser uma solução, pois, se tivesse continuado, não teriam alcançado todos os graus militares para premiar o companheiro Olenga.

Para Kiwe, o verdadeiro chefe militar era o coronel Pascasa – que depois foi morto em uma briga entre os próprios congoleses, no Cairo –; ele era o homem que tinha verdadeiros conhecimentos mi­litares e atitude revolucionária, sendo o representante de Mulele.

Outro dia, começou sutilmente as críticas a Gbenyé, comentando, como quem não quer nada, que ele teve uma atitude pouco clara no começo e agora era presidente; era um revolucionário, sim, mas havia outros revolucionários etc. Com o passar dos dias e o aumento do conhecimento mútuo, foi apresentada a imagem de um Gbenyé mais apto para dirigir um bando de ladrões do que um movimento revolucionário. Não posso confirmar todas as afirma­ções do amigo Kiwe, mas algumas são bem conhecidas, como a história de sua participação na prisão de Gizenga, quando era ministro do Interior no governo de Abdoula. Outras são menos conhecidas, mas, se verdadeiras, lançam uma luz sobre esse sujeito, como as tentativas de assassinar Mitudidi e suas conexões com a embaixada americana no Quênia.

Em outra oportunidade, o que sofreu o castigo da língua de Kiwe foi Gizenga, de quem disse que era um revolucionário, mas um oportunista de esquerda, que queria fazer tudo pela via política, que pensava em fazer uma revolução com o exército e que, inclusive, lhe haviam dado dinheiro para organizar as forças revolucionárias em Léopoldville[2]e ele o havia dedicado a formar um partido político.

As conversas com Kiwe me davam uma certa ideia das características de alguns personagens, mas, sobretudo, me indicavam claramente o quão pouco sólido era aquele agrupamento de revolucionários, ou de descontentes, que formavam o Estado-Maior da Revolução congolesa.

E os dias se passavam. O lago era cruzado por diferentes mensa­geiros com fabulosa capacidade para distorcer qualquer notícia, ou por viajantes que iam à Kigoma com algum passe.

Na minha qualidade de médico – epidemiólogo, o que, com perdão dessa ilustre área da fauna de Esculápio, me dava o direito de não saber nada de medicina –, trabalhei alguns dias no dispensário com Kumi, observando vários fatos alarmantes. Em primeiro lugar, a quantidade de casos de doenças venéreas, provocadas, em grande medida, pelo contágio em Kigoma. Não me preocupava naquele momento o estado sanitário da população ou das prostitutas de Kigoma, mas sim o fato de elas estarem conseguindo contaminar tantas pessoas, resultado das facilidades dadas aos combatentes para atravessar o lago. Também surgiram outras perguntas: quem pagava essas mulheres?, com que dinheiro?, como se gastavam os fundos da Revolução?

Desde os primeiros dias de nossa estadia, tivemos oportunidade de ver alguns casos de intoxicação alcoólica provocada pelo famoso pombe. O pombe é um licor destilado a partir de uma chicha de farinha de milho e de mandioca; ele tem pouco álcool, mas o destilado causa efeitos terríveis. Presumivelmente, não é tanto pela produção alcoólica, mas pela quantidade de impurezas que contém, dados os métodos rudimentares de fabricação. Havia dias em que o pombe inundava aquele acampamento, deixando uma sequência de brigas, intoxicações, diversas faltas à disciplina etc.

O dispensário começava a ser visitado pelos camponeses das redondezas que recebiam, através da Rádio Bemba, a notícia da presença de médicos na região. Nossa provisão de medicamentos era escassa, mas foi salva por uma remessa de medicamentos soviéticos, embora esses não tenham sido enviados com o critério de atender à população civil, como é natural, mas para satisfazer as necessidades de um exército em campanha. E, mesmo assim, não havia uma oferta completa.

Esse fenômeno de falta de balanceamento foi constante durante toda nossa permanência no Congo. Os envios de armas e equipamentos muito valiosos eram feitos de tal forma que sempre chegavam incompletos: canhões e metralhadoras sem munição ou peças vitais, rifles que chegavam com a munição trocada, minas sem detonadores, era uma característica obrigatória do abastecimento vindo de Kigoma.

Na minha opinião, embora eu não tenha conseguido esclarecer o ponto, isso se devia à falta de organização do Exército de Libertação congolesa e à carência de quadros capazes de fazer uma avaliação mínima dos equipamentos que chegavam. O mesmo ocorreu com os medicamentos, mas, além disso, ficaram armazenados sem ordem nem disciplina em ‘La Playa’, onde estavam também as reservas de alimentos e as armas, tudo misturado num alegre e fraternal caos. Várias vezes tentei que nos deixassem organizar o depósito e aconselhei que certos tipos de munição, como granadas de bazuca ou de morteiro, fossem retirados de lá, mas só muito depois conseguimos algo.

De Kigoma chegavam todos os dias notícias contraditórias; algumas, por repetição, acabavam se confirmando. Havia um grupo de cubanos esperando, seja por um bote, um motor ou algo para atravessar; Mitudidi cruzava amanhã, ou depois de amanhã; depois vinha outra notícia dizendo que ele cruzaria no dia seguinte etc.

Nesses dias, também chegaram informações da Conferência do Cairo, trazidas por Emmanuel em um de seus constantes vai-e-vem à Kigoma; os resultados significavam uma vitória completa da linha revolucionária. Kabila ficaria mais um tempo, pois precisava garantir que o que fora acordado fosse cumprido e, depois, iria a outro lugar para operar um cisto, não muito grave, mas incômodo, o que o demoraria um pouco.

Tínhamos que fazer algo para evitar um ócio absoluto. Iniciou-se o estudo do francês, do swahili e também aulas de cultura geral, já que nossa tropa estava bastante carente dessa área. Dado seu caráter e os professores, as aulas não podiam acrescentar muito ao acervo cultural dos companheiros, mas consumiam tempo, e essa era uma função importante. Ainda nossa moral se mantinha alta, embora já começassem as murmurações entre os companheiros que viam os dias passarem infrutíferos, e se aproximava de nós o fantasma das febres que, de uma forma ou de outra, atacaram quase todos, fosse malária ou algum outro tipo de febre tropical. Frequentemente cediam com antimaláricos, mas deixavam sequelas muito incômodas, como cansaço geral, falta de apetite, fraqueza, que contribuíam para desenvolver o incipiente pessimismo da tropa.

Com o passar dos dias, a imagem do caos organizacional se tornava mais clara; participei pessoalmente da distribuição dos medicamentos soviéticos e aquilo parecia um mercado cigano; cada um dos representantes dos grupos armados tirava números, alegava fatos e razões para ter acesso a maiores quantidades de medicamentos. Várias vezes tive choques tentando evitar que levassem alguns medicamentos e equipamentos especializados que se perderiam sem proveito nas frentes, mas todos queriam ter tudo. Começaram a ser mencionados números fabulosos de homens: um anunciou quatro mil, o outro tinha dois mil e assim por diante. Eram inventados; tinham apenas a base objetiva de um grupo de camponeses, que poderiam ser contados nessas quantidades e que conviviam com o exército, fornecendo futuros combatentes, mas o número real de tropas ou homens armados que permaneciam nos acampamentos era extraordinariamente inferior a esses números.

A passividade dos diferentes frontes durante esses dias era quase total, e se atendiam alguns feridos de bala, era resultado de acidentes, já que quase ninguém tinha a mínima ideia do que era uma arma de fogo e, brincando com elas ou por descuido, acabavam disparando.

No dia 8 de maio, finalmente chegaram dezoito cubanos, chefiados por Aly, e também chegou o chefe do Estado-Maior, Mitudidi, que deveria voltar à Kigoma imediatamente para buscar armas e munições. Tivemos com ele uma conversa amigável e ele me deixou uma grata impressão de segurança, seriedade e espírito de organização. Kabila mandou dizer para eu ter muita reserva com minha identidade, de modo que continuei no anonimato, cumprindo minhas aparentes funções de médico e tradutor.

Resolvemos com Mitudidi que no dia seguinte seria o traslado para a Base Superior, o que se cumpriu, ficando para trás Moja, Nane e Taño, atacados pela febre, e o médico Kumi atendendo o hospital. Eu fui enviado como médico e tradutor para a base. Lá havia apenas vinte congoleses entediados, solitários e paralisados. Começou a luta para tentar romper aquela apatia; começamos as aulas de swahili, ministradas pelo comissário político da base, e de francês, a cargo de outro companheiro que estava lá. Além disso, começamos a construção de abrigos, já que o clima era muito frio. Estávamos a 1700 metros sobre o nível do mar e 1000 metros sobre o nível do lago, e nessa área os ventos alísios que vêm do Oceano Índico se condensam e as precipitações são quase constantes. Rapidamente nos demos à tarefa de fazer algumas construções e começaram a florescer os fogões com os quais afastávamos o frio noturno.




PRIMEIRO MÊS


Perto da Base Superior, a umas quatro horas a pé – único meio de transporte possível –, encontra-se um grupo de pequenas aldeias, com no máximo dez casas cada uma, espalhadas em uma vasta área de pastos naturais. O conjunto recebe o nome genérico de Nganja e é habitado por uma tribo proveniente de Ruanda. Apesar de viverem durante várias gerações no Congo, mantêm viva a lembrança de sua terra natal; dedicam-se à vida pastoral, embora não nômade, e fazem da vaca o centro de sua economia; ela serve para fornecer alimentos e também como moeda. Muitas vezes soubemos das desventuras de algum soldado ruandês que não tinha as vacas exigidas pelo pai da mulher de seus sonhos. Porque também a mulher se compra e, mais ainda, ter várias é um sinal de poder econômico, sem contar que ela é quem trabalha na agricultura e no lar.

Essa vizinhança nos permitiria, ao longo da guerra, recorrer de vez em quando à preciosa carne bovina que cura, quase, até a nostalgia.

Os ruandeses e as diferentes tribos congolesas se tratam como inimigos e estão claramente delimitadas as divisórias entre os grupos étnicos, o que torna muito difícil um trabalho político de união regional – fenômeno que se repete ao longo e largo do território congolês.

Nos primeiros dias de minha estadia na Base Superior, rendi tributo ao clima do Congo sob a forma de uma febre bem alta, embora não de longa duração. Nosso médico, Kumi, me visitou subindo do lago, mas o mandei de volta, pois ele era necessário no dispensário e eu me sentia melhor. Após três ou quatro dias, trouxeram um ferido de alguma escaramuça em Front de Forcé; o homem estava sem receber cuidados médicos há seis dias, tinha um braço fraturado pelo tiro e uma abundante secreção. Levantei-me para atendê-lo sob uma garoa fria e, talvez, isso tenha causado a recaída, agora com febre muito alta e delírio, o que tornou necessário o segundo deslocamento de Kumi para a base – que para ele era como subir o Everest – e, segundo testemunhas presentes, pois eu não estava em condições de perceber detalhes, depois de subir a alta e íngreme montanha, seu estado parecia mais grave que o do paciente.

A recaída também não foi muito longa, no máximo uns cinco dias, mas pude perceber os resultados de um extraordinário cansaço que me acometeu, tirando-me até a vontade de comer. Durante o primeiro mês, pelo menos uma dezena de companheiros pagaram o noviciado na terra hostil com essas febres violentas cujas sequelas eram tão incômodas.

A primeira ordem formal que recebemos foi dada por Mitudidi, que já havia chegado de Kigoma, e era para nos prepararmos para participar do ataque a Albertville[3], que seria feito em duas colunas. Supunha-se que teríamos uma participação destacada no combate. A ordem era absurda; não havia preparativos feitos, éramos apenas 30, dos quais 10 estavam doentes ou convalescentes, mas expliquei as instruções para o pessoal e disse-lhes que deveriam estar preparados para ir à luta, embora eu tentasse mudar esses planos ou adiá-los, pelo menos.

No dia 22 de maio, ouvimos uma das tantas notícias loucas que nos desconcertavam: "Vem um ministro cubano subindo a colina; chegou um monte de cubanos mais". Aquilo era tão irracional que ninguém podia acreditar; no entanto, para fazer um pouco de exercício, desci alguns trechos da montanha e, para minha grande surpresa, encontrei Osmany Cienfuegos. Após os abraços e explicações: ele havia vindo para conversar com os governantes da Tanzânia e, de passagem, solicitou permissão para fazer uma visita aos companheiros do Congo; a princípio, recusaram, alegando que depois outros ministros cubanos também iriam querer visitar o centro de operações, mas, no final, cederam e ele estava lá. Fiquei sabendo também que minha presença ainda não era conhecida pelo governo da Tanzânia.

Com Osmany chegavam 17 dos 34 homens que haviam chegado à Kigoma, e, em geral, as notícias que ele trouxe eram muito boas. Pessoalmente, porém, trouxe a mim a notícia mais triste da guerra: em conversas telefônicas desde Buenos Aires, informavam que minha mãe estava muito doente, com um tom que sugeria que isso era apenas um anúncio preparatório. Osmany não conseguiu obter mais informações. Tive que passar um mês na incerteza, esperando os resultados de algo que eu pressentia, mas com a esperança de que houvesse um erro na notícia, até que chegou a confirmação do falecimento de minha mãe. Ela havia querido me ver pouco tempo antes da minha partida, presumivelmente se sentindo doente, mas já não era possível, pois os preparativos da minha viagem estavam muito avançados. Ela não chegou a conhecer uma carta de despedida que deixei para ela e para meu pai em Havana; ela só seria entregue em outubro, quando minha partida fosse oficialmente anunciada.

Mitudidi subiu à Base Superior e discutimos os diferentes aspectos da situação militar. Ele insistia em elaborar um grande plano estratégico para a tomada de Albertville, mas consegui convencê-lo de que era muito ambicioso e, portanto, arriscado, envolver-se agora com Albertville; era mais importante obter um verdadeiro conhecimento de toda a zona de operações e dos meios com que contávamos, pois no Estado-Maior não havia uma imagem clara do que acontecia em cada uma das frentes isoladas. Tudo dependia das informações dos chefes, que, para exigir algo, inflavam os números, e, para se desculparem, culpavam os desastres pela falta de munições ou armas. Resolvemos, em comum acordo, enviar delegações para diferentes pontos a fim de precisar a situação de nossas tropas e do inimigo, bem como a correlação de forças.

Foram organizados quatro grupos encarregados de fazer os estudos pertinentes: Aly, com três companheiros, iria para a zona de Kabimba; Nne, com outros dois, para Front de Forcé; Moja e Paulu para a zona de Baraka, Fizi, Lulimba; Mitudidi e eu iríamos para Uvira. Essa última viagem não se concretizou. Primeiro ocorreram as delongas habituais: falta de botes, falta de gasolina, imprevistos; depois Kabila anunciou sua iminente chegada e tivemos que esperar por ele dia após dia, sem resultado.

Os primeiros relatórios de inspeção de Kabimba e Front de Forcé mostravam que existiam forças realmente armadas e, aparentemente, com disposição para lutar; sem nenhum treinamento nem disciplina no caso de Kabimba, com alguma em Front de Forcé, mas com o mesmo grau de desorganização quanto ao controle de armamentos, vigilância do inimigo, trabalho político etc.

No análise do mês finalizado – maio –, que coincide aproximadamente com o primeiro de nossa estadia – lembre-se que os primeiros chegamos em 24 de abril –, anotei no meu diário de campanha o seguinte:

Até a chegada de Mitudidi foi tempo perdido, depois conseguimos realizar explorações e encontramos boa receptividade às nossas sugestões. Talvez amanhã comece o treinamento sério de um grupo de homens que ele me prometeu. É quase certo que, no decorrer do mês de junho, poderemos mostrar algo entrando em combate.

O maior defeito dos congoleses é que não sabem atirar, e por isso desperdiçam munição; é preciso começar por aí. A disciplina aqui é muito ruim, mas dá a impressão de que no front as coisas mudam, lá os rapazes estão sujeitos a uma disciplina aceitável, embora sempre com uma notável falta de organização.

As tarefas mais importantes são: ensiná-los a atirar, a lutar em emboscadas – verdadeira guerra de guerrilhas – e certas normas militares de organização que nos permitam concentrar todo o poder em um ponto atacado.

Hoje podemos dizer que a aparente maior disciplina das frentes era falsa e os três aspectos em que deveríamos fazer ênfase: o tiro, a técnica de emboscadas e a concentração de unidades para realizar ataques mais importantes, nunca foram alcançados no Congo.

As agrupações tinham um caráter tribal e um critério de guerra de posições; os combatentes ocupavam o que lá se chama de "barreras". Essas barreiras estavam localizadas, em geral, em lugares bem escolhidos do ponto de vista tático, em colinas muito altas e de difícil acesso. Mas os homens faziam vida de acampamento, sem realizar ações nem receber treinamento, confiando na inatividade do exército inimigo e contando para seu abastecimento com os camponeses. Estes tinham que levar-lhes comida e sofriam, ainda, frequentemente vexações e maus-tratos. A característica fundamental do Exército Popular de Libertação era a de ser um exército parasitário: não trabalhava, não treinava, não lutava e exigia da população abastecimento e trabalho, às vezes com dureza extrema. Os camponeses estavam expostos a exações de grupos que desciam dos acampamentos, exigindo algum alimento extra e comendo, em várias oportunidades, as galinhas e alguns manjares de relativo luxo que os camponeses tivessem em reserva.

A comida básica do soldado revolucionário era o bukali, que se prepara da seguinte maneira: se descasca a mandioca e se deixa secar ao sol por alguns dias, depois se moe em um pilão exatamente igual aos pilões de café da nossa Serra; essa farinha, peneirada, é colocada em água fervendo até formar uma massa, e assim é consumida. Com boa vontade, o bukali fornece os carboidratos, mas era farinha de mandioca quase crua e sem sal o que se comia; isso era complementado às vezes com o zombe, folhas de mandioca amassadas e fervidas, temperadas com um pouco de óleo de palma, com a carne de algum animal caçado; havia bastante caça naquela zona, mas não era habitual, mais ocasional comer a carne. Não se podia dizer que os combatentes estavam bem alimentados; do lago recebia-se muito pouco. Mas entre seus maus hábitos, destacava-se que também não eram capazes de marchar até a base para buscar comida. Sobre seus ombros, apenas o fuzil, a cartucheira e seus pertences pessoais, que em geral não passavam de um cobertor.

Depois de um tempo, ao começar a vida em comunidade com este original exército, aprendemos algumas expressões típicas de seu modo de ser. Se a alguém fosse dado algo para carregar, dizia-se: "Mimi hapana motocari", que quer dizer "Eu não sou caminhão"; em alguns casos, quando iam com cubanos: "Mimi hapana cuban", ou seja, "Eu não sou cubano". A comida, assim como as armas e as munições para o front, também deveria ser transportadas pelos camponeses. Está claro que um exército desse tipo só poderia ter justificativa se, como sua contraparte inimiga, de vez em quando lutasse. Como se verá, também não cumpria esse requisito. Se não mudasse a ordem das coisas existentes, a Revolução congolesa estava irremediavelmente condenada ao fracasso devido às suas próprias fraquezas internas.





MORRE UMA ESPERANÇA


Os dias seguintes transcorriam com uma técnica parecida à dos anteriores: jornadas angustiantes, em que o ângulo formado pelas duas colinas que morriam no lago, deixando ver apenas o pedaço de água por elas emoldurado como horizonte, começava a se tornar odiado.

Mitudidi, apesar de sua boa vontade, não encontrava a fórmula para nos fazer trabalhar, provavelmente freado por alguma ordem concreta de Kabila, e aguardava ansiosamente a chegada deste; todos nós aguardávamos com a mesma angústia enquanto os dias passavam, um após o outro, sem mudanças para a tropa expedicionária.

Moja retornou de sua viagem de inspeção à Baraka, Fizi e Lulimba. A impressão que ele trouxe foi realmente desastrosa. Apesar de uma recepção entusiástica da população e muito correta por parte dos companheiros chefes, notaram-se vários sintomas perigosos. O primeiro foi a manifesta hostilidade com que se falava tanto de Kabila e Masengo, como do companheiro Mitudidi; todos eles eram acusados, mais ou menos vagamente, de serem estrangeiros ali, mas, acima de tudo, de serem simples viajantes que nunca estavam onde seu povo os necessitava. Havia bastantes homens armados na zona, mas totalmente ineficazes devido à péssima organização que, pode-se dizer, não só era similar aos outros casos já conhecidos, mas ainda pior. Os chefes passavam o dia bebendo de tal forma que caíam em bebedeiras incríveis, sem se preocupar sequer em ocultá-las da população, pois consideravam um ato natural de “homens”. Devido às facilidades que naquela época existiam no lago para o transporte de materiais essenciais, havia uma quantidade suficiente de gasolina, e as viagens de ida e volta de um lado ao outro do extenso território ocupado por esse setor se sucediam sem que ninguém pudesse adivinhar qual seria a finalidade concreta delas.

A barreira situada em frente a Lulimba estava a cerca de sete quilômetros da população, no alto da montanha, e já fazia tempo que as forças revolucionárias não desciam para atacar, nem faziam o menor reconhecimento da área; toda a atividade se limitava a disparar com um canhão de 75 milímetros sem retrocesso. Sem conhecer as regras de tiro indireto – com esse canhão, só se pode fazer um disparo direto a um quilômetro e meio – e sem saber exatamente a situação do inimigo, dedicavam-se a um gigantesco entretenimento de foguetes com cartuchos de 75 milímetros.

Coloquei Mitudidi a par de tudo isso, e ele manifestou que a impressão dos enviados era real, que Moulane, o chefe daquela zona, um autodenominado general maior, era um anarquista sem qualquer consciência revolucionária e deveria ser substituído. Ele havia sido chamado para falar com ele, mas se recusava a ir, suspeitando que seria preso.

Já que não se podia fazer outra coisa, continuamos insistindo nas expedições exploratórias e enviamos novamente Inne e Nane à frente de pequenos grupos para continuar a inspeção nas zonas de Front de Forcé e Katenga, que pareciam oferecer algumas possibilidades. Também Aly saiu com a missão de explorar Kabimba, a própria área do vilarejo, a estrada de Kabimba a Albertville e buscar algum caminho praticável entre Front de Forcé e Kabimba, mas se viu impotente diante dos obstáculos colocados pelo chefe daquela área.

Todos os dias tínhamos o mesmo cântico matinal: Kabila não chegou hoje, mas amanhã sem falta, ou depois de amanhã...

E continuavam a chegar barcos com uma boa quantidade de armas de excelente qualidade; era realmente lamentável observar como desperdiçavam os recursos dos países amigos, da China e da União Soviética, principalmente, o esforço da Tanzânia, a vida de alguns combatentes e civis para realizar tão pouca coisa.

Mitudidi havia se dedicado a organizar a base, tinha posto em ordem os bêbados, tarefa não muito simples, pois isso significava lidar com noventa ou noventa e cinco por cento da população; ele havia congelado a entrega de armas e munições e, entre outras coisas, exigia que os serventes das armas pesadas, diante dele, fizessem uma demonstração de seus conhecimentos antes de receberem uma nova unidade, o que garantiu, ao menos, que não se entregariam mais. Mas ainda faltava muito para fazer e ele era um só homem; seus segundos ajudavam muito pouco na tarefa.

Nos intimamos bastante. Expliquei que minha maior fraqueza era a falta de contato direto com os combatentes que não falavam francês, e ele me enviou como professor de swahili um de seus jovens ajudantes para que eu pudesse me comunicar diretamente com os congoleses nesse idioma. Era um rapaz inteligente, Ernest Ilunga, que deveria me iniciar no mistério da língua. Começamos com muito entusiasmo as aulas de três horas diárias, mas a verdade é que eu fui o primeiro a reduzir para uma hora o ensino, e não por falta de tempo; era o que me sobrava, infelizmente, mas pela incompatibilidade total entre o meu caráter e as línguas. Havia outro inconveniente que não consegui resolver durante toda minha estadia no Congo; o swahili é uma língua com gramática, bastante desenvolvida e rica, mas naquele país, por suas peculiaridades, as pessoas o falam como sua língua nacional, ao lado da língua materna, o dialeto de sua própria tribo, de modo que o swahili acaba sendo, de certa forma, uma língua de conquistadores ou símbolo de um poder superior. Quase todos os camponeses a usam como segunda língua. Somado isso ao atraso da área, isso fazia com que falassem um idioma extremamente simplificado, um swahili básico, além disso, se adaptavam muito facilmente à nossa meia-língua, pois lhes parecia mais confortável falar assim. Enredado nessas contradições, não falei o swahili gramatical nem o próprio daquela região do Congo durante toda minha estadia lá.

Nesses dias, também fiz conhecimento com Mundandi, o comandante ruandês de Front de Forcé. Ele havia estudado na China e dava uma impressão bastante agradável de seriedade e firmeza, mas, no decorrer da primeira conversa, ele me contou sobre uma batalha na qual causou 35 baixas ao inimigo. Perguntei-lhe quantas armas haviam sido apreendidas como resultado dessas 35 baixas. Ele me respondeu que nenhuma, pois os haviam atacado com bazucas e as armas haviam desaparecido em pedaços minúsculos. Minhas qualidades diplomáticas nunca foram muito grandes, então simplesmente disse a ele que isso era mentira; ele se desculpou, argumentando que não havia estado presente no combate e que fora informado pelos seus subordinados etc., e ali o incidente se encerrou. Mas, como a exageração é uma norma habitual naquela zona, dizer com tanta franqueza que uma mentira é mentira não é o melhor método para estabelecer relações fraternas com ninguém.

No dia 7 de junho, iniciei minha caminhada para a Base Superior após ter consultado com Mitudidi sobre a veracidade dos “amanhãs” de Kabila.

Taticamente, ele me disse que não esperava a chegada de Kabila, considerando também que, naqueles dias, Chu En Lai estava de visita a Dar es Salaam e era lógico que Kabila fosse lá tentar conversar sobre alguns pedidos feitos ao dirigente chinês.

Quando estava subindo a íngreme colina da Base Superior, um mensageiro chegou para nos avisar que Mitudidi havia acabado de se afogar. Seu cadáver ficou três dias submerso e somente no dia 10 foi enterrado, após o lago o ter devolvido à superfície. Graças à presença de dois cubanos que estavam no bote quando o acidente ocorreu e a uma série de conversas e investigações pessoais, pude chegar à seguinte conclusão:

Mitudidi iria para Ruandasi, local onde pretendia transferir o Estado-Maior, situado a apenas três quilômetros da base de Kabimba, mas, devido ao caminho incômodo, ele saiu por água. Soprou um forte vento e havia grandes ondas no lago. Parece que sua queda na água foi acidental, tudo indica isso; a partir daí, uma série de fatos estranhos ocorreram, e não se sabe se devemos atribuí-los diretamente à imbecilidade, à extraordinária superstição – já que o lago está povoado por todo tipo de espíritos – ou a algo mais sério. O fato é que Mitudidi, que nadava um pouco, conseguiu tirar as botas e ficou pedindo socorro por uns dez ou quinze minutos, conforme as afirmações dos diferentes testemunhos. Algumas pessoas pularam para salvá-lo, uma delas também se afogou; o comandante Francois, que estava com ele – nunca soube se caiu ao mesmo tempo ou se saltou para tentar salvá-lo –, também desapareceu. Quando ocorreu o acidente, pararam o motor do bote, um motor fora de borda, com o que ele perdeu toda a manobrabilidade. Depois, o motor foi reiniciado, mas parecia que alguma força mágica não permitia que o bote se aproximasse de onde Mitudidi estava. Finalmente, enquanto ele continuava pedindo socorro, a embarcação foi direcionada para a margem e os companheiros viram-no desaparecer pouco depois.

É tão complicado o esquema de relações humanas entre todos os chefes congoleses que não se sabe o que dizer sobre isso; o fato é que o comandante do bote naquele momento, também comandante do exército, foi mais tarde enviado a outro fronte, e me explicaram que sua transferência se deu devido a uma série de incidentes que esse companheiro teve na base.

Assim, em um acidente estúpido, perdeu a vida o homem que havia implantado o começo de organização naquele caos terrível que era a base de Kabimba. Mitudidi era jovem, mal passava dos trinta anos, havia sido funcionário de Lumumba[4]e lutado com Mulele. Segundo Mitudidi, Mulele o havia enviado para aquela zona em um momento em que não havia nenhuma organização revolucionária atuando ali. Nas frequentes conversas que tivemos, ele me explicava os métodos diametralmente opostos usados por Mulele, a característica totalmente diferente que a luta tinha naquela outra parte do Congo, embora nunca tenha sequer insinuado uma crítica a Kabila ou Masengo, atribuindo todo o desajuste às peculiaridades da região.

Não sei por qual motivo, talvez por questões raciais ou de prestígio anterior, quando Kabila chegou à região, o chefe de Mitudidi passou a ser seu chefe de Estado-Maior. O fato era que a única pessoa com autoridade desaparecia agora no lago. No dia seguinte, já se sabia da notícia nos arredores e Kabila deu sinais de vida com uma pequena nota em que me dizia o seguinte:

Acabei de conhecer o destino do irmão Mitu, assim como de outros irmãos. Você pode ver, isso me fere profundamente. O que me preocupa é a segurança dele; eu quero chegar logo. Pois, para nós, esta triste história é nosso destino. Todos os camaradas com os quais você chegou devem permanecer no local até o meu retorno, a menos que queiram ir para Kabimba ou para Mundandi, em Bendera. Confio em sua firmeza, nós ativaremos tudo para que em uma data precisa possamos deslocar a base. Trate com o camarada Muteba algumas questões, assim como com Bulengai e Kasabi durante minha ausência.

Amizade, Kabila

O camarada Muteba, que estava muito impressionado com a morte de Mitudidi, foi me ver para precisar quais eram nossas ideias sobre tudo o que aconteceu. Eles pensavam em fazer a transferência da base, segundo eu acreditava, por problemas de superstição; não quis fazer objeções, pois me parecia um assunto muito delicado e achei mais oportuno evitar a resposta. Discutimos sobre os problemas mais importantes que nos haviam levado ao Congo; já estávamos chegando a dois meses de estadia ali e ainda não tínhamos feito absolutamente nada. Falei a ele sobre os relatórios que entreguei ao camarada Mitudidi, mas estes desapareceram com ele e, então, pediu que eu fizesse um relatório geral da situação para enviar a Kabila; comecei essa tarefa e escrevi o que segue – devo deixar claro que este texto se desvia um pouco do original, pois meu francês macarrônico me obrigava, em determinado momento, a buscar a palavra que eu conhecia, sacrificando a que eu realmente queria usar. A carta é dirigida ao camarada Muteba e tem caráter confidencial.

Considerações gerais: Dado o curto mês e meio de experiência congolesa, não posso aventurar muitas opiniões. Considero que temos diante de nós um principal perigo: o imperialismo norte-americano.

Desnecessário é fazer uma análise de por que os norte-americanos são um perigo concreto. A Revolução congolesa está em um período de reagrupamento de forças, após as últimas derrotas sofridas. Se os ianques aprenderam a lição de outras revoluções, este é o momento que devem escolher para atacar forte e tomar medidas como a neutralização do lago, ou seja, fazer tudo o que for necessário para fechar nossa principal via de fornecimento de todo tipo. Por outro lado, os acontecimentos mundiais, como a luta no Vietnã e a recente intervenção na República Dominicana, amarram um pouco suas mãos. Por isso, o tempo é um fator fundamental para a consolidação e o desenvolvimento da revolução, o que não pode ser feito senão com duros golpes no inimigo; a passividade é o começo da derrota.

Mas, à mobilização de todas nossas forças e ao ataque das forças inimigas, se opõe nossa própria falta de organização. Isso é percebido em vários aspectos diferentes e concatenados:

1.º A falta de um comando central único com poder real sobre todas as frentes, conferindo o que se chama na linguagem militar de unidade de doutrina – me refiro especificamente a esta zona e não ao Congo em geral.

2.º A carência geral de quadros com nível cultural adequado e fidelidade absoluta à causa revolucionária, o que resulta na proliferação de chefes locais com autoridade própria e liberdade tática e estratégica de ação.

3.º A dispersão de nossas armas pesadas por meio de uma distribuição igualitária, o que deixa a chefia sem reservas, sem contar o mau uso feito dessas armas.

4.º A falta de disciplina nas unidades, contaminadas pelo espírito localista predominante e sem qualquer treinamento prévio.

5.º A incapacidade dos comandantes para mover coordenadamente unidades de certa envergadura.

6.º A carência geral do treinamento mínimo necessário para manusear uma arma de fogo, o que se agrava no caso de armas que exigem preparação combativa especial.

Tudo isso resulta na incapacidade de realizar ações táticas de certa envergadura e, portanto, na paralisação estratégica. São problemas que toda revolução deve enfrentar e que não devem nos assustar; basta tomar medidas sistemáticas para corrigi-los.

Participação dos cubanos: Nossa população negra era a mais explorada e discriminada da população. Sua participação na luta é muito importante, por meio do campesinato oriental, mas este é em sua grande maioria analfabeto.

Como consequência, muito poucas de nossas figuras militares principais ou de quadros intermediários com preparação séria eram negras. Quando nos foi solicitado enviar cubanos negros preferencialmente, buscamos entre os melhores elementos do exército que tivessem alguma experiência combativa, e o resultado é que nosso grupo tem, assim acreditamos, muito bom espírito de combate e conhecimentos precisos da tática no terreno, mas pouca preparação acadêmica.

O exposto é uma introdução à nossa proposta de ação: dadas as características das tropas, nossa participação deve ser principalmente em tarefas combativas ou relacionadas com a luta direta.

Poderíamos fazer isso de duas maneiras:

1.º Fracionando nosso grupo entre as distintas unidades do front como instrutores no manuseio das armas e lutando entre as forças congolesas.

2.º Combatendo em unidades mistas, comandadas inicialmente por cubanos, realizando ações táticas bem definidas e expandindo seu raio de ação por meio do desenvolvimento e formação de quadros de comando congoleses – dado o pequeno número de nossas forças, essas unidades não deveriam ser mais de duas. Manteríamos uma base central de treinamento com instrutores cubanos na medida em que fosse necessário.

Incluímos nesta segunda proposta por razões militares e políticas; militares porque garantiríamos uma direção conforme nossa concepção de luta guerrilheira – que acreditamos ser justa –; políticas porque, com nossos sucessos, poderíamos dissipar a atmosfera criada em torno das tropas estrangeiras com diferentes concepções religiosas, culturais etc., e nos permitiria um melhor controle de nossos elementos. Dispersos, poderiam provocar conflitos devido à falta de compreensão da realidade congolesa, que nosso comando considera estar adquirindo.

Poderíamos realizar alguns trabalhos complementares – e necessários –, como os planos de treinamento das unidades; a contribuição para a formação de um Estado-Maior Geral – o domínio dos serviços e, especialmente, dos armamentos, está fraco –; a organização da saúde pública ou saúde militar; qualquer outro trabalho que nos seja designado.

Nossa avaliação da situação militar. Agora fala-se insistentemente sobre a tomada de Albertville; acreditamos que, neste momento, é uma tarefa superior às nossas forças pelas seguintes razões:

1.º Não fomos capazes de desalojar o inimigo de pontos estratégicos em nosso sistema natural de defesa – estas montanhas.

2.º Não temos experiência suficiente para uma tentativa de grande alcance, como a mobilização de unidades, pelo menos até o nível de batalhão, e sua sincronização com um alto comando das operações.

3.º Não temos equipamento militar suficiente para uma ação dessa magnitude.

Albertville deve cair como resultado de uma ação gradual e tenaz; talvez seja mais adequado dizer que deve ser abandonada pelo inimigo. Primeiro, precisamos diminuir completamente sua moral de combate, que hoje está relativamente em alta, por meio de ataques sistemáticos às suas comunicações e reforços; aniquilar ou forçar a retirada das forças de Kabimba, Front de Forcé, Lulimba etc., por meio dessa tática, combinada com ataques frontais onde a correlação de forças nos favoreça, infiltrações em todas as estradas que conduzem a Albertville com sabotagens e emboscadas frequentes, além de paralisar sua economia; tomar Albertville.

Por razões que ampliarei em outro relatório, depois de conhecer o resultado das explorações, me parece que o ponto mais adequado para iniciar as operações é Katenga.

As razões que posso dar hoje são as seguintes:

1.º Sua guarnição é relativamente pequena.

2.º Acreditamos que podemos organizar emboscadas aos reforços, já que sua linha de abastecimento corre paralela às montanhas.

3.º Sua queda e manutenção em nossas mãos provocará o isolamento de Lulimba, porta de entrada para Kasengo.

Depois desta carta, enviei o relatório sobre o reconhecimento de Katenga, a análise da situação e uma recomendação de ataque. Naquele momento, era relativamente fácil atacar Katenga, pois, pela total falta de atividade de nossas forças, o inimigo praticamente não tinha vigilância na área.





UMA DERROTA


Os substitutos de Mitudidi embarcaram-se para Kigoma e alguns, como o camarada Muteba, receptor da minha carta para Kabila, nunca mais foram vistos durante a guerra.

O caos começou a tomar conta novamente da base, agora com um fervor quase consciente, como querendo aproveitar o tempo perdido durante a intervenção de Mitudidi, sucedendo-se ordens e pedidos sem o menor sentido de racionalidade. A margem do lago ficou cheia de metralhadoras, pedindo-nos cubanos para manuseá-las, o que condenou à inatividade um grupo de camaradas. Dadas as condições de indisciplina predominantes, não se podia esperar que defendêssemos a base de ataques aéreos com atiradores congoleses que não sabiam manusear a arma e não queriam aprender – não as empunharam, salvo exceções honrosas, durante toda a nossa estada no Congo –, fugindo da aviação e não a defendendo ordenadamente. Essas metralhadoras cumpriram um papel, rejeitando a aviação inimiga, já que, tripulada por mercenários, depois de uma ou duas escaramuças, não tinham muito interesse em lutar contra as armas de fogo e se mudavam para atacar e bombardear zonas onde não houvesse defesa antiaérea. Apesar disso, considero que a fixação dessas armas na margem do lago constituiu um desperdício inútil de nossa força de combate, já que o ataque inimigo era ineficaz: quatro "tataguas" T-28 e dois B-26 cumpriam a tarefa.

Seguíamos com as mesmas dificuldades na Base Superior, sem alunos, pois os prometidos por Mitudidi nunca chegaram, vendo representantes de distantes guerrilhas chegarem para levar armas e munições que desperdiçariam, perderiam ou quebrariam sem utilidade alguma, com muitos camaradas atacados pelas febres do Congo. Em meados de junho, chegou o camarada Mundandi; junto com ele, algumas cartas de Kabila. Ele me disse o seguinte, em uma carta datada de 16 desse mês:

Camarada, li e reli o relatório que você enviou ao irmão Muteba para o meu conhecimento. Já lhe disse, camarada, quero começar as emboscadas, o camarada Mundandi falará com você. Permita que uns bons cinquenta cubanos participem no ataque do dia 25 de junho com o posto de combatentes sob a direção de Mundandi. Você é revolucionário, deve suportar todas as dificuldades que há aí, pois de um momento a outro chegarei. Você também pode enviar uma boa dúzia de homens para Kabimba.

Saudações íntimas, Kabila

Como pós-escrito: Eu apreciei o Plano sobre Bendera que Nando me fez ver. Quase o mesmo que nós concebemos, coragem e paciência. Sei que você sofre com a desorganização, mas estamos fazendo tudo para atenuá-la, é o defeito da ausência de dirigentes.

Até logo, Kabila

Começamos a discutir com Mundandi, pois Kabila estava de acordo, segundo suas afirmações, com o plano de ataque que ele havia enviado e que não era sobre Bendera, mas sobre Katenga, que está a alguns quilômetros de lá. Mundandi se mostrou evasivo; ele não tinha um plano concreto, apenas a ordem de atacar no dia 25 de junho. Perguntei por que essa data e ele também não soube responder. Falamos sobre nosso plano de não atacar diretamente Bendera, mas sim o pequeno povoado de Katenga, atraindo os reforços para esse ponto e destruindo-os na estrada, mas ele não dizia sim nem não. Parecia um infeliz a quem foi dada uma tarefa superior às suas forças; algo disso havia, mas também uma grande dose de dissimulação.

Evidentemente, Mundandi e Kabila decidiram atacar Front de Forcé, talvez confiantes de que um ataque surpresa poderia levar a uma grande vitória sobre o exército inimigo. Eu temia pela segurança dos camaradas cubanos e ruandeses que deveriam participar da ação, se partissem para um ataque direto a posições desconhecidas, nas quais havia trincheiras, defesas naturais e armas pesadas. Minha primeira reação foi participar pessoalmente das operações; Kabila tinha especificado que os homens deveriam se colocar sob as ordens de Mundandi, o que rejeitava sutilmente uma das minhas propostas de que os cubanos deveriam liderar as ações táticas em que tropas mistas participassem. Decidi que isso não era o mais importante, pensando que minha autoridade poderia impor soluções adequadas em eventuais discussões, pois Mundandi conhecia minha identidade e parecia me respeitar. Por isso, escrevi uma pequena nota para Kabila dizendo o seguinte:

Obrigado pela sua carta. Posso garantir-lhe que a minha impaciência é a de um homem de ação; não significa nenhuma crítica. Sou capaz de compreender, pois vivi pessoalmente em condições semelhantes.

Espero também pela sua chegada com impaciência, pois considero-o um velho amigo e lhe devo uma explicação. Ao mesmo tempo, devo colocar-me à sua disposição incondicionalmente.

Segundo suas ordens, os cubanos partirão amanhã para Front de Forcé, infelizmente, há muitos doentes e o número será um pouco menor – 40. Em Kabimba há quatro camaradas. À medida que os outros chegarem, enviaremos.

Peço-lhe um favor: permita-me ir a Front de Forcé, sem outro título que o de comissário político de meus camaradas, completamente à disposição do camarada Mundandi. Acabei de falar com ele e ele está de acordo. Acho que isso pode ser útil. Estarei de volta três ou quatro dias depois de receber a sua chamada.

Com saudações,

Tatú

De fato, havia discutido com Mundandi a possibilidade de minha presença e, pelo menos, da boca para fora, estava de acordo, mas ressaltou que eu deveria enviar os homens sem esperar a resposta de Kabila, o que fazia suspeitar que seria negativa.

A resposta chegou alguns dias depois e não foi negativa; seguindo sua característica, foi evasiva. Ainda tive tempo de escrever mais uma carta, pedindo que me dissesse francamente sim ou não, carta que não admitia uma resposta tangencial e que ele simplesmente não respondeu, portanto, não fui a Front de Forcé.

No dia marcado, os homens partiram; não puderam ser os quarenta anunciados, mas sim trinta e seis, mas logo depois enviamos sete homens a mais, totalizando quarenta e três. Logo veio a notícia de que todos estavam bem, mas o ataque foi adiado – Mundandi não havia aparecido por lá –; pediam algum médico para tê-lo por perto, pedido que pudemos atender naquele momento, pois acabara de chegar um grupo de trinta e nove camaradas, dos quais três eram médicos, um cirurgião, um ortopedista e um clínico.

O primeiro relatório de combate dizia o seguinte:

Tatú ou Kumi, às cinco horas de hoje, 29 de junho de 1965, começou o ataque. Vamos bem, parece que Katenga está sendo atacada, para lá vão cinco de nossos camaradas, Nane, chefe do grupo e dois camaradas ruandeses. Pátria ou morte, Moja.

E depois:

São sete e trinta, tudo vai bem, as pessoas estão muito contentes e se comportando bem. Tudo começou na hora marcada, abrimos fogo com um canhão e um morteiro. Depois envio mais detalhes.

Mas simultaneamente a esta nota chegavam notícias alarmantes, de dezenas de mortos, cubanos mortos, gente ferida, o que me fazia pensar que as coisas não estavam bem; antes disso, havia recebido uma mensagem na qual me diziam, pouco antes de saírem:

No dia 29 realizamos a ação, que foi em Front de Forcé; não foi possível convencer o homem, informaremos depois sobre o assunto.

Longas discussões tiveram os camaradas Mbili e Moja para convencer o comandante Mundandi de que não fizesse o ataque da maneira planejada por ele, mas se chocaram contra sua posição firme; alegava ter ordens de Kabila. Depois, Kabila diria que não dera tais ordens.

De Front de Forcé a Front Bendera está situada uma hidroelétrica construída nas margens do rio Kimbi; a captação de água está praticamente nas montanhas dominadas pelos ruandeses; através do vale – pois a montanha desce abruptamente sobre o altiplano da bacia do rio Congo – passam as linhas de eletricidade. A aldeia é dividida em duas partes: uma antiga, anterior à hidroelétrica, e outra mais nova, perto da casa das turbinas, onde há um bairro militar com mais de 80 casas. O rio Kimbi é uma das defesas naturais que possui, e estava convenientemente reforçado com trincheiras que haviam sido superficialmente exploradas antes do ataque. Conta com um campo para aviões pequenos. Calculava-se que poderia haver ali um batalhão de 500 a 700 homens inimigos, e a quatro quilômetros, no entroncamento da estrada para Albertville, existia outro agrupamento formado por tropas especiais e dizia-se que ali estava a Escola de Cadetes ou uma escola de preparação militar.

A única coisa que se conseguiu de Mundandi foi que nos principais pontos de combate fossem colocados chefes cubanos. No esquema anexo pode-se ver aproximadamente a disposição do ataque que seria realizado apenas pelo lado norte, com emboscadas de ambos os lados da estrada de Lulimba a Albertville. O plano era o seguinte:

Um pequeno grupo dirigido por Ishirini atacaria o que chamam de "charriot", a captação de água que alimenta a turbina da hidroelétrica; abaixo, cruzando o rio Kimbi, um grupo de homens liderados pelo tenente Azi deveria atacar as posições fortificadas mais próximas à montanha; no centro, o tenente Azima com um grupo de ruandeses tomaria o aeroporto e avançaria para se unir a Azi; impedindo o movimento a partir de Lulimba, estaria o tenente Mafu com outro grupo, e a posição mais forte, com um canhão de 75 e outras armas pesadas, seria a do tenente Inne, que se emboscaria no acesso de Albertville. O posto de comando ficaria do outro lado do rio Kimbi, nas primeiras encostas das montanhas, onde permaneceriam Moja e Mundandi. Inicialmente, Mundandi tinha planejado ter dois postos de comando, mas foi convencido de que seria melhor unificá-los.

Este plano tinha sérios inconvenientes: Inne teria que marchar para uma área desconhecida, pois não havia sido explorada. Mafu conhecia um pouco o terreno e Azi também. Azima havia feito uma inspeção superficial, observando com binóculos da montanha, mas para o que nós podíamos esperar que acontecesse, a chegada de reforços de Albertville, precisaríamos de uma emboscada bem preparada e, no entanto, íamos instalá-la às cegas. Muito se discutiu com Mundandi sobre a direção do esforço principal para Katenga, e no final conseguiu-se que ele aceitasse enviar uma ordem de ataque ao capitão Salumu, mas, como foi verificado depois, essa ordem foi dada para o dia 30, enquanto Mundandi a fez no dia 29.

Em Front de Forcé, as coisas não ocorreram, nem de longe, tão bem quanto indicavam os primeiros relatórios.

Ishirini deveria ir junto com outros dois cubanos e sete ruandeses com lançadores de foguetes e fuzis, sua função era destruir o "charriot" para silenciar um ninho de metralhadoras e tentar causar algum dano na planta; as luzes se apagaram por alguns minutos, mas isso foi tudo. Os combatentes ruandeses ficaram a cerca de dois quilômetros do local da ação e a realizaram apenas os cubanos. Para dar uma ideia da desordem reinante, transcrevo integralmente o relatório do camarada tenente Azi, encarregado de atacar através do rio Kimbi.

Ao sair para cumprir a missão, coloquei o morteiro, o canhão e a metralhadora antiaérea, além das terrestres, em tiro direto contra o inimigo, à 300 metros, exceto o morteiro que estava à 500 metros, seguindo com 49 ruandeses e cinco cubanos. Após atravessar o rio, que estava à 150 ou 200 metros dos morteiros inimigos, ao atravessar o rio, à cerca de 100 metros da posição inimiga, um tiro escapou de um ruandês, desorganizando as tropas e perdendo cinco deles, restando 44. Organizei o pessoal em três grupos, dois cubanos no meu grupo e os outros dois, um em cada grupo. Às três horas do dia 29, as posições estavam ocupadas, algumas à 25 metros do inimigo e outras mais distantes. Ouviram-se alguns disparos de metralhadoras do inimigo. Às cinco horas, conforme o previsto, abriu-se fogo com o canhão, os morteiros, a metralhadora antiaérea e as terrestres, e logo depois começamos a disparar contra a infantaria. Todas as armas acertaram o alvo; o fogo se manteve ininterrupto até às seis horas, momento em que três feridos apareceram na minha frente. Às sete horas, pelo flanco esquerdo, não ouvia mais os disparos de nossa tropa. Me desloquei um pouco e notei que faltavam muitos ruandeses, então equipei três cubanos com metralhadoras, trocando-lhes o PAL, sendo estes Anchali, Angalia e eu, com um capitão ruandês. Às oito e quarenta e cinco, dois ruandeses estavam mortos; me desloquei para a esquerda à procura de Taño para enviar uma mensagem a Moja, e o pessoal do centro e o grupo da esquerda já haviam se retirado por conta própria, incluindo os oficiais ruandeses; eu tinha 14 ruandeses restantes, e faltava um cubano, que era Taño, que estava no grupo do centro. Enviei o primeiro recado a Moja com Angalia. Às dez horas, restavam-me apenas quatro ruandeses, incluindo um oficial. Aguentei até às doze horas, retirei-me cerca de 25 metros mais atrás, com dois mortos a mais e três feridos. Envie outra mensagem a Moja; aguentei ali até às doze e meia, e depois me retirei para a posição do morteiro e do canhão, atravessando o rio. Antes de me retirar, procurei a posição onde estavam Taño e Sita, mas ambos não apareceram, e mais tarde Sita apareceu. Na posição do morteiro, recebi ordens de Moja para retirar o morteiro, as metralhadoras e o canhão, deixando uma emboscada, caso os guardas atravessassem o rio. Mantivemos essa posição até às seis horas do dia 30 de junho, quando recebi a ordem de retirada total do local. Na emboscada, restávamos apenas cubanos: Anzali, Anchali, Agiri, Abdallah, Almari e Azi, não havia nenhum ruandês. Os ruandeses receberam ordens do posto de comando para ocupar as posições e se retiraram pelo monte em direção ao acampamento. O pessoal ruandês deixou armas, equipamentos e feridos, e o pessoal morto deles não foi recolhido. O camarada Ázima estava sob minhas ordens cumprindo a missão de ocupar a outra parte – margem direita do rio, a uns 500 metros de nossas posições – com Alakre, Arobo e 40 ruandeses, e na noite em que se deslocavam para ocupar as posições, ouviram um ruído, dizendo que era um tembo – elefante –, deixando apenas os dois cubanos no monte, sendo obrigados a voltar ao posto de comando às sete horas do dia 29.

Isso foi aproximadamente o tom da operação, que começou com algum entusiasmo, embora já antes do início do combate houvessem sido perdidos homens em muitas das posições, e depois ocorreu uma desbandada completa.

O camarada Taño, que apareceu sete dias depois, havia sido ferido e seus companheiros o abandonaram; ele se arrastou até a mata, onde foi encontrado por alguns ruandeses que estavam em patrulha. Recuperou-se e voltou à luta.

Para completar a imagem, outro relatório desse mesmo dia:

Podemos informar que em toda a frente, os camaradas ruandeses se retiraram em desbandada, deixando armas, equipamentos, feridos e mortos, os quais foram recolhidos pelos nossos camaradas, como testemunhou o camarada comandante Mundandi.

A missão do camarada Inne, que era a principal, consistia em ocupar a estrada de Albertville a Forcé para evitar a passagem de reforços inimigos, e segundo as informações que temos até o momento, ele não chegou ao local indicado, pois o guia informou que se perdeu, tomando o camarada Inne a errada decisão de atacar a academia militar. De acordo com os relatórios que recebemos dos nossos camaradas ruandeses que participaram da ação, ao iniciar o combate, ficaram apenas os nossos camaradas e alguns ruandeses, que morreram e dois ficaram feridos. Inclusive, ao começar o combate, o camarada Inne pediu que colocassem o canhão, mas os camaradas ruandeses que estavam com o canhão se retiraram com ele em direção ao acampamento, abandonando os projéteis e outras peças, as quais foram recolhidas por alguns dos nossos camaradas.

Ao tomarmos conhecimento da morte do camarada Inne, enviamos o camarada Mbili com vinte homens de reforço para o local, também para verificar a situação real. Ao chegar à emboscada do camarada Mafu, encontrou os camaradas Kasambala, Sultán, Ajili e outros, que pertenciam ao grupo de Inne. O camarada Mbili, ao ver a situação, me informou, pedindo mais homens, para que, se eu achasse conveniente, ele se deslocasse com eles para a estrada, sendo isso às 18:00 horas do dia 29.

Ao tratar desse problema com o comandante Mundandi, ele me disse que os camaradas ruandeses se negavam a ir para a luta, razão pela qual não tínhamos mais homens para enviar à emboscada, já que os camaradas ruandeses que haviam sobrevivido ao grupo de Inne foram para a base, enquanto os vinte ruandeses que o camarada Mbili havia levado também se negavam a lutar, e o pessoal que estava com Mafu estava na mesma situação. Assim, decidimos mandar um recado para o camarada Mbili, pedindo que deixasse quatro ou cinco dos nossos camaradas procurando os cadáveres, enquanto os outros deveriam retornar. Planejou-se a retirada para a noite do dia 30/06/65. Mas às 4:00 horas do dia 30, só restavam na posição do camarada Azi ele e os outros camaradas cubanos. Essa situação foi apresentada ao camarada comandante Mundandi, que decidiu que nos retirássemos para um monte próximo daquela área.

Os outros problemas ocorridos durante a operação com o camarada Mbili serão explicados com mais detalhes por ele.

O nosso posto de comando, onde também estava o comandante Mundandi, estava situado a cerca de 800 metros da frente – à beira do rio –, e nele estavam: Moja, Mbili, Paulu, Saba e Anga.

Deixamos apenas essa quantidade no posto de comando, pois consideramos que as emboscadas deveriam ser reforçadas devido às distâncias existentes. No acampamento da frente ficaram doentes Bahaza e Ananane, que não puderam ir para o combate.

Moja

Para o camarada Inne, todos os problemas começaram quando ele discutiu anteriormente com Mafu, pois queria atuar na emboscada e depois retroceder para atacar o posto inimigo, algo que havia proposto ao comando, mas sem sucesso. Ao iniciar o combate em outros locais, as chances de chegar ao ponto designado eram pequenas, pois o guia, tomado por um medo mortal, não avançou mais e ninguém sabia o caminho. Inne decidiu atacar a posição que estava à sua frente, a academia militar, e foi recebido por um intenso fogo de armas pesadas bem coordenadas. De acordo com testemunhas oculares, pouco tempo depois o próprio Inne foi atingido, deixando sua posição na metralhadora para Kawawa, que foi morto por um morteiro. Outros dois camaradas ficaram levemente feridos e se retiraram. Um explorador enviado logo depois encontrou o cadáver de Thelathini; Anzurume havia desaparecido e foi dado como morto. O combate aconteceu a cerca de 200 metros do inimigo, aparentemente em uma zona bem vigiada por eles. Além dos quatro camaradas cubanos, pelo menos 14 ruandeses morreram, incluindo o irmão do comandante Mundandi; não é possível determinar o número exato devido à contabilidade deficiente dos ruandeses.

Nessa ação desastrosa, uma grande parte da culpa recaiu sobre o comando cubano; o camarada Inne, ao subestimar o inimigo, em um ato de bravura indiscutível e para cumprir o que considerava seu dever moral, embora não fosse sua missão específica, lançou-se em um ataque frontal, morrendo junto com outros camaradas e deixando a via de Albertville aberta para a passagem dos reforços inimigos.

Antes de iniciar o combate, foi ordenado a todos os camaradas, prevendo qualquer contingência, que deixassem documentos e papéis que pudessem permitir a identificação. Isso foi feito, mas o grupo de Inne manteve alguns documentos em suas mochilas, já que estavam calculando deixar suas coisas a uma certa distância e depois entrar em combate na emboscada. No momento do combate, eles estavam com as mochilas, e em algumas das mochilas dos mortos, o inimigo encontrou um diário que indicava a participação cubana no ataque. O que eles não souberam é que houve quatro mortos nesse local, pois os jornais sempre falaram de dois apenas.

A quantidade de armas e equipamentos abandonados na fuga foi muito grande, mas, como não havia uma contabilidade prévia, não se pode calcular. Os feridos foram abandonados à própria sorte, assim como os mortos.

Enquanto isso, em Katenga, o que acontecia?

O ataque foi realizado por 160 homens com um armamento muito inferior ao dos ruandeses, tendo como armas mais eficazes fuzis-metralhadoras e ‘lançacohetes’ de curto alcance. O fator surpresa estava perdido, já que o ataque, por razões que Mundandi nunca explicou, foi ordenado para um dia depois, 30 de junho, quando a aviação inimiga sobrevoava toda a região e os defensores do posto, logicamente, estavam alertas.

Dos 160 homens, 60 desertaram antes do combate, e muitos outros nem chegaram a disparar um único tiro. Na hora marcada, os congoleses abriram fogo contra o quartel, disparando quase sempre para o ar, pois a maioria dos combatentes fechava os olhos e pressionava o gatilho da arma automática até que a munição acabasse. O inimigo respondeu com um fogo preciso de morteiros 60, causando várias baixas e provocando uma desbandada instantânea.

As perdas foram 4 mortos e 14 feridos, esses últimos durante a retirada, pois o faziam de forma desordenada e apavorada. No início, a derrota foi atribuída à ineficácia do curandeiro, que havia dado uma dawa – remédio – ruim; ele tentou se defender culpando as mulheres e o medo, mas ali não havia mulheres, e nem todos – alguns mais sinceros – estavam dispostos a confessar suas fraquezas. O curandeiro teve dificuldades e foi substituído; o maior trabalho do comandante Calixte, chefe daquela força, foi procurar um novo muganga com as características adequadas, percorrendo toda a zona com esse objetivo.

O resultado desse ataque duplo foi uma grande desmoralização tanto entre congoleses quanto entre ruandeses, mas não apenas isso; também entre os cubanos houve grande abatimento. Cada um dos nossos combatentes teve a experiência triste de ver as tropas que iam ao ataque se dissolverem no momento do combate, como se as armas preciosas fossem jogadas por todos os lados para permitir uma fuga mais rápida. Também viram a falta de companheirismo entre eles, abandonando os feridos à sua sorte, o terror que tomou conta dos soldados e a facilidade com que se dispersaram sem seguir ordens. Muitas vezes, quem deu o exemplo foram os oficiais, incluindo os comissários políticos – uma praga do Exército de Libertação, sobre os quais falarei depois. As armas pesadas, geralmente manuseadas por cubanos, foram quase todas salvas; as metralhadoras FM e DP, operadas por ruandeses, foram perdidas em alguma proporção, assim como fuzis e equipamentos de todo tipo.

Nos dias subsequentes ao ataque, uma grande quantidade de soldados desertou ou pediu baixa. Mundandi me escreveu uma longa carta, cheia como sempre de relatos heroicos, onde lamentava a perda de seu irmão, mas anunciava que ele havia morrido depois de aniquilar um caminhão inteiro de soldados – uma invenção completa, já que não houve nenhum caminhão ali. Ele se queixava da perda de vários dos quadros mais firmes de seu grupo e protestava porque o Estado-Maior estava em Kigoma enquanto os homens lutavam e se sacrificavam no Congo. Anunciava, por sua vez, que dois terços das tropas inimigas haviam sido aniquiladas, informação que não poderia ter de nenhuma fonte segura e que, certamente, era falsa. Respondendo ao seu espírito fantasioso, não poderia deixar de fazer essas afirmações enquanto se desculpava por suas próprias fraquezas.

Mundandi, em suma, fazia uma confissão completa de desalento. Tive que lhe enviar uma resposta cheia de conselhos e uma análise da situação, tentando incentivá-lo. Suas cartas não eram nada mais que o anúncio da decomposição que posteriormente envolveria todo o Exército de Libertação e que também afetaria as tropas cubanas.

No dia 30 de junho, quando já havia começado o combate de Front de Forcé, mas, devido à distância, não tínhamos notícias dele, escrevi no meu diário o balanço do mês:

É o balanço mais pobre até o momento. Quando tudo parecia indicar que estávamos iniciando uma nova era, ocorre a morte de Mitudidi e a névoa fica ainda mais densa. O êxodo parà Kigoma continua, Kabila já anunciou sua entrada várias vezes e nunca o fez; a desorganização é total.

O fato positivo é que os homens estão indo para o front, mas o negativo é o anúncio de um ataque que pode ser louco ou totalmente ineficaz, alertando as forças de Tshombé.

Restam várias questões a serem resolvidas: qual será a atitude de Kabila em relação a nós e particularmente a mim? Em uma palavra, ele será o homem para esta situação? Será capaz de compreender a situação e se convencer do caos em que tudo está aqui? Até nos encontrarmos no terreno, não se pode julgar, mas, pelo menos sobre a primeira questão, há sérios indícios de que minha presença não lhe causa a menor simpatia. Falta saber se é medo, ciúmes ou sentimentos feridos pelo método.

Nesses dias, escrevi uma carta a Pablo Rivalta, embaixador na Tanzânia, e, entre outras coisas, dei-lhe instruções para comunicar ao Governo minha presença ali, pedir desculpas pelo método e explicar os inconvenientes que ocorreram devido ao fato de Kabila não estar naquele momento no território, deixando claro que essa decisão foi minha e não do Governo cubano. O portador da carta deveria conversar antes com Kabila em Kigoma para consultar sua opinião. Este, ao saber das minhas intenções, se negou terminantemente a permitir que se dissesse algo, explicando que falaria comigo ao chegar no Congo.





A ESTRELA FUGAZ


Recebi de Kabila, por escrito ou verbalmente, pelo menos quatro mensagens antes de sua chegada. Ele já estava completamente incrédulo, apesar de tantos anúncios, e prestava mais atenção a alguns problemas concretos que me preocupavam mais.

Mundandi escrevia, a cada certo tempo, uma carta mais crítica que a outra, todas descarregando responsabilidades nos congoleses: por culpa da falta de combatividade deles, ele ficaria sem homens para fazer a Revolução em Ruanda, todos os seus quadros morriam, ele só havia pensado em chegar até Albertville e depois se dirigir a Ruanda, mas agora não teria combatentes etc. Tentaram realizar pequenas manobras na frente de Front de Forcé, como patrulhas de exploração, para tentar entender melhor a localização do inimigo e buscar homens feridos que pudessem ter ficado abandonados pelos companheiros, já que ninguém sabia o número exato de desaparecidos, mas tudo foi inútil; os ruandeses se negavam a ir mais longe das primeiras inclinações descendentes das montanhas. Diante de nossas queixas, Mundandi explicava que era uma questão política; seus homens estavam desmotivados pela pouca cooperação congolesa e, por isso, se negavam a atuar.

Era difícil interpretar essas manifestações, pois uma das preocupações dele era se manter afastado das tropas congolesas; ele havia tomado a iniciativa da ação e o fracasso era atribuído a ele. Poderia nos englobar, mas não tinha motivos para envolver os congoleses, com os quais evitava contato.

Seguiam chegando feridos de Katenga e Front de Forcé, sendo transferidos aos poucos pelos camponeses, já que os combatentes também não estavam dispostos a passar pelas dificuldades de carregar um homem numa maca improvisada pelas trilhas das montanhas.

Mais uma vez, tentei falar com os responsáveis. Naquele momento, quem estava à frente era o major Kasali, que não me recebeu por estar com "dor de cabeça", mas enviou o companheiro Kiwe, velho conhecido, para falar comigo e transmitir minhas ideias parà Kigoma.

Não era muito o que eu tinha a dizer:

a – O que fazer com os 40 recém-chegados? Para onde enviá-los?

b – Deixava claro minha insatisfação com a forma como tudo relacionado ao ataque a Bendera foi tratado.

Juntava a isso uma pequena carta para Kabila, explicando que a necessidade de minha presença na frente aumentava a cada dia.

De fato, já eram palpáveis os sintomas de desintegração em nossas tropas. Durante a retirada de Front de Forcé, alguns companheiros manifestaram que com esse tipo de gente não mais lutariam e que se retirariam da luta; havia rumores de que vários iriam formalmente pedir para deixar o Congo. Manter a moral era uma das minhas preocupações principais. A nota que enviei exigia uma resposta urgente, mas ela não chegou. Enviei uma nova carta através do comissário Alfred, fazendo uma análise do porquê da derrota de Front de Forcé e outras observações:

Não houve coordenação nos ataques; o grupo de Front de Forcé atacou no dia 29 e o de Katenga no dia 30, mas Mundandi não era o único culpado, pois no outro front também não foi feito nada[5]. Recomendava a formação de um comando único para todo o front, para tentar unificar as ações, e sugeria que houvesse algum cubano nesse comando. Como havíamos constatado, não se conseguia nem transferir uma caixa de balas de um grupo para o outro devido às disputas. Insistia, mais uma vez, na necessidade de minha presença na frente.

Subi à Base Superior para explicar a derrota aos nossos companheiros e fazer um alerta solene aos recém-chegados.

Minha análise sobre nossas falhas:

Primeiro, subestimamos o inimigo. Pensando que ele tinha as mesmas características do soldado rebelde que enfrentávamos, atacamos de peito aberto, com uma moral de vencedores, achando que os derrotaríamos facilmente, sem calcular que se tratava de gente que havia recebido treinamento militar, que estava em posição e, aparentemente, alerta.

Segundo, falta de disciplina. Fui enfático sobre a necessidade de manter uma disciplina rígida. Por mais doloroso que fosse, era necessário criticar o ato de Inne, heroico, mas prejudicial, pois levou à morte não só três companheiros cubanos, mas também mais de uma dezena de ruandeses.

Terceiro, queda na moral combativa. Era necessário manter a moral alta; insisti muito nesse ponto.

Fiz uma crítica pública ao companheiro Azima, que havia feito algumas declarações derrotistas, e fui explícito sobre o que nos aguardava; não apenas fome, balas e sofrimentos de toda espécie, mas, em algumas situações, até a possibilidade de sermos mortos pelos próprios companheiros, que não tinham noções de tiro. A luta seria muito difícil e longa; fiz esse aviso porque estava disposto, naquele momento, a aceitar que os recém-chegados expressassem suas dúvidas e retornassem, se assim o quisessem; depois, não seria mais possível. O tom foi severo e o alerta claro. Nenhum dos recém-chegados deu sinais de fraqueza, no entanto, para minha surpresa, três dos combatentes que participaram do ataque a Front Bendera, e que estavam de volta trazendo algumas mensagens, sugeriram ir embora; para piorar, um deles pertencia ao nosso partido. Seus nomes: Abdallah, Anzali e Anga.

Repreendi sua atitude e avisei que pediria as mais severas sanções contra eles. Não tinha compromisso com os novos soldados, mas prometi deixá-los ir em um futuro que não especifiquei.

Para minha surpresa e dor, o companheiro Sitaini, que me acompanhava desde a guerra e que foi meu assistente durante seis anos, sugeriu retornar a Cuba; mais doloroso ainda porque usou argumentos mesquinhos, tentando ignorar o que eu havia prevenido a todos sobre a duração da guerra, prevendo três anos de sorte, ou cinco no pior cenário. Esse era um discurso que eu repetia para alertar sobre a duração e a dureza da luta, e Sitaini o conhecia melhor do que ninguém, pois sempre me acompanhava. Neguei sua saída, tentando fazê-lo entender que seria um desprestígio para todos; ele tinha a obrigação de ficar ali devido à sua afinidade comigo. Ele disse que não tinha outro remédio a não ser aceitar, mas o fez de má vontade, e a partir daquele momento estava quase um cadáver. Estava doente, com uma hérnia bilateral, e seu estado piorou até que se tornou justificável ele abandonar a luta.

Meu ânimo estava bastante pessimista nesses dias, mas desci com certa alegria no dia 7 de julho, quando me anunciaram que Kabila havia chegado. Finalmente, o chefe estava no local das operações.

Ele foi cordial, mas evasivo. Falei sobre minha presença ali como uma coisa aceita de fato e me limitei a dar as explicações que havia repetido várias vezes sobre os motivos que me levaram a chegar sem aviso prévio ao território congolês. Propus fazer isso saber ao governo da Tanzânia, mas ele respondeu de forma evasiva, deixando para outra oportunidade. Estavam com ele dois de seus assistentes mais próximos: o companheiro Masengo, agora chefe do Estado-Maior, e o ministro de Relações Exteriores, Nbagira – naquele momento havia dois ministros de Relações Exteriores, pois Gbenyé ainda mantinha o seu, Kanza. Ele estava animado e me perguntou o que eu queria fazer. Claro, repeti minha velha cantilena: queria ir à frente. Minha missão mais importante, onde eu seria mais útil, era formar quadros, e esses se formam, durante a guerra, na linha de frente, não na retaguarda. Ele expressou algumas reservas, pois um homem como eu, útil para a Revolução mundial, deveria se cuidar. Argumentei que não pretendia lutar na linha de frente, mas estar na linha de frente com os soldados, e tinha experiência suficiente para me cuidar; não ia buscar louros de guerra, mas fazer uma tarefa concreta, que considerava a mais útil para ele, pois, como resultado dela, poderiam surgir quadros eficientes e leais.

Ele não respondeu, mas manteve um tom cordial e me anunciou que faríamos uma série de viagens; nos deslocaríamos para o interior para visitar todos os fronts. Como primeira medida, naquela mesma noite partiríamos para Kabimba para visitar a região. Não foi possível ir naquela noite por algum motivo, nem no dia seguinte, e no outro teria que dar um comício aos camponeses para explicar os resultados da Conferência do Cairo e esclarecer algumas dúvidas. Provisoriamente, enviaram Aly com dez homens para realizar alguma ação sem grandes pretensões na área de Kabimba. O tenente Kiswa iria a Uvira para realizar explorações.

O comício aconteceu; foi interessante. Kabila demonstrou ter amplo conhecimento da mentalidade do seu povo; ágil e agradável, explicou em swahili todas as características da reunião do Cairo e os acordos aos quais chegaram. Fez os camponeses falarem, dando respostas rápidas que os satisfaziam. Tudo terminou com uma pequena festinha dançada pelos mesmos participantes ao som de uma música cujo refrão cantado era “Kabila eh, Kabila vai”.

Sua atividade era intensa, parecia querer recuperar o tempo perdido. Propôs organizar a defesa da base e parecia infundir ânimo em todos, mudando a fisionomia daquela zona tão golpeada pela falta de disciplina. Apressadamente, reuniram 60 homens, atribuíram três instrutores cubanos a eles e começaram o trabalho de fazer trincheiras e dar aulas de tiro, enquanto nós elaborávamos um plano de defesa em um pequeno semicírculo que cobria a baía em que estávamos.

No dia 11 de julho, cinco dias depois de sua chegada, Kabila me mandou chamar para me dizer que naquela noite eu deveria partir parà Kigoma. Ele me explicou então que Soumialot estava lá e fez uma severa crítica a esse dirigente, seus erros organizacionais, sua demagogia, sua fraqueza. Segundo Kabila, justamente naquele momento, quando o governo da Tanzânia havia prendido, por sua indicação, um grupo de agentes de Gbenyé, ou diretamente do inimigo, que estavam semeando a discórdia, Soumialot chegou e os libertou. Ele precisava esclarecer definitivamente a divisão de trabalho com Soumialot; havia sido nomeado presidente para se dedicar a viajar, explicar as coisas da Revolução e não causar muitos problemas – já que sua capacidade organizacional era nula –, mas agora era preciso delimitar os campos. Analisou a influência de Soumialot na região, de onde ele era originário, e afirmou que deviam ter uma última explicação, pois suas ações podiam ser prejudiciais para o futuro da Revolução. Ele, no entanto, me disse que a viagem seria de um dia e ele voltaria no dia seguinte.

Durante a conversa, ele revelou que Soumialot já havia retornado para Dar es Salaam, e eu perguntei, com um pouco de ironia, como ele faria para cruzar o lago, se encontrar Soumialot em Dar es Salaam e voltar no dia seguinte, mas ele me respondeu que a partida não estava confirmada; se a notícia fosse verdadeira, teria que ir para Dar es Salaam, mas retornaria imediatamente.

Quando se soube da nova partida de Kabila, o desânimo se espalhou entre congoleses e cubanos. Kumi, o médico, fez uma previsão de que Kabila ficaria sete dias no Congo, e errou por dois; Changa, nosso esforçado "almirante" do lago, enquanto soltava raios e centelhas, dizia: "E para que esse homem trouxe tantas garrafas de uísque, se ia ficar só cinco dias?"

Não transcrevo as exclamações dos congoleses, pois não me diziam diretamente, mas eram no mesmo estilo e as transmitiam aos nossos companheiros.

O descrédito sobre Kabila aumentava, e parecia impossível superar essa situação sem que ele retornasse imediatamente. Tivemos uma última conversa na qual, com a maior elegância possível, insinuei esse problema; falamos também sobre outros tópicos, e ele me perguntou, de forma indireta, qual seria minha posição em caso de ruptura. Eu lhe disse que não havia vindo ao Congo para intervir nas questões internas de política, o que seria nefasto, mas que havia sido enviado pelo Governo para aquela região, e que trataríamos de maneira leal e seríamos leais ao Congo acima de tudo. Se tivesse dúvidas sobre sua posição política, as expressaria francamente a ele antes de qualquer outro. Mas insisti, a guerra se ganha no campo de batalha, não nos bastidores da retaguarda.

Falamos sobre planos futuros e ele me confidenciou que estava fazendo arranjos para transferir a base para o sul, para Kabimba, e que precisavam tomar medidas para evitar que as armas se espalhassem para as zonas dos seus inimigos políticos. Expliquei a ele que, em nossa visão, Katanga era a área chave do Congo, por sua riqueza, e que ali deveriam ser travadas as batalhas mais duras; estávamos de acordo sobre isso, mas não considerávamos que o problema do Congo pudesse ser resolvido de forma tribal ou regional. Era uma questão nacional e deveria ser entendida assim, e mais uma vez insisti, não era tão importante contar com a lealdade de uma tribo específica, mas com a lealdade de quadros revolucionários, e para isso precisávamos criá-los e desenvolvê-los, e, mais uma vez, era necessário ir à frente... – minha cantilena habitual...

Nos despedimos, Kabila saiu; no dia seguinte, o ritmo da base, que havia começado a se ajustar devido à sua presença e dinamismo, diminuiu. Os soldados encarregados de fazer as trincheiras disseram que não iriam trabalhar porque o chefe havia partido; outros, que estavam fazendo o hospital, abandonaram a construção, e tudo voltou ao ritmo tranquilo, bucólico, de uma aldeia provincial distante de todos os perigos, não apenas da guerra, mas até mesmo da vida que tínhamos em nosso Estado-Maior.






VENTOS DO OESTE E BRISAS DO LESTE


Era claro para mim que algo precisava ser feito para tentar parar o processo de decomposição, iniciado, paradoxalmente, pela única ação agressiva que havíamos visto do movimento revolucionário desde nossa chegada. Os acontecimentos se sucediam uns aos outros após as primeiras propostas de retirada da luta feitas por cubanos. Mais dois companheiros tomaram a mesma decisão, Achiri e Hanzini, sendo um deles membro do Partido, e, pouco tempo depois, dois dos médicos recém-chegados repetiram a demanda, ambos também pertencentes ao Partido. Fui menos violento e muito mais ferino com os dois médicos do que com os simples soldados, que reagiam aos acontecimentos de forma mais ou menos primitiva.

A seleção feita em Cuba não era suficientemente boa, isso é evidente, mas é difícil acertar uma boa seleção nas condições atuais da Revolução Cubana. Não se deve basear apenas na história do homem com as armas em mãos, esse é um grande antecedente, mas os anos posteriores de vida confortável também mudam os indivíduos. E ainda, existe a imensa maioria daqueles a quem a revolução fez revolucionários. Ainda é uma incógnita para mim como fazer uma seleção desse tipo antes da prova de fogo, e acredito que todas as medidas devem ser tomadas levando em consideração que ninguém será definitivamente aprovado até sofrer a última seleção no cenário da luta. A realidade era que, ao primeiro revés sério, acompanhado, em defesa deles, por um visível processo de decomposição das forças atuantes, vários companheiros desanimaram e decidiram se retirar de uma luta na qual vinham para morrer, se fosse necessário – voluntariamente, além disso – rodeados de um halo de bravura, espírito de sacrifício, entusiasmo; de invencibilidade, em uma palavra.

Qual o significado da frase: “Até a morte, se necessário!”? A resposta implica na solução de problemas sérios na formação de nossos homens do amanhã.

Entre os ruandeses acontecem coisas incríveis: o segundo de Mundandi é fuzilado, segundo eles; na realidade, assassinado de forma brutal. Milhares de conjecturas se formam em torno desse fato. As menos favoráveis, e isso não quer dizer que sejam verdadeiras, é que havia um problema de mulheres envolvido. O resultado é que o comandante Mitchel, um soldado e um camponês vão para uma vida melhor. A acusação formal contra esse comandante é que ele havia fornecido uma dawa ruim a seus companheiros, sendo culpado pela morte de vinte deles. Não ficou claro nas informações se a dawa havia causado diretamente a morte deles, se não os havia protegido adequadamente, ou se as manobras para sua busca, feitas fora do acampamento, serviram de escudo para uma denúncia por parte dele.

O fato tinha conexões com outros acontecimentos contemporâneos que seria bom desvendar: ocorria após uma derrota grave, da qual o principal culpado era Mundandi, mas o fuzilado era outro; tudo acontecia em momentos em que havia praticamente uma rebelião contra Kabila e o alto comando do Exército de Libertação, já que os ruandeses se negavam terminantemente a fazer qualquer ação de guerra e, não só desertavam, como aqueles que restavam no acampamento manifestavam que só iriam lutar quando vissem os congoleses fazerem o mesmo. Quando Kabila fosse vê-los, lhe dariam a comida sem sal e o chá sem açúcar, como eles tomavam, para que ele entendesse o que eram sacrifícios – claro que isso não era uma ameaça real, pois Kabila não tinha nem a menor ideia de ir por ali.

Um comissário congolês que estava na frente no dia dos acontecimentos tentou intervir e, simplesmente, fecharam suas vias e o obrigaram a sair do acampamento; esse comissário é o mesmo Alfred, de quem já falei, e sua reação se traduziu na seguinte alternativa: ou se fuzilava Mundandi por assassino ou ele se retirava da luta.

Alguns ruandeses que se aproximaram de nós, e que havíamos admitido nas tropas sob a disciplina cubana, foram relegados e tratados com hostilidade por seus compatriotas, o que prenunciava um esfriamento das relações, ou algo pior.

Discuti com Masengo sobre esses problemas, insistindo no que, a meu ver, era fundamental: se quiséssemos ter sucesso na luta, era necessário que nos integrássemos cada vez mais ao Movimento de Libertação e nos tornássemos, para a mentalidade do soldado congolês, um deles; em vez disso, nos havia circunscrito ao círculo dos ruandeses, que não apenas eram estrangeiros, mas mantinham zelosamente sua condição de tal. Nessa companhia estávamos condenados à situação de estrangeiros eternos. Como resposta, Masengo permitiu que alguns de nossos homens fossem ajudar Calixte em suas tarefas, o que foi feito rapidamente.

Moja recebeu instruções para organizar novas ações com os voluntários que conseguisse, mas com a condição de que a tropa fosse absolutamente mista, ou seja, com a mesma quantidade de cubanos e ruandeses. Havíamos discutido com Mbili a forma de realizar a emboscada; meu objetivo era que ele aprendesse a arte mínima desse tipo de guerra e, portanto, a ordem era atacar um único veículo como primeira ação.

Isso seria feito no caminho de Front de Forcé à Albertville, em uma zona previamente explorada por Azi que também tinha condições para que grupos de hostilidade ou uma boa coluna permanecessem ali, pois havia florestas densas nas encostas das montanhas, embora fosse necessário organizar um sistema de suprimentos.

Aly chegava da frente de Kabimba e informava o seguinte: em uma exploração, ele se deparou com quatro policiais que estavam encarregados de queimar os montes próximos, tarefa feita pelo inimigo para aumentar a visibilidade; capturaram três deles e o quarto foi morto. Dos 20 congoleses que estavam com ele no início da ação, 16 fugiram; dos policiais, apenas um estava armado, o morto. Naquela frente, a moral e a preparação combativa das tropas não deixavam espaço para inveja por parte dos colegas de Front de Forcé ou da frente de Calixte.

Agora o chefe da base de Front de Forcé era o capitão Zakarias, que desceria com Mbili para realizar a ação; Mundandi se dirigiu à base do lago cercado por um grande aparato de força. Sua aparência parecia ameaçadora, mas, na realidade, ele estava com medo e queria garantir sua passagem segura parà Kigoma para falar com Kabila. Pouco depois, ele adoeceu – doença real – e tirou o tradicional mês de férias na companhia de alguns de seus fiéis.

Ele me visitou, tratando-me com solicitude, quase com humildade. Primeiro, falamos dos problemas gerais do ataque e depois passamos para o tema específico do assassinato.

Ele explicou a morte desses companheiros da seguinte maneira: o comandante Mitchel, confiando na amizade de alguns vizinhos, havia compartilhado o segredo do ataque; entre esses, havia um espião que comunicou ao exército inimigo. Quando seus companheiros souberam da ação, foi necessário fuzilá-los; ele não estava de acordo, mas ficou em minoria na assembleia realizada, tendo que cumprir a vontade da maioria frente à ameaça dos combatentes de se retirarem da luta.

Analisei com ele alguns aspectos do fato: em primeiro lugar, não deveríamos atribuir a derrota à delação, embora isso pudesse ter acontecido, mas sim à forma como a ação foi realizada, ao erro na concepção do ataque e na sua condução, sem deixar de, claro, assumir as culpas que pudéssemos ter devido à atitude de Inne. Enriquecendo com alguns exemplos de nossa guerra revolucionária, expliquei que era extremamente negativo depender de assembleias de soldados em casos como este e, em última instância, que a democracia revolucionária não se exerce na condução dos exércitos em nenhuma época ou em nenhum lugar do mundo e, onde isso foi tentado, resultou em fracasso. Por fim, o fato de que se pudesse fuzilar um comandante, membro do Exército de Libertação do Congo, sem consultar sequer o Estado-Maior, e muito menos solicitar um julgamento, era um indicativo de grande indisciplina, de falta completa de autoridade central; todos devíamos contribuir para que isso não acontecesse mais.

Quando comentei com Masengo sobre a argumentação fraca de Mundandi, ele me respondeu que ele contou outra coisa e que não se animava a se abrir comigo, pois, na realidade, foi um problema de superstição o que provocou o drama.

Mundandi foi convocado para uma reunião com vários chefes de diferentes zonas para tentar harmonizar os grupos; lá estavam o próprio Mundandi, o capitão Salumu, segundo de Calixte, o companheiro Lambert, chefe de operações da zona de Fizi, e uma série de ajudantes.

Masengo, preso nas garras de sua falta de autoridade, não conseguia sair de um impasse onde a única solução possível seria apagar e recomeçar e dizer: “Aqui mando eu”. Isso não foi dito. A solução dada foi manter a independência de ação das frentes e a recomendação de que no futuro não acontecessem mais incidentes como os analisados naquela oportunidade, o que deixou o problema sem resolução e ia justamente contra a minha recomendação de formar uma frente unificada sob uma liderança firme.

As medidas eram tomadas com alarde de firmeza e depois eram colocadas em prática com muitas fraquezas. Masengo tinha uma lista de armas entregues as diferentes frentes e nenhuma cifra coincidia com as informações do chefe interessado. Ninguém tinha dúvidas de que essas armas haviam sido realmente entregues, mas tomava-se como válida a declaração em contrário e mais elementos de guerra iam se afundar nos pântanos devoradores de equipamentos que eram as frentes. Criaram uma comissão para resgatar as armas em poder dos desertores, que abundavam pela região; eles abandonavam a frente com seu armamento e depois se mantinham "cobrando o barato" com a força de convencimento que o rifle lhes dava. Até se falou em prender os pais de cada desertor caso não conseguissem prender os próprios desertores; no fim das contas, nem desertores foram capturados, nem armas foram recuperadas, nem pais camponeses foram presos, que eu saiba.

Eu expressei minha intenção de partir nos dias seguintes para a frente, o que provocou a negativa de Masengo, amparado nos repetidos artifícios de minha segurança pessoal. Eu o ataquei de frente, perguntando se ele tinha alguma desconfiança em relação a mim, já que as razões que ele dava não eram válidas. Exigi que me tratassem com mais franqueza; se ele tivesse alguma reserva contra mim, deveria dizê-la. O golpe foi direto demais e ele cedeu em suas posições; ficamos de que, cinco ou seis dias depois, quando chegasse um relatório de uns inspetores que ele havia enviado a esses lugares, faríamos a viagem juntos.

Na realidade, a reserva existia, e podia ser explicada pela simples razão de que nem Kabila nem Masengo haviam pisado nas distintas frentes desde tempos imemoriais e isso constituía uma das críticas mais duras dos combatentes; o fato de que o chefe da tropa expedicionária cubana pudesse ir participar da vida da frente, enquanto os responsáveis pela luta não iam, poderia gerar novos motivos de censura. Eu estava consciente desse aspecto, mas, descontando meu interesse em poder avaliar diretamente a situação, também calculava que os chefes congoleses poderiam ser obrigados a fazer algum percurso pelas frentes, para conhecer os problemas de abastecimento alimentar, vestuário, medicamentos, munições e enfrentá-los buscando soluções.

Como etapa preliminar ao anunciado viagem e para conhecer todos os aspectos da área, fomos com o JEM para Kasima, 27 quilômetros ao norte de Kibamba; aqui também se multiplicaram as cenas de indisciplina que marcam este relato, embora Masengo tenha conseguido tomar algumas medidas corretivas, como substituir um comandante que passava o dia refugiado nas montanhas próximas – medo dos aviões – pelo tenente que o acompanhava. Nossos homens, quatro metralhadores, estavam com febres maláricas e os levamos para Kibamba para tratamento.

Tínhamos nos internado nos domínios políticos do general Moulane e as reservas contra Masengo se refletiam na atitude do povo e dos combatentes, que acatavam a contragosto o que queria ser uma autoridade central.

Seguimos navegando por essas águas e chegamos a outro lugar chamado Karamba. Encontramos uma das "barreiras" mais originais; estava integrada por um grupo de ruandeses, independentes de Mundandi e com quem tinham disputas de ordem política e ideológica cujas características não sei precisar. Ali havia um canhão de 75 milímetros sem retrocesso, posicionado em uma colina; era a disposição mais disparatada, já que o ponto não tinha importância estratégica e a única coisa que a arma poderia fazer seria afundar algum barco que passasse por perto. Já havia disparado suas salvas, claro, sem acertar o alvo, pois os artilheiros não sabiam manuseá-lo e as embarcações passavam a uma distância suficiente para ficar fora do alcance do canhão. Outro equipamento desperdiçado. Recomendei seu traslado imediato para Kibamba, onde não havia canhões nem treinamento de alguns homens no manuseio deles, mas, como tantos outros, o conselho caiu em vazio. Não era que Masengo não compreendesse essas coisas, simplesmente ele não tinha autoridade, não se sentia com forças para impor suas decisões contra os costumes estabelecidos. A arma que caía em um grupo era sagrada e o único que podia tomá-la – e o fazia com relativa facilidade – era o inimigo.

Masengo queria mudar o curso dos acontecimentos com ações agressivas e me propôs um ataque a Uvira. Tive que objetar essa ideia pelo fato de que a inspeção a esse ponto havia demonstrado as mesmas condições gerais, o mesmo grau de desconhecimento elemental dos métodos de luta e a total falta de combatividade dos homens. As instruções que os exploradores dessa área receberam eram de cruzar as linhas inimigas e investigar as possibilidades de realizar emboscadas do outro lado do pequeno povoado de Uvira, que é o ponto extremo do lago Tanganyika, onde terminam as estradas que vêm de Bukavu e Bujumbura, no Burundi. Portanto, era necessário atravessar as linhas inimigas e se posicionar do outro lado do povoado para interromper as comunicações. Dadas as grandes extensões do Congo, essas infiltrações são feitas com muita facilidade, mas, não só não havia quem acompanhasse nossos enviados na travessia, como também se lhes negou a autorização para fazê-lo, argumentando que estavam preparando um ataque e isso poderia alertar o inimigo.

Nos dias em que esses acontecimentos dispersos ocorreram, recebíamos notícias de Dar es Salaam. Algumas boas: havia chegado de Cuba um navio com armamentos e alimentos e dezessete mil tiros para nossas FAL; seriam enviados em breve. Fui informado de que toda a imprensa havia publicado a notícia dos cubanos mortos no Congo; o embaixador convenceu os congoleses a fazer um desmentido formal sobre nossa presença ali. Não me pareceu um procedimento inteligente, pois esse tipo de verdade não pode ser ocultado, e a única coisa correta era o silêncio; assim, fiz saber a Pablo Rivalta.

Junto com a carta para o embaixador e alguns outros relatórios, partiam dois companheiros: Otto, doente há algum tempo, e Sitaini, cuja hérnia bilateral já havia se tornado um caso médico, o que me dava a oportunidade de resolver a situação incômoda que a presença dele causava, permitindo-lhe ir embora. Para mim, era um caso doloroso, mas a melhor solução. Os "rajados", obrigados a permanecer contra sua vontade, tentavam justificar sua atitude fazendo propaganda negativa, o que encontrava fácil eco entre outros companheiros. Nesse caso, a justificativa era uma doença, e por isso permiti a fuga.

Poucos dias depois, meu professor de swahili, Ernest Ilunga, que eu já tratava como um irmão mais novo, também partiria; ele havia sofrido vários ataques do tipo epiléptico, e os médicos expressaram suas suspeitas de que pudesse ser algum processo tumoral nos centros nervosos superiores. Masengo me explicou que não, que esse caso era relativamente simples, pois ele tinha espíritos; os médicos locais o curariam em Kigoma, para onde ele partiu, em vez de Dar es Salaam, onde se recomendava a cura ou, ao menos, o diagnóstico.

Cumprindo as instruções, Moja visitou a frente de Calixte e me enviou uma nota que copio porque esclarece vários aspectos que já foram tratados aqui:

Tatú:

Escrevo-lhe da frente Kozolelo – Makungo, onde foi enviado o grupo de 10 homens, ao qual cheguei ontem, ao saber da detenção de um civil a quem foi apreendido um cartão de Tshombé, por uma patrulha congolesa, em um vilarejo na planície.

Hoje – dia 19 –, me reuni com o comandante Calixte, que foi quem interrogou o prisioneiro; ele está preso em um vilarejo afastado do front, sem poder ver nenhum dos cubanos.

Segundo Calixte, o prisioneiro disse-lhe que estava em Forcé quando ocorreu o ataque, e que houve quatro chefes mortos e dois em Katenga, assim como soldados. Ele não conhece os nomes dos chefes mortos, mas viu as patentes. O cartão que o prisioneiro possui não é de soldado, mas sim um documento dado a todos que vão a Albertville. Em Nyangi, segundo o prisioneiro, há 25 guardas, um morteiro e um canhão, situados na estrada que vai para Makungo. A prisão está a um quilômetro de Forcé, em direção a Albertville, onde recolheram os revolucionários atacantes, e os guardas tiraram relógios e sapatos de alguns, que foram enterrados por civis.

O comandante Calixte concorda que se preparem alguns homens para aprender a operar morteiro, canhão e antiaérea. Embora ele não tenha nenhuma dessas armas, estamos aguardando o retorno do capitão Zakarias – substituto de Mundandi – para trazer esses homens para o front de Forcé[6]. Hoje, os companheiros que estão no front de Makungo começaram a dar aulas ao restante do pessoal do comandante Calixte; quanto a Faume[7], ainda não posso lhe dar notícias. Em alguns dias, enviaremos mais detalhes sobre a situação, cujos pormenores, como é natural, serão enviados por um cubano, com envelope lacrado.

Moja

Pouco depois, chegou a melhor notícia desses dias, a leve brisa. A emboscada havia sido realizada com relativo sucesso. Vinte e cinco ruandeses e 25 cubanos, dirigidos respectivamente pelo capitão Zakarias e por Mbili, mas, na realidade, sob a direção deste último, realizaram a ação, se é que se pode chamar assim.

A inspeção de Azi havia mostrado que os caminhões passavam um por um sem escolta. Os 50 homens atacaram um caminhão com cinco soldados. Um tiro de bazuca de Sultán abriu o fogo e, durante alguns minutos, as armas se concentraram sobre o veículo, fuzilando os mercenários, todos negros. Somente um portava arma, já que era um caminhão de transporte que carregava comida, cigarros e bebidas. Do ponto de vista da preparação gradual para ações de maior envergadura, a presa não poderia ser melhor, mas vários acidentes mancharam a ação. Ao iniciar o fogo, os ruandeses começaram a correr para trás, disparando suas armas; isso colocou em risco nossos homens, e, especificamente, o companheiro Arobaini foi ferido em uma das mãos, perdendo um dedo que foi arrancado pela bala que destruiu seu metacarpo.

Dois exemplos que ilustram o primitivismo que ainda reina no Congo: o capitão Zakarias, ao saber da ferida provocada pela rajada de um FM, a examinou e determinou que dois dedos estavam perdidos, decidindo aplicar a lei do Talião[8]ao culpado; ali mesmo, ele pegou uma faca e teria cortado as extremidades do infeliz, não fosse a intervenção de Mbili, que, com muito tato, conseguiu que fosse perdoado. O outro exemplo é o de um soldado ruandês que saiu correndo assim que os primeiros tiros foram disparados – disparados por nós mesmos, pois não houve combate –; um de nossos homens, na função de sentinela, já que cada cubano acompanhava um ruandês, o agarrou pelo braço para detê-lo; o rapaz, aterrorizado, para se livrar desse agressor que o impedia de se proteger, deu uma enorme mordida na mão do cubano.

Esses são apenas exemplos que mostram a magnitude do caminho que teríamos que percorrer para transformar essa massa informe de homens em um exército. Infelizmente, a tragicomédia dessa emboscada não terminou aqui; após os primeiros momentos de estupefação, os recém-vitoriosos descobriram que o mais precioso de tudo estava em cima do caminhão: garrafas de cerveja e uísque. Mbili tentou fazer com que carregassem os alimentos e destruíssem as bebidas, mas foi impossível; poucas horas depois, todos os combatentes estavam bêbados, diante do olhar surpreso e repreensivo de nossos homens, a quem não era permitido beber. Depois, reuniram-se em assembleia e decidiram que não ficariam na planície para fazer outras ações, como estava programado, mas voltariam para a base; já haviam feito o suficiente. Mbili, por diplomacia, para não forçar as coisas ficando apenas com os cubanos, concordou. No caminho de volta, o capitão Zakarias, bêbado, se encontrou com um camponês e o matou a tiros, alegando que ele era um espião.

O mais curioso de todos esses incidentes é que, quando expliquei a Masengo o quão perigoso era ter esse tipo de atitude com os camponeses, ele justificou, de certa forma, Zakarias, pois a tribo que vivia na área era hostil à Revolução. Vale dizer, os homens não são catalogados por suas condições pessoais, mas sim incluídos no conceito de tribo, e é muito difícil sair desse esquema; quando uma tribo é amiga, todos os seus membros o são; quando é inimiga, o mesmo acontece. Claro que esses esquemas, além de não permitirem o desenvolvimento da Revolução, eram perigosos, pois, como se demonstrou depois, alguns membros das tribos amigas eram informantes do exército inimigo e, no final, quase todas se tornaram inimigas nossas.

Tivemos nossa primeira vitória para amenizar o gosto amargo anterior, mas era tal o cúmulo de problemas causados pelos acontecimentos observados, que comecei a rever meus cálculos de tempo; cinco anos eram uma meta muito otimista para levar a Revolução congolesa a um fim bem-sucedido, se tudo tivesse que se basear no desenvolvimento desses grupos armados até transformá-los em um Exército de Libertação plenamente formado. A menos que algo mudasse na direção da guerra, uma possibilidade que a cada dia eu via mais distante.





ROMPENDO AMARRAS


Como de costume, no meu diário de campanha, fazia a análise do mês anterior – julho –:

... leve melhoria em relação ao anterior; Kabila veio, esteve cinco dias e se foi, aumentando os rumores sobre sua pessoa. Não gosta da minha presença, mas parece tê-la aceitado por enquanto. Até agora, nada indica que ele seja o homem para a situação. Deixa os dias passarem sem se preocupar com nada além das desavenças políticas e é demasiado viciado em bebida e mulheres, conforme todos os indícios.

No campo militar, após o desastre do Front de Forcé e o quase desastre de Katenga, há pequenos triunfos a serem registrados, duas pequenas ações em Kabimba, a emboscada do Front de Forcé, a outra em Katenga, com a queima de uma ponte. Por outro lado, começa algo de treinamento e se anuncia a busca de homens de melhor qualidade em outros fronts. Persiste o péssimo método de distribuir armas sem ordem nem critério. Minha impressão é que podemos avançar, embora a um ritmo muito lento, e que tenho uma chance de que Kabila me deixe fazer algo. Por enquanto, sigo como estagiário.

Chegaram notícias de uma emboscada em Katenga; os rapazes permaneceram quatro dias e se retiraram porque os guardas não passaram pelo caminho. Antes de sair, queimaram e destruíram uma ponte. A essa ação se refere a análise do mês.

O terrível é que as mesmas condições de indisciplina e falta de espírito combativo são observadas nessa zona.

Azi chegou do Front de Forcé com catorze homens, todos cubanos, para buscar a comida necessária para tentar uma nova emboscada, um pouco mais ambiciosa desta vez. Dadas as condições da zona, era necessário levar algum alimento. O abastecimento de víveres tem sido um dos pontos neurálgicos das tropas em campanha; na zona onde tinham seus acampamentos fixos, havia a possibilidade de encontrar alguma carne e mandioca, que é a base da alimentação, mas as plantações importantes desse tubérculo estão situadas na planície, já que os camponeses as cultivavam ali, onde viviam, e só após as depredações dos soldados inimigos abandonaram suas plantações para se refugiar nas terras mais inóspitas da montanha. Para buscar mandioca, é necessário fazer incursões longas e com algum perigo. Essas incursões foram iniciadas pelos cubanos, já que os ruandeses se recusavam sistematicamente a fazê-las, alegando que o comando superior tinha a obrigação de lhes fornecer a comida. Houve dias, inclusive, em que não havia alimentos suficientes. Então, se recusavam a seguir as aulas de armas pesadas que estavam sendo ministradas ou a fazer qualquer tipo de trabalho preparatório, como defesa antiaérea, trincheiras etc. A frase que se usava, outro dos clichês que sofremos durante nossa permanência no Congo, era "hapana chakula, hapana travaille", algo como "não há comida, não há trabalho".

Três novos companheiros, Sita, Saba e Baati, pediram seu retorno à Cuba; fui extremamente duro com eles, negando-me a considerar seu traslado, mas ordenando que ficassem na base para as tarefas de abastecimento.

No dia 6 de agosto, soube da destituição de Gbenyé por parte de Soumialot; dois dias depois, Masengo veio me ver para anunciar que partia para Kigoma, chamado por Kabila; estaria de volta no dia seguinte. Conversamos sobre todos os problemas externos do movimento e comentei que soubera da destituição de Gbenyé por parte do Conselho Revolucionário e que, a meu ver, Soumialot não tinha autoridade para decretar uma medida dessa natureza, mas discutiriam esses assuntos com Kabila e depois me explicaria melhor o ocorrido.

Masengo partiu e, no dia seguinte, o grupo que estava se treinando no lago foi dissolvido. Era o mesmo que havia sofrido uma grande perda numérica e moral no dia seguinte à partida de Kabila; os trabalhos haviam sido suspensos, as trincheiras estavam pela metade, e havíamos verificado seu espírito combativo e sua organização quando houve um alarme de combate pela aparição de um pequeno barco inimigo. Então, não foi possível estabelecer uma segunda linha de defesa, como estava planejado, porque não se encontrou a gente, e na primeira linha faltavam vários dos chefes de pelotão; precariamente, conseguimos formar uma linha nas trincheiras, semifeitas e já semidestruídas, com os voluntários que se apresentaram. Agora, com a partida de Masengo, o grupo desaparecia, dissolvido no pandemônio de Kibamba.

Reiniciavam-se as brigas, pois ninguém reconhecia a autoridade dos chefes suplentes. Nessas brigas, às vezes se ia às vias de fato e outras vezes apareciam armas de fogo ou armas brancas. Em uma oportunidade, ocorreu o caso vergonhoso de um dos responsáveis fugir para se refugiar na casa dos cubanos porque um soldado lhe pedira arroz e, ao se recusar a dar, o ameaçou com uma arma montada, provocando sua fuga para o "templo" dos cubanos, que, felizmente, eram respeitados; creio que o soldado conseguiu seu arroz; em todo caso, não houve sanção disciplinar. Tal era a situação de desmoralização que se espalhava sempre que os responsáveis máximos deixavam o Estado-Maior.

Para evitar contaminações, limpei a base de cubanos úteis, deixando apenas aqueles que já haviam solicitado seu retorno à Cuba, os metralhadores do lago, os doentes e alguns instrutores. Meu objetivo era esperar alguns dias e, se durante esse tempo nada acontecesse, sair diretamente para o front sem pedir mais autorizações.

Por meio do tom de algumas anotações e conversas com vários companheiros, comecei a suspeitar do significado de certas frases: nos pequenos relatórios em que se anunciavam as ações guerrilheiras ou exploratórias, chegava um momento em que, fracassada a parte substancial da operação, aparecia a explicação: “Os congoleses se recusaram a ir”, “os congoleses se recusaram a lutar”, “os congoleses etc.”. Analisando esse fato, e a situação de tensão entre os que haviam proposto abandonar a luta e os que permaneciam, confeccionei a "Mensagem aos combatentes", para ser lida nos fronts onde as tropas estavam situadas. A voracidade dos meses seguintes e a instabilidade da minha situação, saltando de um lado para o outro, impediram que eu pudesse repetir as mensagens, embora eu não soubesse se elas tinham alguma influência. Transcrevo a única que foi lida, a qual dá uma ideia da situação até aquele momento e da minha opinião sobre os problemas que vivíamos:





MENSAGEM AOS COMBATENTES


Companheiros:

Para alguns de nós, dentro de alguns dias se cumprirá o quarto mês desde a chegada a estas terras; é necessário fazer uma breve análise da situação.

Não podemos dizer que a situação seja boa: os chefes do movimento passam a maior parte do tempo fora do território, o que pode ser entendido tratando-se de chefes políticos cuja missão de direção abrange muitas facetas, mas nunca entre os quadros médios. No entanto, esses quadros médios viajam com a mesma frequência e permanecem semanas fora do país, dando um péssimo exemplo. O trabalho organizacional é quase nulo, precisamente porque os quadros médios não trabalham, não sabem como fazê-lo, além disso, e todos desconfiam deles.

Os chefes locais chantageiam esses quadros médios que são responsáveis por tarefas semelhantes às de Estado-Maior e obtêm armas e equipamentos sem demonstrar que as usam corretamente; mais armas são dadas a mais pessoas sem treinamento e sem espírito de combate, sem que se avance um passo na organização. Esse panorama faz com que a indisciplina e a falta de espírito de sacrifício sejam as características dominantes de todas as tropas guerrilheiras. Naturalmente, com essas tropas não se vence uma guerra.

Cabe perguntar se nossa presença significou algo positivo. Acredito que sim; muitas das dificuldades que enfrentamos, entre elas minha quase prisão neste local, emanam da diferença que se sente entre uma tropa e outra e do medo das confrontações entre um tipo de dirigente e outro. Nossa missão é ajudar a vencer a guerra, devemos aproveitar essa reação negativa e transformá-la em algo positivo. Para isso, é necessário intensificar nosso trabalho político. É preciso mostrar, com nosso exemplo, as diferenças, mas sem nos tornarmos odiosos aos quadros que possam ver em nós a imagem invertida de todas as suas falhas.

Para isso, é necessário, em primeiro lugar, esforçar-se para exercer um autêntico companheirismo revolucionário na base, entre os combatentes; é daí que surgirão os dirigentes médios do amanhã. Em geral, temos mais roupas e mais comida do que os companheiros daqui; devemos compartilhar ao máximo, fazendo-o seletivamente com aqueles companheiros que demonstrarem seu espírito revolucionário, ensinando ao mesmo tempo o máximo possível. Nossa experiência deve ser transmitida de uma forma ou de outra aos combatentes; o desejo de ensinar deve prevalecer em nós, mas não de forma pedante, olhando de cima para os que não sabem, mas fazendo-os sentir o calor humano naquilo que ensinamos. A modéstia revolucionária deve orientar nosso trabalho político e ser uma de nossas armas fundamentais, complementada por um espírito de sacrifício que não seja exemplo apenas para os companheiros congoleses, mas também para os mais fracos entre nós. Nunca devemos olhar se nossa posição é mais perigosa do que a de outro ou se nos exigem mais; a um verdadeiro revolucionário deve-se pedir mais, pois ele tem mais a oferecer. Por fim, não esqueçamos que sabemos apenas uma pequena parte do que devemos saber; é necessário aprender as coisas do Congo para nos conectarmos mais com os companheiros congoleses, mas devemos aprender também o que nos falta em cultura geral e na própria arte da guerra, sem nos considerarmos sábios nisso nem pensar que é a única coisa que se exige de nós.

Quero fazer duas advertências para finalizar esta mensagem:

O trato entre companheiros: é bem sabido por todos que um grupo de companheiros não fez jus à sua palavra de revolucionário nem à confiança que nele foi depositada e propôs abandonar a luta. Esse fato não pode ser justificado, pedirei as sanções morais mais severas para esses companheiros. Mas não devemos esquecer outro fato; eles não são traidores, não devem ser tratados com desprezo manifesto. Entenda-se bem, sua ação é a mais repudiável que um revolucionário pode fazer, mas precisa ser revolucionário para que seja repudiada; caso contrário, não seria mais do que uma simples fuga, como tantas outras. Hoje, esses companheiros estão encurralados e se uniram entre si como uma medida de defesa e justificação de um ato que não a tem. Ainda devem passar meses aqui; se a vergonha que certamente estão sentindo, embora disfarçada, for aproveitada com companheirismo, podemos salvar algum deles, e que fiquem a compartilhar nossa sorte é mil vezes preferível, aconteça o que acontecer, do que a do desertor moral. Sem esquecer suas faltas, demos-lhes um pouco de calor; não os obriguemos a se auto justificar como defesa frente ao gelo.

Foi observado em alguns relatórios, e sobretudo nas expressões dos companheiros, o desprezo que sentem pela atitude dos companheiros congoleses no combate. Isso traz dois inconvenientes: o primeiro é que os congoleses percebem isso; se observarmos duas pessoas conversando em qualquer uma de suas línguas que eles não entendem, veremos como percebem se falam sobre vocês e em que sentido. Um gesto desdenhoso pode arruinar quarenta ações positivas. Por outro lado, o congolês pode se tornar o Totí; sentem-se sintomas de que está sendo exagerada a atitude dos congoleses, o que pode ser uma boa justificativa para não cumprir determinada tarefa. Nossa função primordial é educar homens para o combate e, se não houver uma real aproximação, essa educação não poderá ser dada, a qual não deve ser apenas a forma de matar um indivíduo, mas também e, sobretudo, a atitude diante dos sofrimentos de uma longa luta; isso se consegue quando o mestre pode ser também um modelo a ser seguido pelos alunos. Não se esqueçam disso, companheiros, assim como não se esqueçam também de que, se algum veterano de nossa guerra de libertação disser que nunca correu, podem dizer-lhe na cara que ele está mentindo. Todos corremos e passamos pelo período negro em que as sombras assustam; é uma etapa que deve ser ajudada a vencer porque, naturalmente, as condições são mais difíceis aqui no que diz respeito ao desenvolvimento da consciência, já que o nível de desenvolvimento é muito menor do que o nosso daquela época.

Esta mensagem deve ser discutida entre os membros do Partido e me enviar qualquer sugestão, depois lida pelos companheiros e queimada em seguida; não deve ficar no front. Nos locais em que estejam os companheiros que abandonaram a luta, ela não será lida.

Uma saudação revolucionária a todos.

Tatú, 12 de agosto de 1965.

Passados os dias que eu havia estipulado sem que chegassem Masengo e Rabila, no dia 16 subi para a Base Superior e no dia 18 me dirigi para Front de Forcé, saindo de madrugada e chegando à noite, depois de uma caminhada que me pareceu interminável pela planície elevada que separa esses pontos. Sentia-me um pouco como um criminoso em fuga, mas estava decidido a não voltar à base por muito tempo.





SEMEANDO AO VENTO


Eu mal havia chegado a Front de Forcé e me jogado no chão, para aproveitar o meu cansaço devastador, quando os companheiros começaram a me contar as queixas sobre a atitude dos ruandeses, especialmente do capitão Zakarias, que utilizava métodos como a punição física dos homens e que, sem dúvida, seria capaz de assassinar qualquer um. No entanto, para nós, a recepção tinha sido cordial. O local escolhido para o acampamento estava situado à beira de uma colina que começa em uma quebrada, sobre colinas de pastagens naturais que, naquela época de seca, não tinham pasto algum; de dia, a temperatura é agradável, mas à noite faz bastante frio e é preciso dormir com fogo. Para me proteger dos rigores do tempo, me deitei no chão sobre uma pele de vaca, bem perto do fogo; dormi bem, mas fui imediatamente vítima de uma das feras da região, o "birulo", um piolho que vive principalmente nas roupas, e que se espalhava livremente por toda essa área de relativo frio e nenhuma higiene.

De cima do nosso acampamento, podia-se ver a vila de Bendera com suas instalações elétricas. Ao observá-la de perto, percebi de forma clara o absurdo de tê-la atacado de frente; para nós, para nossa força, era um verdadeiro bastião.

Com as últimas notícias recebidas, completávamos a ideia geral dos diferentes fronts que compunham esse setor oriental da luta no Congo. Apesar de muitas mais armas terem sido distribuídas, as quantidades atualmente disponíveis eram aproximadamente as seguintes:

Em Uvira, cerca de trezentas e cinquenta armas, um canhão, algumas metralhadoras antiaéreas, um morteiro.

Na vasta região de Fizi, incluindo Baraka, podiam-se calcular de mil a duas mil pessoas armadas, grande parte dispersas pelas vilas, algumas antiaéreas, um canhão, alguns morteiros.

Lambert, em Lulimba, podia contar com cento e cinquenta fuzis, segundo nossos cálculos, três antiaéreas, um canhão e dois morteiros; seguindo pela estrada de Kabambare, havia outra pequena força de Lambert com cerca de quarenta e cinco homens, armas leves e bazucas.

Depois, dispersos ao longo da estrada que vai até Kabambare, diversos grupos, em geral com poucas armas de contenção e apenas fuzis, também não em grandes quantidades; e assim, de acordo com as notícias, até Kasengo. Também nesta área, a autoridade do Estado-Maior Central era desprezada; um de nossos homens foi testemunha de uma discussão com um enviado do lago, na qual o homem das planícies dizia que os que haviam permanecido lá estavam desarmados e os que haviam corrido para se refugiar nas montanhas tinham todas as armas.

Entre Lulimba e Forcé havia alguns destacamentos que não conhecíamos bem, como o de Kalonda – Kibuye, que, segundo parece, na época tinha cerca de sessenta armas; o de Mukundi, com cerca de cento e cinquenta armas; o famoso Faume, que era como uma lenda porque nunca havia sido localizado, com cento e cinquenta armas. Além disso, as duas agrupações nas montanhas: Calixte, com cento e cinquenta armas; Mundandi havia chegado a ter cerca de trezentas, três metralhadoras, dois canhões e dois morteiros, mas agora seu número havia diminuído bastante devido às deserções que ocorriam regularmente com armas e equipamentos.

No sul, em Kabimba, cerca de cento e cinquenta armas, duas metralhadoras antiaéreas, um canhão e dois morteiros. E uma profusão de armas espalhadas pela margem do lago, incluindo fuzis, várias metralhadoras antiaéreas, alguns morteiros em reserva e o canhão cujo posicionamento original relatei antes.

Chegaram notícias satisfatórias da emboscada de Mbili. Desta vez, a presa era maior, mas a ação não foi concluída devido aos camponeses que transitavam pela estrada; eles perceberam rastros de algum grupo estranho no caminho e saíram correndo para avisar Front de Forcé, que estava a alguns quilômetros de lá. Quando ficou claro que os camponeses haviam fugido ao reconhecer a emboscada, Mbili ordenou a todos que ficassem em alerta e reforçou as sentinelas em direção a Front de Forcé, preparando-se, caso não houvesse outros incidentes, para mudar de posição à noite. Mas, às dez da manhã, chegava de Albertville um jipe escoltado por dois blindados; Sultão, mais uma vez, foi o responsável por abrir fogo, danificando o primeiro veículo e destruindo-o com um segundo disparo. O companheiro Afende destruiu o jipe com um tiro de bazuca disparado a apenas dez metros de distância, o que fez com que ele mesmo e Alakre fossem feridos por fragmentos do projétil, e os companheiros da retaguarda eliminaram o segundo blindado com granadas de mão – esses são veículos abertos, blindados, que levam uma metralhadora com seu operador em uma espécie de torre, um ajudante e o motorista. No total, foram contados sete mortos, alguns de pele clara que, pensava Mbili, poderiam ser norte-americanos, mas depois se soube que eram belgas. Quando foram resgatar os implementos, a tropa inimiga, que vinha de Front de Forcé, já estava chegando, evidentemente alertada pelos camponeses, e começou o tiroteio em um dos extremos da emboscada; foi necessário recuar imediatamente e não foi possível pegar os documentos e as armas. Alguns homens se perderam no primeiro momento, mas depois apareceram; apenas um ruandês não voltou à base, e as notícias das agências imperialistas, que informaram corretamente como sete o número de mercenários mortos, falavam de um inimigo morto, pelo que é lógico supor que tenha sido atingido por uma bala perdida.

Teriam sido muito úteis os documentos porque, segundo relataram depois dois prisioneiros capturados no caminho, esses homens estavam encarregados de fazer planos especiais para Front de Forcé e, provavelmente, eram os responsáveis por elaborar o plano de ataque geral ou fazer alguns estudos voltados a esses fins na área do setor. O jipe carregava atrás um pequeno reboque cujo conteúdo não pôde ser precisado; poderia ser uma planta elétrica para micro-ondas ou documentos. Tudo indicava que os peixes grandes haviam caído ali e essa documentação teria sido de imensa utilidade para nós.

Como na ocasião anterior, os ruandeses propuseram retornar imediatamente devido à falta de alimentos, mas, aconselhado, Mbili disse que ele ficaria com seu pessoal – os cubanos – e, após uma longa assembleia, os ruandeses decidiram ficar também. Havíamos enviado alguma comida do acampamento e conseguimos matar um elefante, animal que é bastante comum naquela região, de forma que não estavam sendo acuados pela fome.

Depois das habituais assembleias, foi escolhido um novo local para uma segunda emboscada. O que caiu em nossas mãos foram dois comerciantes que vinham em bicicletas, cada um com comida e dois galões de pombe – Mbili fez derramar imediatamente a bebida alcoólica para evitar cenas como as da ação anterior. Mais uma vez, os camponeses descobriram a emboscada e se retiraram para Front de Forcé, então, de comum acordo com os ruandeses, a emboscada foi levantada e retornaram à base. Antes de partir, tentaram derrubar a linha de energia elétrica com um tiro de bazuca, mas falharam no intento.

Fui receber as pessoas que subiam pelas encostas íngremes com o ânimo elevado, com a moral superior; os ruandeses haviam se comportado muito melhor e, embora também não tenha havido luta, devido ao fato de os belgas terem sido totalmente surpreendidos, muitos combatentes permaneceram no local e participaram do tiroteio. Foi então que conheci o capitão Zakarias. Embora essas primeiras entrevistas não tenham sido muito cordiais, depois ele foi mudando de atitude. Traziam prisioneiros, os dois comerciantes, e propus deixar um de refém, já que eram parentes, e enviar o outro para trabalhar conosco a fim de estabelecer algum contato em Albertville, mas Zakarias não aceitou, afirmando que poderiam ser espiões e, no final, foram enviados para a base do lago, de onde tentaram escapar, recebendo, ao menos um, uma morte horrível nas mãos dos seus guardas.

Enviei uma nova mensagem para Masengo, na qual insisti na necessidade de seguir uma política coerente e hábil com os camponeses para evitar dificuldades como as da emboscada; sugeri começar o trabalho de inteligência com os prisioneiros, além de sugerir um plano de abastecimento para o front, envolvendo os camponeses e premiando-os com uma parte do que transportassem desde o lago, onde recebiam mercadorias, pois ainda estava aberta essa rota. Por outro lado, insistia na necessidade de haver um único comando no front: essa dispersão de forças independentes era inaceitável, especialmente quando se observava a tendência para a anarquia e para as rivalidades que chegavam a extremos de violência entre os diversos grupos.

Estávamos convencidos de que os ruandeses, apesar de seus últimos avanços, não dariam muito mais e deveríamos concentrar nosso ensino nos congoleses, que, no final das contas, eram os que deveriam libertar o Congo. Portanto, decidiu-se deixar o companheiro Mafu com eles, à frente de doze homens, para não ferir susceptibilidades, e transferir o restante das tropas para o front de Calixte, por agora, indo eu também para lá. Antes de partir, foi decidido enviar Tom para fazer uma inspeção política no lago e, posteriormente, se dirigir a Kabimba para esclarecer qual era a situação naquele ponto, pois havia algumas reservas sobre o modo de conduzir-se em relação aos congoleses por parte do companheiro Aly.

Antes de partir, Tom, realizamos uma reunião do partido onde revisamos todos os problemas existentes e decidimos escolher alguns dos membros para ajudar o "político" em suas tarefas. A escolha recaiu por unanimidade sobre Ishirini e Singida, para o grupo que seguiria conosco, e sobre Alasiri para o pequeno grupo que ficaria com Mafu. Os três eram magníficos rapazes. Na reunião, fizemos, no entanto, uma crítica ao companheiro Singida, por suas expressões violentas para com os congoleses, e, em uma reunião do Estado-Maior, fiz a crítica de Azi e Ázima, pela forma incorreta de tratar os ruandeses.

Antes de partir para o front de Calixte, os ruandeses pediram uma entrevista, à qual assistiram o capitão Zakarias, o secretário de organização do Partido, o chefe da juventude e alguns outros.

Conversamos sobre temas gerais da guerra, sobre como conduzi-la, como treinar os homens; sobre problemas práticos desse tipo. No final, o secretário de Organização pediu que fizesse uma crítica sobre o trabalho dos ruandeses até aquele momento, a qual, em minha opinião, se resumia a dois pontos fracos:

Primeiro: a atitude fatalista em relação à comida. Os ruandeses se baseavam no fato de que os camponeses traziam vacas; no máximo, enviavam alguns soldados para buscá-las. – Haviam começado a comer macacos, que variam de sabor de acordo com o grau de fome, a nosso pedido, e, salvo nos últimos dias, não haviam sido capazes de ir buscar a mandioca que estava na região das planícies. –  Expliquei-lhes a necessidade de tornar o exército popular um exército autossustentável, em permanente comunhão com o povo; não poderia ser parasitário; ao contrário, deveria ser o reflexo em que os camponeses se mirassem.

Segundo: a desconfiança excessiva em relação aos congoleses; os incitei a se unirem a eles, argumentando que o resultado da luta em Ruanda dependia do resultado da luta no Congo, pois esta significava uma confrontação de maior amplitude contra o imperialismo.

Aceitaram a crítica do primeiro ponto e deram alguns exemplos de como haviam começado a corrigir, mas não abordaram o segundo, o que indicava que não aceitavam as observações ou, de qualquer forma, não estavam dispostos a mudar de atitude.

Recebi mensageiros da base com cartas de Dar es Salaam e diversas notícias. Uma delas, de Pablo, explicava alguns pontos importantes. Está datada de 19 de agosto de 1965.

Tatú:

Esta viagem estava planejada conforme sua ordem. Foi alterada devido a um telegrama de Havana anunciando que um mensageiro estaria chegando; o mensageiro já está aqui, preparando e garantindo a travessia e em breve estará com você.

Duas questões: um grupo de homens está indo para organizar uma base de treinamento, onde depois possam ser treinados companheiros moçambicanos e de outros movimentos da região. Inicialmente, esse grupo foi solicitado pelo governo de Tanzânia para treinar moçambicanos e realizar uma operação que, com certeza, Osmany explicou a você; depois, por condições especiais, os planos foram adiados e pediu-se que o grupo fosse para Tabera para cuidar da base lá e treinar congoleses. Mas agora, de acordo com Soumialot, propuseram que a base fosse localizada no interior, para não precisar trazer pessoal de lá para cá e usá-los também no treinamento de pessoal de Moçambique e outros movimentos de libertação da região.

Outra questão é sobre diferentes grupos de congoleses que me visitaram nos últimos dias e que, de uma forma ou de outra, te conhecem. Eles, sob o pretexto de que Kabila não quer entrar, estão tentando fazer o trabalho por conta própria. Não há mais do que um desejo, um pouco de ambição de liderança e se aproveitam de sua personalidade e de nossos homens para criar seu próprio grupo. A esse respeito, expliquei-lhes o quão perigoso isso é, pois tende a dividir o movimento; disse que, para qualquer atividade, eles precisam primeiro conversar com Kabila e contigo lá, pois nossos compromissos estão estabelecidos dessa forma.

Kabila nos visitou e explicou a situação, dizendo que expulsou esses companheiros e conversou com o governo da Tanzânia para garantir que, sempre que aparecerem dizendo ser combatentes, sejam mandados para lá; também explicou a situação nas embaixadas que esses companheiros visitaram.

Ele se foi prometendo que iria para lá.

Abraços,

Pablo.

Respondi a Pablo, explicando-lhe que não confiava em Kabila, mas que todos os outros ali eram piores, não tinham nem sequer inteligência, e que de qualquer maneira era necessário se amarrar a ele, garantindo-lhe que ali se trabalharia honestamente para consolidar a unidade sob seu comando; era preciso erradicar qualquer temor por essa parte. Expressei minhas reservas sobre a disposição de enviar os instrutores para fazer uma base aqui, pois os homens de outros movimentos iam perceber uma imagem tão dolorosa de indisciplina, desorganização e desmoralização completa, isso significaria um choque muito duro para qualquer um que viesse treinar nas tarefas de libertação. Expressei também minha esperança de que essa iniciativa não tivesse partido dele, pois era politicamente perigosa.

Partimos para o acampamento de Calixte, deixando os homens que havíamos combinado e a Moja com alguns outros para esperar Zakarias, que havia saído em uma missão de abastecimento. Ele havia prometido que participaria com os congoleses em um combate levando uma dezena de homens e esperávamos que cumprisse sua palavra.

O acampamento de Calixte está situado a cerca de duas horas e meia de caminhada, entre montanhas, seguindo a borda da cadeia que desce sobre as planícies; é um ponto imbatível para ser defendido, já que as encostas são extremamente íngremes e desprovidas de vegetação, tornando muito fácil impedir o acesso com o simples disparo de fuzil. Era constituído de pequenas cabanas de palha com capacidade para quatro a dez pessoas, com camas de bambu. A nós foram atribuídas algumas que estavam desocupadas. O lugar era mais confortável e fazia menos frio, mas tinha a mesma quantidade de birulos que em Bendera.

Calixte estava prestes a partir, chamado por Lambert de Lulimba; me recebeu aparentemente alegre, dizendo que estava contente por estarmos ali, mas não gostava da nossa presença onde os ruandeses estavam. Expliquei-lhe que havíamos cumprido ordens instruindo aquele grupo, mas que queríamos trabalhar com ele. A conversa foi cordial, embora não houvesse a comunicação direta que existia com os ruandeses, pois Calixte não falava uma palavra de francês e meu swahili sempre foi muito imperfeito, de modo que eu tinha que contar com tradutores cubanos que não dominavam os matizes. Era muito difícil fazer explicações complexas.

Desde o próprio acampamento era possível dominar toda a planície adjacente, as vilas de Makungo, Nyangi, Katenga, e até mesmo o Front de Forcé. Falei com Calixte sobre a necessidade de estarmos mais perto dos guardas para hostigá-los continuamente e treinar as tropas, propondo-lhe fazer isso imediatamente. Ele concordou, e enviei um grupo liderado por Azi para explorar, escolhendo como assentamento provisório uma pequena vila situada a cerca de quatro quilômetros de Makungo. Preparamo-nos para o descenso imediato com a colaboração do segundo de Calixte, chefe provisório do acampamento, que mobilizou seus homens, lutando contra a apatia que surgia quando se tratava de se aproximar do inimigo.

Antes de partir, aproveitando o domingo, os camponeses se reuniram e fizeram uma festa em nossa honra, na qual homens vestidos de demônios da selva, ou algo assim, dançavam as danças rituais e todos se dirigiram para adorar o ídolo, uma simples pedra colocada perto do topo de uma montanha e cercada por uma cerca de canas, que, a cada certo tempo, era regada com o sangue de algum animal sacrificado. Nesse caso, foi um cordeiro, que depois foi compartilhado entre todos os presentes. O ritual parece complicado, mas o essencial é extremamente simples; ao deus, a pedra ídolo, é feito um sacrifício e depois come-se o animal sacrificado, aproveitando para comer e beber em profusão.

Os camponeses se mostraram extremamente amáveis conosco, me sentindo tão obrigado que retornei à minha antiga profissão de médico, simplificada pelas circunstâncias ao extremo de injeções de penicilina contra a doença tradicional, a gonorreia, e comprimidos contra o paludismo.

Mais uma vez iniciamos a árdua tarefa do ensino primário da arte da guerra a pessoas cuja determinação não conhecíamos, pelo contrário, tínhamos sérias dúvidas de que ela existisse. Tal era o nosso trabalho de semeadores ao acaso, lançando sementes com desesperança para todos os lados, tentando fazer com que alguma germinasse antes da chegada da má época.





TENTANDO O “SEGUIMENTO”


Agora, na região de Makungo, com a nova leva de aspirantes a guerrilheiros, tentávamos continuar as pequenas aulas de emboscada que havíamos dado no caminho de Albertville para o Front de Forcé. As tropas aumentavam em heterogeneidade, pois o capitão Zakarias havia chegado com mais 10 ruandeses; íamos começar uma tarefa de aproximação que resultasse no estabelecimento de uma frente unida.

As tropas inimigas estavam posicionadas em: Front de Forcé, a cerca de três ou quatro horas a pé do nosso acampamento; Nyangi, à frente; Katenga, a duas horas, e, depois, a 50 quilômetros, Lulimba. Nossa intenção era atacar no caminho entre Katenga e Lulimba e detê-los, caso tentassem avançar de Nyangi. Este último é uma pequena vila que dá para uma rota abandonada, mais próxima à serra, onde também está Makungo e onde estava nosso Estado-Maior. Katenga está na estrada que atualmente é usada, onde as pontes são modernas e bem construídas para resistir às cheias dos rios.

Para a tarefa de deter as forças que eventualmente avançassem de Nyangi, comissionamos Azi com um grupo de 6 cubanos e 10 congoleses. Para o ataque na estrada, foram uns 40 congoleses, 10 ruandeses e 30 cubanos, um número de tropas mais do que suficiente para destruir qualquer inimigo que avançasse pela estrada.

Nesses dias, havia chegado um grupo de 10 cubanos que, a princípio, havia sido pensado para ser os instrutores de uma base internacional, onde se treinariam não apenas os congoleses, mas também africanos de outros movimentos. Contudo, vendo as condições e a impossibilidade de conseguir um grupo estável de educandos nessas artes, decidimos incorporar os instrutores à luta, o que fizeram nesta ação. O reforço não era muito grande, pois os companheiros tinham uma formação teórica adaptada às necessidades de um ensino mais ou menos ortodoxo das armas de guerra, sem experiência na luta guerrilheira, exceto algumas exceções.

Acompanhei pessoalmente os combatentes. Depois de atravessar o rio Kimbi, que, na época de chuvas, traz uma correnteza e força consideráveis, mas que agora era fácil de atravessar com a água até a cintura, nos instalamos na área escolhida.

A tática era simples. O centro da emboscada era o mais forte e ali deveria ser suportado o peso da luta. De ambos os lados, havia homens suficientes para deter a parte do comboio que ficasse fora, caso fosse muito grande, e para impedir a fuga dos capturados, embora o ideal fosse que o inimigo não tivesse chance de se defender pela surpresa da ação. O fogo seria iniciado, como de costume, com o disparo de um lançador de foguetes. Havia um pequeno grupo a cerca de 5 ou 6 quilômetros em direção a Katenga, encarregado de destruir uma ponte de madeira depois que os caminhões passassem e caíssem na emboscada, impedindo a fuga ou o envio de reforços. Como recurso adicional, devido à impossibilidade de usar minas antitanques diretamente pela falta de detonadores – que nunca chegaram –, colocamos uma em uma pequena ponte de madeira, de dois ou três metros de largura, situada bem no centro da emboscada. Havíamos desenvolvido um dispositivo com uma espoleta de granada que, ao ser puxada por um cordão, explodia após cinco ou seis segundos. Esse artefato era inseguro, pois dependia da habilidade do manipulador e da velocidade dos caminhões para coincidir a explosão com o passo do veículo, por isso foi deixado como medida extrema, prevendo a falha de algum outro elemento.

Coloquei o pequeno posto de comando a cerca de 500 metros da emboscada, onde havia uma poça; em ações desse tipo, é preciso considerar a água e as possibilidades de comida, já que é preciso esperar dias e dias até que os veículos passem. A água estava estagnada e suja e, apesar dos desinfetantes, houve muitos casos de diarreia durante o período que ficamos lá; quanto à comida, embora não houvesse variações, não faltava, já que o centro da emboscada estava instalado em um yucal abandonado que parecia um monte: raízes de yuca de anos e anos, que davam tubérculos imensos, duros, mas comestíveis quando se tem boa fome. Algumas chuvas caíram, o que tornou a estadia ainda mais desconfortável. No primeiro e segundo dias, não houve maiores problemas; os homens passavam nessa espera, tensa e entediante ao mesmo tempo, em que as horas pareciam intermináveis, mas, ao mesmo tempo, qualquer ruído que quebrasse o silêncio se transformava em som de motor e provocava o alerta imediato. Mesmo eu, que estava a algumas centenas de metros da linha de frente, sofria alucinações auditivas a cada momento.

Até o domingo, que foi o quinto dia da espera, conseguimos controlar o pessoal. Depois, os congoleses começaram a demonstrar sinais de impaciência e inventaram supostas informações que indicavam que os caminhões passavam a cada quinze dias e, como justamente um dia antes de montarmos a emboscada, uma caravana havia passado, seria melhor desmontá-la e voltar depois. Ainda eram manifestações sem muita insistência, apesar de o ócio forçado, a água contaminada, a yuca, às vezes misturada com uma pequena quantidade de conservas ou bukali, não serem elementos que ajudavam a manter alta a moral de combate. No quinto dia, ocorreu um episódio cômico, mas que mais uma vez mostrou as fraquezas que sofríamos: quando estava tranquilamente deitado na rede, no posto de comando, ouvi um alvoroço, quase como elefantes correndo: eram os seis ou sete congoleses encarregados da comida que, desorientados, me disseram: "askari Tshombé, askari Tshombé" – soldados de Tshombé. Eles os haviam visto ali mesmo, a uns 20 ou 30 metros da posição. Mal tive tempo de me vestir para o combate, deixando a rede e a mochila entregues à sorte, e já um dos cubanos que me acompanhava também viu os askari Tshombé; a situação se complicava, pois não podia contar com os congoleses e só tinha comigo quatro cubanos, um deles doente, Singida; enviei rapidamente este último para avisar a Moja para que me enviasse reforços e também mandei levar os congoleses que, nessas condições, mais atrapalhavam do que ajudavam. Caminhei alguns metros em direção ao rio para sair da área visível para o inimigo e segui os passos dos que estavam se retirando, com a intenção de voltar pelo mesmo caminho após estabelecer contato com os guardas. Pouco tempo depois, chegou a notícia de que eles não haviam visto direito e não eram soldados inimigos, mas camponeses da região que, ao nos descobrirem, também haviam fugido e um dos nossos homens, à distância, os observou bem.

Estávamos comentando essas incidências quando chegou às nossas costas um explorador enviado por Moja para saber o que estava acontecendo. Ele ouviu nossa conversa e saiu correndo para informar que os guardas já estavam no posto de comando e o haviam tomado. O desconcerto foi total; os “emboscadores emboscados”. Moja, que estava no comando direto da ação, imediatamente levantou a emboscada e se abrigou em uma zona próxima enquanto dava ordens para que me procurassem, pois, segundo relatos, eu havia saído em direção ao rio Kimbi.

Após duas horas, ainda estávamos dando voltas e alguns dos congoleses aproveitaram para seguir para o acampamento e não retornar mais; sofremos várias baixas desse tipo, fruto da confusão. Ao infantilismo das reações dos congoleses, que fugiam como meninos malcriados, somavam-se os erros de alguns de nossos companheiros pela falta de experiência na luta.

Decidimos mudar o local da emboscada algumas centenas de metros, pois os camponeses nos haviam visto e não sabíamos a que grupo pertenciam, e eu me vi obrigado a retirar-me e voltar para o acampamento, pois me avisaram que o companheiro Aragonés estava a caminho. A emboscada durou onze dias, do primeiro de setembro até o dia 11, e várias vezes Moja teve que anunciar que ficaria apenas com os cubanos, devido a insistência crescente dos congoleses em ir embora, mas, diante de sua atitude, eles se mantiveram em seus postos.

Finalmente chegaram dois caminhões; o primeiro foi destruído, sete a oito soldados foram mortos e o mesmo número de fuzis foi capturado; não traziam nada além de suas armas, abundante provisão de maconha e alguns papéis sem importância, salvo a folha de pagamento de Lulimba; o segundo veículo não foi destruído pelo pessoal da bazuca, pois ela falhou, e os ocupantes, em maior número do que no primeiro, se abrigaram e fugiram para a nossa ala esquerda. Nela, a maioria eram congoleses, mas havia cubanos que também retrocederam, assustados com a fuga deles. Em vez de aniquilar completamente os dois caminhões, em determinado momento fomos pressionados e tivemos que iniciar a retirada. Como sempre acontecia nesses momentos, a desbandada foi total. Os congoleses rapidamente cruzaram o Kimbi, não parando até o Estado-Maior, e ficamos praticamente reduzidos ao grupo de cubanos, embora, desta vez, os ruandeses, com maior experiência de combate, tivessem ficado; inclusive um deles havia intervindo com sua bazuca contra o caminhão e outro, que estava incorporado às nossas tropas, mostrava orgulhosamente as botas de um soldado morto que havia se apropriado, pois as suas estavam destruídas. Eles também haviam contribuído para o resgate das armas.

Foi demonstrado nessa ação o quanto ainda faltava para conseguirmos organizar forças que, ao menos, pudessem dar pequenas batalhas, e o quanto ainda faltava em termos de preparação de alguns cubanos, que estavam atordoados diante de condições diferentes das habituais em seu exército, como as da guerra de guerrilhas, e não sabiam como agir com coordenação e iniciativa.

Por outro lado, a forma como os soldados se defendera demonstrou que estavam preparados e que avançaram, pois o fizeram depois de o primeiro veículo ser destruído; eram todos negros, mas via-se que tínhamos diante de nós um inimigo considerável, ao contrário do que os próprios congoleses pensavam, que atribuíam a raiz de seus males aos mercenários brancos, pois, segundo eles, os negros estavam aterrorizados.

Antes de começar o combate, o tenente chefe do grupo de Calixte me havia anunciado que sua tropa se negava a lutar com os ruandeses, porque estes fugiam atirando e eram capazes de matar os próprios companheiros. Não tínhamos a menor dúvida disso, pois já havíamos sofrido isso na pele, mas duvidávamos muito mais dos congoleses e com toda razão, pois pode-se dizer que nenhum deles disparou um tiro e a fuga foi simultânea com o primeiro disparo. Não nos preocupava muito com isso, pois ele havia acontecido com os ruandeses e, nesta terceira tentativa, embora com um grupo reduzido, eles haviam demonstrado sua disposição de combate, mas as tentativas de unir ambos os grupos pareciam condenadas ao fracasso. Havíamos conseguido resolver a crise anterior e convencer o pessoal de Calixte a lutar ao lado dos de Mundandi, mas depois surgiu uma disputa por armas. Eu insistia que as armas fossem dadas aos congoleses, como um gesto, e os ruandeses achavam que eles não tinham feito nada, que as armas pertenciam a eles; houve uma tentativa de violência que, conversando com o capitão Zakarias, conseguimos controlar, e as armas foram entregues a contragosto, sem nenhum gesto cordial. Os ruandeses partiram de volta ao seu setor, não quiseram continuar ali. Isso ocorreu um dia depois de eu ter dado a Masengo minha opinião sobre Zakarias e sobre a unidade na luta.

O resultado do combate foi satisfatório, pois não tivemos que lamentar nenhum ferido. O companheiro Anzali, em horas posteriores, fazendo um reconhecimento com Mbili, havia incendiado o caminhão abandonado pelo inimigo e, ao pegar fogo a gasolina, sofreu queimaduras consideráveis.

Azi também havia realizado uma emboscada contra os soldados de Nyangi, provocando talvez algum ferido, mas a ação não teve muita efetividade.

Ainda mantinha a impressão de que as coisas poderiam seguir bem. Dei ordens para que novas emboscadas fossem feitas na estrada enquanto me preparava para ir a Lulimba para convencer Lambert sobre a necessidade da ação. Havíamos encontrado, entre os papéis do caminhão, como já mencionei, uma folha de pagamento, na qual estava indicado que havia 53 homens em Lulimba, e pensávamos que seria a oportunidade ideal para atacar esse ponto com as forças superiores de Lambert e abrir caminho para Kasengo. Se as emboscadas entre Katenga e Lulimba funcionassem, nos daria alguns dias de respiro para apertar o cerco nesse último ponto, reunindo todas as forças dispersas naquela ampla região.

Consequentes com nossos princípios, iniciamos um esboço de ação social. O médico Hindi, vindo da base, dava consultas aos camponeses locais e estabelecia um sistema de visitas rotativas nos povoados das montanhas. Entreguei sementes de legume, que me haviam chegado do lago, para que as semeassem e cultivassem, dividindo depois o produto. Conseguimos criar uma atmosfera diferente, comunicativa. Como os camponeses de qualquer lugar do mundo, esses eram receptivos a todo interesse humano por eles, gratos e com grande espírito de cooperação; era doloroso constatar que esses mesmos homens, que mostravam uma genuína confiança em nós e interesse em trabalhar, poderiam se transformar, ao entrarem no Exército de Libertação, nesse soldado indisciplinado, preguiçoso e sem espírito de luta que tínhamos à nossa frente. As agrupações militares, em vez de serem fatores de desenvolvimento da consciência revolucionária, eram um lixão onde tudo se apodrecia, resultado da desorganização e da falta de direção de que tantas vezes nos lamentamos ao longo dessas notas.





O ENFERMO PIORA


Ao final do mês de agosto, fiz minha análise habitual, a mais otimista de todas que escrevi nos sete meses de permanência no Congo.

A bolsa de estudos terminou para mim, o que significa um avanço. Em geral, este mês pode ser registrado como muito positivo: à ação do Front de Forcé, devemos adicionar a mudança qualitativa trazida pelas pessoas. A presença de Zakarias com os 10 homens é um grande indicativo disso, assim como a presença de quase todo o front na planície. Agora falta que a ação produza resultados e que possamos estabilizar a situação aqui. Meus próximos passos serão visitar Lambert em Lulimba e fazer uma visita a Kabambare, depois convencê-los da necessidade de tomar Lulimba e seguir em frente; mas para tudo isso, é necessário que esta emboscada e as ações subsequentes produzam resultados.

Não sei o que Kabila fará, mas tentarei trazer Masengo para as frentes e visitá-los, isso mudará a atitude das pessoas em relação a ele. Depois, é preciso organizar os camponeses em toda a região e dar um comando único ao front. Se tudo correr bem, em dois meses podemos estar cercando Forcé e tentar realizar os sabotagens necessários à rede elétrica para que esse ponto perca sua importância estratégica. Tudo parece estar de outra cor, ao menos hoje.

Mas poucos dias depois, os tons sombrios voltaram a dominar a situação. Aly havia tido alguns desentendimentos sérios com os chefes de sua zona e agora estava no lago, embora sem dizer, relutante em retornar, adiando a viagem de volta. Na zona recentemente abandonada do Front de Forcé, a ação caía completamente. Havíamos enviado buscar de Kigoma alguns cilindros de oxigênio e acetileno para tentar sabotar a linha elétrica com a tocha, mas enfrentamos mil dificuldades para transportá-los devido ao peso e à má disposição das pessoas; além disso, não queriam realizar nenhuma ação sem que a equipe principal dos cubanos estivesse lá; as explorações para encontrar um local de onde bombardear o tubo coletor de água da planta hidrelétrica não deram resultados positivos. E aqui, após o primeiro momento de euforia, os soldados se cansaram da vida ativa e exigiam voltar ao doce descanso de sua Base Superior.

Onde a situação parecia mais sombria era no domínio das relações entre Masengo e Kabila com os chefes da região de Fizi, e da revolução com o governo da Tanzânia. Kabila e Masengo chegaram a Kibamba, mas, imediatamente, recebemos a notícia de que as autoridades da Tanzânia se recusavam a entregar uma série de armas que havíamos solicitado, incluindo as desejadas espoletas para minas antitanque, e exigiam a presença imediata de Kabila. Sabemos que isso foi verdade, pois o enviado para buscar as armas foi Changa, nosso “almirante”, e foi a ele que deram a resposta de que nada seria entregue e que Kabila deveria ir pessoalmente falar com o governo. A única vez que ele havia tentado cruzar – pelo menos não havia como provar o contrário –, Kabila foi forçado a retornar para discutir quem sabe qual problema.

Na base do lago, prenderam vários membros do grupo rival de Fizi, que estavam fazendo propaganda subversiva na região; Masengo não tinha prisão adequada para mantê-los e decidiu enviá-los para Uvira sob custódia. Decidiu levá-los pessoalmente e aproveitar a viagem para fazer uma inspeção na área em questão. Saíram de barco. Esta é a versão de Aly sobre os acontecimentos; ela dá uma ideia clara da virada dos eventos:

8 – 9 – 65

Do companheiro: Aly

Para o companheiro: Tatú

Assunto: Viagem do companheiro Tom a Kasima
Viagem do companheiro Masengo a Changa e Aly a Uvira

Saímos no dia 16 às 21:00 para deixar o companheiro Tom em Kasima e continuar viagem até Uvira, para levar os três prisioneiros contrarrevolucionários, deixar um armamento e inspecionar a região, o que seria feito por Masengo.

Chegamos a Kasima às 24:30. Ao chegar a Kasima, o companheiro Masengo mandou subir o chefe da esquadra no barco, mas subiu um combatente, informando-lhe que no barco estava o presidente Masengo, conversando com este e oferecendo-se para trazer cigarros e algumas bobagens no retorno.

Ao descer, o combatente exigiu sabão e, se não fosse entregue, o barco não poderia partir. O companheiro Tom desceu e disse à esquadra para não atirarem, desconsiderando o fato de que, ao se afastar uns 100 metros, o companheiro Tom.

Cada um disparou alguns tiros e fugiu, sendo um deles posteriormente capturado.

O companheiro Masengo chamou os combatentes e chefes à praia, dando-lhes a ordem de capturar o restante da esquadra, a qual ele pegaria no retorno.

Continuamos viagem até Uvira, mas ao chegar em Mubembe às 9:00, o companheiro Masengo disse que pararíamos para continuar viagem à noite.

Neste vilarejo, fomos recebidos com bastante frieza, com Masengo conversando com o presidente e um companheiro estudante da China para que reunissem a população e realizassem uma assembleia para informar sobre a situação política.

Por volta das 12:30, começou a assembleia, que se prolongou até as 17:00. Nesse momento, o companheiro Ernesto se aproximou e nos disse para não dizer nada, mas que queriam que libertássemos os prisioneiros ou, caso contrário, haveria sangue.

Às 17:30, o companheiro Masengo nos disse que íamos sair, recolhendo e descendo até a praia. Já na praia, o companheiro Masengo nos disse para subirmos no barco; ao demorar um pouco, Ernesto nos chamou de volta e disse que se fôssemos bobos, iriam disparar contra o barco. Imediatamente começaram a tomar posições; de forma rude, mandaram descer os prisioneiros para uma esquadra, levando-os sem que houvesse qualquer reação, até que um dos marinheiros engatilhou seu fuzil e avançou contra os insubordinados, seguido por Masengo com outros; começaram a dar apitos para reunir a tropa, conseguindo capturar onze soldados, mas não os prisioneiros, que estavam desenvolvendo uma ampla campanha a favor do grupo rival, o que, pelo visto, parece ter cativado os soldados.

A pressão feita por estes e os relatórios recebidos tornaram impossível continuar a viagem para Uvira, pois adiante a situação estava ainda pior.

Sabe-se que os que levaram os prisioneiros pertencem a Fizi e Baraka, mencionando outros homens que já não recordo, pois não quis anotar nada diante deles.

Quero lhe fazer saber que Masengo em nenhum momento se aproximou de nós para nos prevenir sobre o perigo que existia naquele lugar, e que ele sabia da existência desse perigo, pois isso era de conhecimento popular, exceto para nós, que não dominávamos claramente o idioma e não participamos da assembleia onde tudo isso foi discutido, mas ele sim.

Segundo soubemos por Ernesto, esta situação não era nova.

Gostaria de saber, diante desses fatos, o que fazer, qual deve ser nossa atitude, já que das palavras as coisas estão passando para os fatos, e fatos perigosos.

No que se refere a você, deve ter cuidado, muito cuidado, pois eles, ou seja, os insubordinados, têm uma força considerável e nós não os conhecemos.

Ao voltar, passamos por Kasima e recolhemos o político, mas não os que deveriam estar prisioneiros, pois esses ainda não foram capturados.

De volta, em um vilarejo, apesar de terem sido feitas as sinalizações que foram ensinadas na noite anterior, abriram fogo.

Aguardando sua rápida resposta,

Revolucionariamente, Aly

É bom esclarecer que a desconfiança de Aly não tem fundamento, já que o próprio Masengo deveria subir ao barco e estaria exposto aos mesmos perigos.

Masengo me enviou quase simultaneamente uma carta que indica como os companheiros chefes da Revolução congolesa se sentiam inseguros. Está datada de Kibamba, 6 de setembro.

Ao camarada doutor Tatú Makungo

Camarada doutor:

Depois de alguns dias de separação, venho saudar-lhe. No quadro militar, segui seus conselhos, ou seja, o camarada tenente-coronel Lambert coordenará as atividades das frentes Lulimba – Makungo e Kalonda – Kibuye.

O camarada Kabila e eu estávamos prontos para fazer-lhe uma visita, infelizmente as circunstâncias não nos permitem realizar este programa no momento. Cinco dias após nossa chegada a Kibamba, o camarada Kabila recebeu uma ligação urgente do presidente Nyerere, da Tanzânia. A situação política no interior do país não é muito grave, esperamos que, com nosso esforço, possamos superar algumas dificuldades causadas pelos irresponsáveis. Hoje, procedemos à prisão de alguns elementos da banda contrarrevolucionária[9]e não houve nenhuma demonstração por parte da população, isso significa que a população entende seus defeitos. O chefe dessa banda é o traidor Gbenyé, que, após ter recebido muitos milhões, envia esses agentes por todos os lados com a intenção de enterrar a Revolução e depois negociar com os homens de Léopoldville.

Os imperialistas prometeram a Gbenyé deixá-lo formar um governo, caso ele consiga enterrar a Revolução e agrupar, no seio de seu futuro governo, todos os agentes do imperialismo, a fim de manter o neocolonialismo no Congo.

Gbenyé aproveitou a reunião de todos os chefes de estado do leste africano – Tanzânia, Uganda, Quênia – e declarou que devemos resolver nossos problemas por nós mesmos com Léopoldville, prometendo-lhes que, após a reconciliação com Léopoldville, faríamos a federação com os estados do leste africano. É por isso que chamaram o camarada Kabila para Dar es Salaam, pode ser com a intenção de nos fazer pressão; eles até recusaram que o camarada Kabila fosse acompanhado por algum de nós até Dar es Salaam.

Apesar de tudo isso, nunca estaremos de acordo com essa reconciliação. Pedimos que intervenha com sua embaixada a respeito.

Além disso, informo que hoje parto para Uvira acompanhado do capitão cubano Aly e, após meu retorno, também irei a Kibamba e espero encontrar sua resposta sobre esses assuntos, especialmente seus bons conselhos sobre o problema que expressei acima.

Acreditamos que os grandes líderes africanos não querem a libertação completa do Congo, por medo de que, quando o Congo estiver completamente livre, com verdadeiros revolucionários à frente, toda a África estará em risco de seguir o exemplo do Congo.

De qualquer forma, a situação ainda não é grave, estamos quase certos de que conseguiremos atravessar esse período.

Com base no que acabei de escrever, espero que você possa nos dar algumas diretrizes a seguir para resolver alguns problemas desse tipo.

Na carta são levantadas várias questões interessantes: a ação de Gbenyé e sua ligação com os imperialistas, que não está comprovada até o extremo que Masengo indica; suas promessas aos líderes africanos, que também não podemos confirmar, e a pressão que Dar es Salaam fez sobre Kabila, a qual de fato existiu. É digno de nota o movimento em direção aos cubanos neste momento, o que deveria ter ocorrido antes, em uma situação mais favorável para nós, já que a ofensiva do exército inimigo estava prestes a ser desencadeada. Respondi imediatamente nos seguintes termos:

Camarada querido,

Acabei de falar com seu enviado, o camarada Charles Bemba; ele poderá lhe dizer como viu a situação, mas farei um pequeno balanço.

Pelo que me parece, nós demonstramos até hoje a possibilidade real de permanecermos na planície; depois das ações na frente de Mundandi, acabamos de realizar uma emboscada onde há de sete a oito soldados inimigos mortos e seis armas capturadas[10]. Colocamos emboscadas nos dois caminhos, o que vai de Nyangi até Lulimba e na rota Force-Lulimba.

Acredito que devemos insistir nesta zona e tentar expulsar os tshombistas que estão perto de Lulimba para abrir um caminho até o lago. Conheço os problemas que há em Baraka e Fizi, mas seria muito importante para nós ter um caminho direto para os abastecimentos.

Sobre os problemas que você me expôs: primeiramente, deve estar certo de que nós o apoiaremos com o governo da Tanzânia e em suas necessidades, na medida de nossas forças. Gostaria de falar com você, mas compreendo suas dificuldades para sair do Estado-Maior. Em alguns dias estarei livre para ir falar com você. Depois, gostaria de visitar outras regiões dessa mesma frente e peço que não me retenha no lago; minha função é esta que estou fazendo agora.

Como você, sou otimista a longo prazo, mas é necessário dar mais atenção à organização política e militar. Avançamos, mas não o suficiente, e podemos avançar mais, combatendo mais. A luta é a grande escola do soldado. Por outro lado, nossa grande fonte de abastecimento de armas é o exército inimigo; se não nos permitem usar o lago, temos o campo de batalha.

Saúdo sua decisão de nomear o camarada Lambert como coordenador, apesar de seu papel ser mais difícil. Seu verdadeiro cargo, em minha opinião, deveria ser chefe da frente. Também chamo a atenção para o fato de que os camaradas de Ruanda lutaram muito bem conosco e já o fizeram com os camaradas congoleses. O capitão Zakarias é um sujeito valente, apesar de alguns defeitos que podem ser corrigidos com o tempo.

O ponto sobre o qual é necessário insistir é a política em relação aos camponeses. Sem o apoio da população, não conseguiremos ter verdadeiros êxitos. Espero falar com você, pessoalmente, de forma mais detalhada sobre esse ponto.

Saudações revolucionárias, Tatú

Ainda mantinha um tom otimista que durou algum tempo; mal ou bem, fizemos algumas baixas ao inimigo e considerávamos que tínhamos possibilidades de manter uma luta de desgaste que os forçaria a abandonar determinados pontos por serem muito custosos.

Nesses dias chegaram os tão anunciados mensageiros, que resultaram ser Aragonés, Fernández Mell e Margolles, que vinham para ficar na frente; ao saber das personalidades dos companheiros que chegavam, temi que estivessem trazendo alguma mensagem me instando a retornar para Cuba ou a abandonar a luta, porque não conseguia entender que o secretário de Organização do Partido deixasse seu cargo para vir ao Congo, ainda mais em uma situação como essa, onde nada estava definido e, ao contrário, poderiam ser citados fatos negativos. Aragonés insistiu em vir e Fidel consentiu; o mesmo aconteceu com Margolles; Fernández Mell, velho companheiro de luta, era o homem que havia sido solicitado por Cuba com a intenção de reforçar a estrutura de comando. Karim também se juntou, assumindo o lugar de Tom como "político", devido ao seu maior desenvolvimento ideológico e cultural.

Os três primeiros entraram clandestinamente, como médicos, pois não se sabia se realmente poderiam ficar, dada a sua condição de brancos, mas nós tínhamos uma posição que nos permitia fazer praticamente o que quiséssemos em nosso campo; o problema começava quando tentávamos insurgir no campo congolês para organizar as coisas.

O companheiro Aragonés, devido ao seu tamanho, recebeu o nome swahili de “Tembo” – elefante – e o companheiro Fernández Mell, por seu caráter, o de “Siki” – vinagre. Os demais, conforme saíam de um vocabulário. Tembo recebeu na ficha de pessoal o número 120. Contando as baixas que havíamos tido: quatro mortos, dois que retornaram e o companheiro Changa, que estava na lista mas cujas funções se desenrolavam em Kigoma e no cruzamento do lago, tínhamos 113 homens e, descontando os quatro médicos, 107 de combate. Era uma força de certa magnitude para tentar algo, mas, como se viu, por diversas circunstâncias, que não pude ou não soube evitar, estava dispersa em uma vasta área e no momento da ação nunca se podia contar com mais de 30 ou 40 homens. Se a isso somarmos o fato de que praticamente todos sofreram, e alguns muito mais de uma vez, com febres maláricas, convenhamos que não era uma força capaz de decidir o resultado de uma campanha; poderia ter constituído o núcleo de um exército com novas características se as condições dos companheiros congoleses fossem outras.

A moral das nossas tropas melhorou um pouco, conforme se pode deduzir do seguinte fato: Abdallah, Anzali e Baati, três dos companheiros que haviam sugerido abandonar a luta, solicitaram o reintegração com todos os deveres.

Parecia que ao Exército de Libertação também estavam chegando reforços, na forma de contingentes treinados na China e na Bulgária. A primeira preocupação desses rapazes era tirar quinze dias de férias para visitar suas famílias – os que as tinham ali –; depois esticariam esse prazo, pois o consideravam curto. De qualquer forma, eram quadros treinados pela Revolução, não podiam se arriscar no combate, seria uma irresponsabilidade; vinham para compartilhar com seus companheiros a montanha de conhecimentos acumulados em seis meses de estudos teóricos, mas não se podia cometer o crime de lesa-revolução de fazê-los combater.

Esse critério era mantido pelos grupos, independentemente de terem vindo da China, Bulgária ou da URSS. As tentativas de preparação dos estudantes, que provinham de meios pequeno-burgueses do Congo, com toda sua carga de ressentimento e desejo de imitar os colonialistas, traziam essas consequências.

Escolhiam-se estudantes que falavam francês ou filhos de caciques políticos que haviam recebido tudo de negativo da cultura europeia e nada do espírito revolucionário que nasceu em seu proletariado. Voltavam superficialmente revestidos de marxismo, imbuídos de sua importância de “quadros” e com um desmesurado desejo de mando, que se traduzia em atitudes de indisciplina e até conspiração.

Os combatentes humildes, capazes de dar a vida por uma causa que mal conseguiam entender, eram desconhecidos pelos dirigentes que permaneciam afastados dos centros de luta e carentes de quadros revolucionários que os ajudassem. Nosso esforço foi voltado para tentar descobri-los entre a folhagem, mas o tempo acabou nos derrotando.





TOMANDO O PULSO


Era necessário manter a ação na pista de Katenga a Lulimba, tentando 

impedir a passagem dos reforços, para manter reduzido o número de tropas isoladas neste último ponto e tentar o ataque. As emboscadas foram dobradas, colocando-se à frente Pombo e Nane, e começamos a lutar em torno de um ponto que rompíamos dia após dia e o inimigo arrumava com grande rapidez, até que, definitivamente, colocou ali uma forte guarnição que nos impediu de agir dali em diante.

Após a exploração do caminho interno, enviando à frente Azima com um pequeno grupo, parti com destino a Lulimba; era um dia nublado com chuvas intermitentes que não nos permitiam avançar muito, obrigando-nos a buscar abrigo em algumas das casas abandonadas que abundam na rota, que também já estava em desuso antes dos últimos acontecimentos que abalaram a região. Por volta do meio-dia, ouvimos ruídos de combate com grande uso da aviação em direção à emboscada; soubemos de seu resultado vários dias depois, por meio de comunicação de Moja: os guardas haviam perfurado nossas defesas a custo de algumas baixas em tanques e, provavelmente, em homens, reforçando Lulimba. A partir desse ponto, também avançavam tropas para ajudar seus companheiros na ruptura, o que faz pensar que ali nunca houve 53 homens, como indicava a lista de pagamentos capturada, mas sim muito mais. Achamos, em determinado momento, que a luta era por Lulimba, mas, na verdade, estavam reforçando os postos-chaves para iniciar uma ofensiva. Suspeitamos disso mais tarde pelos grandes trabalhos de fortificação feitos em Front de Forcé e Nyangi, mas não tínhamos informações devido à nossa falta de inteligência no campo inimigo.

Ao meio-dia, encontramos Azima, de volta de sua exploração; ele havia chegado pelo caminho até uma aldeia que chamávamos de Lulimba, não encontrando guardas. Esse caminho corre paralelo às posições ocupadas pelos rebeldes na montanha, até o ponto de junção com a estrada que vem de Front de Forcé e segue diretamente para as colinas, subindo pelas partes mais baixas e acessíveis.

Azima nos relatou como havia continuado a exploração por um quilômetro a partir da junção, pela estrada que parecia mais importante, em direção ao rio Kimbi, sem encontrar vestígios humanos; além disso, haviam ido explorar o ponto chamado a Missão, uma antiga igreja protestante abandonada; ao transitar por esse caminho de terra de ninguém, foram vistos pelos observadores nas colinas e, a uma distância de seis quilômetros, receberam dezessete tiros de canhão, vários disparos de morteiro e tiros de outras armas que ele não soube precisar. Os tiros de canhão foram feitos com alguma precisão, mas atirar de maneira parabólica em seis homens marchando por um caminho é tarefa difícil; o resultado foi um desperdício monstruoso de projéteis, disparados sobre suspeitos, em uma área que deveria estar cheia de avanços.

Com todos esses antecedentes, resolvemos fazer uma pausa no caminho e dormir; como a distância era longa, era muito cansativo fazer o percurso em um dia, e precisávamos enviar alguém à frente para avisar o Estado-Maior de Lubonja que íamos pela estrada do planalto. Fizemos isso e, no dia seguinte, contactamos os avanços enviados pela colina, respondendo ao nosso aviso, que nos conduziram até a barreira de Lulimba, na montanha.

Durante o trajeto, pudemos observar a grande quantidade de aldeias de camponeses instaladas na selva, ao pé da montanha, em locais com água. Estavam a dois, três, quatro quilômetros da estrada, e os camponeses haviam construído casas primitivas, alimentando-se dos novos plantios ou dos antigos próximos à rota, sendo os mais dispostos a correr o risco de um encontro com o exército; além disso, algo de caça. Conversamos longamente com os camponeses, pedi a Makungo um médico para alguns doentes, pois não carregávamos medicamentos, e prometi que, a cada quinze dias, os médicos passariam fazendo percursos regulares.

A barreira do tenente-coronel Lambert era uma agrupação de pequenas cabanas – com seus respectivos birulos – feitas de palha ou zinco, todas à beira da estrada, sem vegetação que as escondesse, sem trincheiras ou abrigos de qualquer tipo e apenas com a frágil proteção de um par de metralhadoras antiaéreas. A defesa amplamente utilizada pelos soldados era correr para um capinzal próximo e se esconder quando a aviação chegava. Esta não havia feito incursões sérias, apesar da visibilidade da posição. Também não tinham fortificações na linha de frente de defesa, onde havia algumas bazucas com vigias – as trincheiras sempre foram um problema, pois, por algum temor supersticioso, os soldados congoleses evitam se enterrar em buracos cavados por eles mesmos e não fabricam nenhuma defesa sólida para resistir aos ataques. O ponto forte da posição estava dado pela inclinação da ladeira que dominava o caminho, serpenteando entre as colinas, de onde se podia atacar facilmente uma tropa em ascensão, desde que esta avançasse apenas pela rota. Se enviassem infantaria pelos flancos, não haveria ninguém para detê-los e poderiam dominar a posição quase sem baixas.

Havia muito pouca gente na barreira e nenhum chefe. Pensávamos em marchar imediatamente para Lubonja, mas nos mandaram avisar que um comandante subiria. Ele chegou no dia seguinte, nos informando que o tenente-coronel Lambert estava em Fizi porque sua filha estava doente; antes ele havia ido ao lago e fazia um mês e meio que não pisava no acampamento. O responsável pela tropa passava o tempo em Lubonja, que era qualificado como Estado-Maior, e na barreira ficava algum chefe de menor categoria – o que dava na mesma, pois ninguém tinha autoridade sobre os homens. A comida era fornecida pelos camponeses que deviam marchar até o acampamento desde a região de Lubonja, caminhando uns 15 quilômetros; de vez em quando caçavam algo nas proximidades: havia muito veado.

Quando os alimentos chegavam, principalmente mandioca, começava o trabalho de moagem para fazer o bukali de forma individual, já que não havia nenhuma tradição de comida em conjunto; cada um devia preparar sua ração com o que havia conseguido, tornando o acampamento uma gigantesca cozinha múltipla, onde até os vigias participavam da desordem, que era total.

Fui convidado a falar para a tropa, um grupo menor de cem homens, nem todos armados, e lhes disse o "discurso" habitual: os homens armados não são soldados, são simplesmente isso, homens armados; o soldado revolucionário deve se formar no combate, mas ali em cima não havia combate. Convidei-os a descer, cubanos e congoleses em igualdade de condições, já que viemos para passar juntos os sofrimentos da luta. Essa seria muito dura; não se devia esperar uma paz rápida e não se poderia esperar nenhuma vitória sem grandes sacrifícios. Expliquei também que, frente às armas modernas, a dawa nem sempre era eficaz e que a morte seria uma companheira constante nas horas da luta. Tudo isso no meu francês básico, traduzido por Charles Bemba para o kibembe, que é a língua materna dessa região.

O comandante estava disposto a descer com sua gente, mas não a atacar sem uma ordem superior; não adiantava nada descer aquele pequeno e heterogêneo grupo para o planalto, se não houvesse uma ordem de ataque contra Lulimba. Resolvi me dirigir a Fizi para tentar convencer Lambert. Chegamos primeiro a Lubonja, a cerca de 15 quilômetros por estrada da avançada, agora no grande planalto de Fizi. A recepção dos camponeses foi muito boa e se materializou em comida. Sentia-se um certo ambiente de paz e segurança, já que fazia muito tempo que os guardas não faziam incursões nas montanhas, e toda essa agrupação gozava de um relativo bem-estar, caracterizado por uma comida mais variada, como batatas, cebolas e outros alimentos, além de uma situação estável. No dia seguinte, deixamos esse ponto e já havíamos caminhado 10 quilômetros quando apareceu um caminhão levando tropas para Lubonja e, na volta, nos levou até Fizi. No veículo, viajava um indivíduo com todos os sinais de intoxicação alcoólica, vomitando espantosamente; soube no dia seguinte que ele havia morrido no hospital, ou melhor, no receptáculo de Fizi, pois naquele lugar não havia médicos nem assistência de qualquer tipo.

Durante os mais de quarenta quilômetros de estrada, pudemos observar várias características da região. Em primeiro lugar, a grande quantidade de homens armados vagando por todos os vilarejos por onde passamos; em cada um deles havia um chefe que estava em sua casa ou na casa de um amigo, limpo, bem alimentado, bem bebido, em geral. Em segundo lugar, os soldados pareciam gozar de grande liberdade e estarem muito contentes com essa situação, passeando sempre com a arma sobre o ombro; não se percebia o menor sinal de disciplina, de ânimo para a luta ou de organização. Em terceiro lugar, o grande distanciamento entre os homens de Lambert e os de Moulane, que se olhavam como cães e gatos; a Charles, o inspetor de Masengo, o identificaram imediatamente e lhe deram um grande gelo.

Fizi é uma pequena vila, mas, ainda assim, a maior que conheci no Congo. Tem dois bairros bem delimitados: um pequeno, com casas de alvenaria, algumas bem modernas, e o bairro africano com as cabanas habituais, com muita miséria, sem água nem higiene alguma. Este era o mais povoado, com muitos refugiados de outras regiões que haviam ido convergir naquele ponto; o outro pertencente aos hierarcas e à tropa.

Fizi está situada no topo da elevação que sobe do lago, a 37 quilômetros de Baraka, em uma pradaria com pouca vegetação; sua única defesa era uma metralhadora antiaérea, operada por um mercenário grego feito prisioneiro em um combate na zona de Lulimba, e com essa defesa precária estavam muito satisfeitos. O general Moulane me recebeu de forma muito fria, pois conhecia o objetivo da minha viagem e, dada a tensão entre ele e Lambert, considerou apropriado demonstrar seu desagrado. Minha situação era um pouco estranha: afastado pelo general Moulane, anfitrião cortês e frio, solicitado por um Lambert exuberante, cheio de amabilidades, eu era o campo de batalha de um combate sem exteriorização. O resultado foi que nos deram duas refeições, uma do general e outra de Lambert. Eles se tratavam com respeito mútuo e Lambert se colocava de maneira exemplar diante do general.

Tivemos uma pequena reunião na qual informei ao major-general sobre os trabalhos que havíamos realizado em toda a frente e minha intenção de falar com o companheiro Lambert para ver se podia fazer algo na zona de Lulimba, sem revelar muito. O general me escutou em silêncio, depois deu suas ordens em swahili a um dos assistentes – não falava francês – e este começou a contar as grandes ações realizadas em Muenga, cidade situada a uns 200 quilômetros ao norte, que tinham acabado de tomar. Os troféus eram uma bandeira e uma espingarda que tinham tirado de um sacerdote belga. Segundo eles, não haviam conseguido avançar mais e tomar outras vilas devido à falta de material e armas; haviam feito dois prisioneiros, mas, palavras textuais: "Você sabe, a disciplina não é muito grande e eles os mataram antes de chegar aqui", os patriotas perderam três homens. Agora queriam reforçar Muenga com armas pesadas e haviam pedido essas armas, juntamente com munições, ao lago. Depois, iniciariam uma ofensiva em direção a Bukavu por essa zona onde tinham cerca de 300 armas. Não quis fazer muitas perguntas, pois isso poderia revelar seu tom irônico ou de desconfiança e deixei que se alongassem nas explicações, embora não fosse muito lógico que 300 homens, depois de tomar a posição em furiosa batalha, não conseguissem mais troféus do que uma bandeira e a espingarda do padre da vila.

À noite, o "canchanchán" do general me explicou, junto com um coronel da zona de Kasengo, as características de todas as suas vastas posses territoriais. Falaram de Uvira, como um setor que estava em sua zona, mas que tinha como chefe o coronel Bidalila, que não respondia às suas ordens diretas; o coronel de Kasengo, no entanto, era um subordinado fiel do general. Ambos reclamavam da falta de armas; o de Kasengo estava há muito tempo esperando por ali sem que os equipamentos chegassem. Perguntei por que não tinha dado uma passada em Kibamba e ele me respondeu que podia esperar que os pedidos chegassem a Baraka, de onde os transportariam com seus homens até Kasengo e iniciariam a ofensiva.

Ambos, o general Moulane e o coronel de Kasengo, eram veteranos que haviam começado a luta com Patrice Lumumba; eles não disseram isso explicitamente, o "canchanchán" se encarregou de explicar que eles sim haviam começado a luta, que eram verdadeiros revolucionários, enquanto Masengo e Kabila se haviam juntado depois e agora queriam capitalizar tudo. Iniciaram um ataque direto contra esses companheiros, acusando-os de sabotar suas ações; segundo o informante, como Kabila e Masengo eram do Norte de Katanga, enviavam armas e suprimentos para lá, deixando essa zona, leal a Soumialot, em total miséria, e o mesmo acontecia com Kasengo. Além disso, não respeitavam a hierarquia de comando; havia ali um general e, no entanto, o tenente-coronel Lambert, que era chefe de operações da brigada, tinha total independência e resolvia seus assuntos com Kabila e Masengo, conseguindo uma quantidade de armas e munições que eles não conseguiam, relaxando assim a disciplina e impedindo o avanço da revolução.

Ambos, a gente de Kasengo e a de Fizi, me pediram cubanos. Expliquei que estava tentando concentrar minhas forças escassas e não queria diluí-las na vasta frente, que um ou dois cubanos não mudariam a situação; os convidei a irem ao lago, onde nossos companheiros poderiam treiná-los no manuseio das metralhadoras e também havia instrutores para canhões e morteiros; assim, poderiam contar com seus próprios servidores nessas armas sem ter que depender de um mercenário como no caso de Fizi. Essa argumentação não os convenceu minimamente.

O general me convidou a ir a Baraka e a Mbolo, sua vila. Diplomaticamente, aceitei, mas deveríamos voltar no mesmo dia, pois precisávamos retornar à zona de Lulimba. Antes de sairmos, me levaram para dar uma volta por Fizi e tive a oportunidade de examinar um ferido proveniente de Kasengo. A bala havia atravessado sua coxa, e a ferida, sem tratamento, estava infectada, exalando um cheiro nauseante. Recomendei seu envio imediato a Kibamba – o ferido já estava há quinze dias nessas condições – para ser tratado pelos médicos residentes ali, e sugeri que o transferissem imediatamente para Baraka, aproveitando a nossa viagem. Consideraram mais importante levar uma escolta numerosa no caminhão e deixar o ferido em Fizi; não tive mais notícias dele, mas imagino que tenha passado muito mal.

O importante era organizar o show; o general Moulane colocou seu uniforme de combate, consistindo em um capacete de motociclista com uma pele de leopardo por cima, o que lhe conferia uma aparência bastante ridícula, fazendo com que Tumaini o apelidasse de Cosmonauta. Marchando muito lentamente e parando a cada quatro passos, chegamos a Baraka, uma pequena vila às margens do lago, onde mais uma vez apreciamos as características repetidamente enumeradas de desorganização.

Baraka parecia ter sido relativamente próspera, até uma empacotadora de algodão tinha, mas a guerra arruinou tudo e a fábrica foi bombardeada. A uns 30 quilômetros ao norte, à margem do lago, está Mbolo; segue-se uma via em muito mau estado que corre paralela à costa. Aproximadamente a cada 1.000 metros encontrávamos o que chamavam de barreira; com dois paus e um cordão, qualquer um improvisava um sinal de parada, com a consistência do fio que a formava, e eram exigidos documentos dos viajantes. Devido à escassez de gasolina, os únicos que viajavam eram os funcionários e a virtude desses grupos era dispersar as forças, em vez de concentrá-las. Em Mbolo, houve uma troca de pessoal; os soldados que vinham no caminhão de escolta substituiriam três que iriam para Fizi em suas férias; organizou-se uma parada militar com um discurso do general Moulane. Ali, o ridículo atingiu uma dimensão chaplinesca; eu tinha a sensação de estar assistindo a um filme cômico ruim, entediado e com fome, enquanto os chefes gritavam, davam pontapés no chão e faziam grandes giros, e os pobres soldados iam e vinham, desapareciam e voltavam a aparecer, fazendo suas evoluções. O chefe do destacamento era um antigo suboficial do exército belga. Cada vez que uma tropa caía nas mãos de um desses suboficiais, aprendia toda a complicada liturgia da disciplina militar, com seus matizes locais, sem nunca ir além disso, mas isso servia para se mobilizar, organizando uma parada sempre que um mosquito voava na área. O pior é que os soldados absorvem com mais ânimo todas essas bobagens do que o ensino da tática.

Por fim, cada um foi para o seu lado e o general nos levou à sua casa e, com toda a amabilidade, nos fez repor as forças do dia. Nessa mesma noite, voltamos para Fizi, conversando com Lambert para sair imediatamente. Além da hostilidade reinante, da frieza nas relações, bem diferentes da atitude geral dos congoleses conosco, havia tantas evidências de desordem, de podridão, que era visível a necessidade de medidas muito sérias e uma grande limpeza. Foi isso que disse a Lambert quando o vi, e ele, modestamente, me respondeu que assim era o general Moulane, que em seu setor, como eu tinha visto, não aconteciam essas coisas.

Saímos no dia seguinte de jipe, mas logo acabou a gasolina e nos deixaram abandonados no caminho, então seguimos a pé.

À tarde, paramos para descansar na casa de um amigo de Lambert, cujo negócio era o comércio de pombe. O coronel nos avisou que ia ver se caçava um pouco e saiu; pouco depois chegou o produto da caça: um pedaço de carne que comemos com o apetite habitual, enquanto Lambert, muito mais tarde, chegou embriagado, com sinais de abundante pombe, mas mantendo a compostura – embora estivesse pegando umas “notas” simpáticas. Encontramos um grupo de quinze a vinte recrutas de Lambert que haviam decidido ir embora porque não tinham recebido armas; ele os repreendeu severamente, falou com um grande ênfase, dada a facilidade de palavra que o estado de euforia lhe dava. Ali mesmo pegaram nossas bagagens e nos acompanharam até Lubonja; eu achava que voltariam para o front, mas na verdade, apenas fizeram o papel de carregadores e depois foram libertados.

Falamos então com Lambert sobre os planos futuros; ele me sugeriu deixar o Estado-Maior em Lubonja, mas argumentei que esse ponto ficava a cerca de 25 quilômetros do inimigo. Uma tropa que contava, com boa vontade, com 350 homens não poderia ter seu Estado-Maior a essa distância; ali poderiam deixar os impedimentos, mas nós deveríamos estar com nossos combatentes no front. Ele aceitou, mas não muito contente, e marcamos para o dia seguinte a saída. Nos levou para ver seu depósito de munições, situado a cerca de cinco quilômetros de Lubonja, em um lugar bem escondido. Realmente, era importante para as condições do Congo: grande quantidade de munições, armas, incluindo algumas que tinham tomado do inimigo em ações anteriores, na época em que ele estava mais fraco; morteiro 60 com seus obuses, bazucas belgas de tipo norte-americano que também tinham alguns projéteis, metralhadoras 50. Seu depósito estava muito melhor abastecido do que o de Fizi, o que dava certo peso à argumentação daquela gente.

Tínhamos planejado descer imediatamente para o planalto, encontrar as tropas de Lambert, as de Kalonda – Kibuye e as de Calixte, deixando apenas algumas emboscadas para impedir os reforços e cercar Lulimba de forma elástica, utilizando as tropas de Kalonda – Kibuye para a função dupla de atacar pela rota e impedir a entrada de reforços. Como reserva, tínhamos os homens da barreira do caminho que sai de Lulimba para Kabambare, também sob o comando de Lambert.

Saímos com todas essas boas intenções, mas não tínhamos nem deixado o povoado de Lubonja, após as respectivas assembleias e a dawa, quando apareceram as duas “tataguas” e dois B-26 e começaram um bombardeio sistemático contra o povoado. Depois de suportarmos quarenta e cinco minutos de bombardeio, houve um ou dois feridos leves, seis casas destruídas e alguns veículos atingidos pela metralha. Um comandante me explicou que o resultado da ação demonstrava o poder da dawa; apenas dois feridos muito leves. Achei prudente não começar uma discussão sobre a eficácia da aviação e as virtudes da dawa em um caso como esse, e deixamos a conversa por ali.

Ao chegar à barreira, começaram os conciliábulos e assembleias, ao final das quais Lambert me explicou que não era possível descer; entre outras coisas, tudo o que ele tinha eram 67 armas, e seus 350 homens haviam se espalhado pelos vilarejos próximos. Não tinha forças para realizar um ataque em regras; ele sairia imediatamente à procura dos “viajantes” e imporia a disciplina necessária.

Convenci-o a enviar um grupo de homens ao planalto para explorar e avançar um pouco no trabalho; eu iria com eles. Pela manhã, ele saiu com o primeiro grupo de homens, dizendo-me que me acompanharia por um tempo e depois iria à barreira de Kabambare buscar mais gente, e nos encontraríamos lá embaixo.

Ao chegar ao povoado que achávamos ser Lulimba, não havia ninguém, seguimos caminhando até o rio Kimbi e, a cerca de dois quilômetros do povoado, encontramos todas as tropas emboscadas; o povoado que chamávamos de Lulimba não era esse, o verdadeiro estava a uns quatro quilômetros, à beira do Kimbi. Lambert havia recebido notícias vantajosas de Kalonda – Kibuye informando sobre a destruição de todas as posições nesse ponto e que os guardas haviam se retirado para a selva; confiando nisso, mandou avançar tranquilamente e, ao chegar, quase se depararam com os guardas, que estavam fazendo seus exercícios em um acampamento próximo ao povoado e eram muitos. Foi organizada uma pequena emboscada e enviamos exploradores que calcularam entre 150 e 300 inimigos.

O essencial era concentrar o maior número de combatentes, organizá-los e iniciar um ataque sem grandes pretensões para atrair forças para esse ponto, mas primeiro precisávamos criar uma base mais forte e esperar que Lambert trouxesse seus famosos 350 homens. Nos retiramos para a Missão, que está a cerca de quatro quilômetros de Lulimba, para esperar os resultados das negociações com os diferentes chefes de barreiras; Lambert se encarregaria disso.




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