A História de Hussein, Ruayda e as oliveiras palestinas de Kobar
- Siqka
- 4 de mar. de 2024
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Artigo 15 Direito à nacionalidade. 1.Todo o indivíduo tem direito a ter uma nacionalidade. 2. Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua nacionalidade nem do direito de mudar de nacionalidade. Declaração Universal dos Direitos Humanos
As Oliveiras de Kobar
Na época do Império Otomano, a vila palestina de Kobar se estendia por uma colina, cobrindo quase dez mil dunums de oliveiras. Sob o calor escaldante, as árvores ofereciam sombra aos 400 agricultores residentes, enquanto, no inverno, seus troncos largos protegiam dezenas de famílias dos ventos frios do Mediterrâneo. O único sinal da presença humana entre os olivais era o minarete da antiga mesquita dedicada a Sheikh Ahmed.
Durante os primeiros anos do domínio britânico, o Avô Rayan, muçulmano devoto, decidiu empreender uma peregrinação até a cidade sagrada de Meca, saindo das sombras das oliveiras. A viagem era árdua e longa, realizada naquela época apenas por meio de caravanas de camelos.[1]
Em 1925, o peregrino se despediu da esposa, ainda segurando a filha caçula nos braços, dando as últimas recomendações aos filhos antes de partir. Hussein Rayan, o filho mais novo, correu desesperado pelas 48 casinhas de calcário até a extremidade da vila, tentando alcançar o pai, mas já era tarde demais para dizer adeus.
Semanas após a partida, a família recebeu a trágica notícia: o peregrino sucumbira durante a jornada, e seu corpo se perdera nas areias do Deserto. Hussein Ali Mohammad Rayan, órfão aos quatro anos, herdou as oliveiras, as terras e a responsabilidade de cultivá-las. À viúva restou a árdua tarefa de criar os filhos, administrar a casa e os animais, além de arar, plantar e colher o que as oliveiras forneciam, pois, o império britânico havia tomado as terras e os impostos dos otomanos.

A Revolta Palestina (1936-1939)
A imigração clandestina de judeus europeus, que desrespeitavam as cotas estabelecidas pelo mandato britânico, somada à exploração por parte dos ingleses, incitou um profundo sentimento de revolta entre os palestinos. Iniciando uma greve geral que perdurou seis meses, os palestinos se depararam com uma resposta repressiva da administração e das forças britânicas, que declararam estado de emergência e impuseram severas sanções, detenções e punições. Com o envio de reforços britânicos, os palestinos não tiveram escolha a não ser prosseguir com o levante armado contra a ocupação.[2]
A revolta nacionalista, que começou nas áreas urbanas, se estendeu para as regiões agrícolas. Enquanto os palestinos lutavam por sua nação contra os britânicos, os imigrantes judeus europeus continuavam estabelecendo kibutzim. A guerra e a ocupação pareciam se aproximar cada vez mais de Kobar.
Hussein Rayan, jovem demais para empunhar armas, desenvolveu sua própria estratégia de resistência. Sendo a única família na vila a possuir cabeças de gado, os britânicos impunham impostos sobre cada uma delas. Sempre que os cobradores de impostos subiam as colinas, Hussein corria para esconder o gado entre as oliveiras. Apesar da sua juventude, ele era incrivelmente astuto e conhecia as colinas muito melhor do que qualquer colonizador.
A Revolta Palestina, que teve início em 1936, estendeu-se até 1939, resultando em centenas de mortes entre os judeus e milhares de palestinos mortos. De acordo com dados britânicos, a polícia e o exército foram responsáveis por aproximadamente 20 mil mortes de palestinos e a execução de 108 deles. Durante esse período, um em cada dez homens entre 20 e 60 anos morreu, foi ferido ou exilado.
Apátridas
Hussein Rayan, responsável por aquilo que cativava, cresceu mais rápido que as oliveiras sob sua custódia. Assim como as árvores, suas raízes penetravam cada vez mais profundamente na terra palestina. Sobrevivente da Revolta Palestina, Nakba e dos avanços cada vez mais intensos do sionismo, entre uma guerra e outra, Hussein se casou. Consciente de que o topo da colina de Kobar e os troncos robustos das oliveiras não eram suficientes para conter a desordem imposta pelo sionismo, que lutava contra os palestinos para tomar e ocupar cada vez mais território, ele conhecia bem a vida de um órfão palestino. Temendo a mesma sina para os filhos que desejava ter, tomou a decisão mais difícil de sua vida: deixar para trás, mesmo que temporariamente, a imprevisibilidade derramada pelo sionismo em suas terras.
No verão de 1960, Hussein chegou sozinho ao Brasil. Foram cinco anos de trabalho árduo até conseguir juntar dinheiro suficiente para trazer sua esposa. Em Toledo, no Paraná, o casal finalmente encontrou uma casa para construir sua família, longe da guerra. Hussein frequentava a mesquita durante a semana e aos domingos, bem cedo, acordava os filhos para ajudar nas plantações dos amigos franciscanos, afinal, "O amor não consiste em olhar um para o outro, mas sim em olhar juntos para a mesma direção."
Os filhos cresceram, assim como a saudade de Hussein por seu lar. Poucos anos após sua chegada ao Brasil, a voz no rádio trouxe as péssimas notícias de que uma nova guerra havia eclodido entre Israel e os países vizinhos. Apesar de a guerra durar apenas seis dias, seus efeitos colaterais perseguiram Rayan. Mesmo separado por todo o Atlântico, teve sua nacionalidade roubada, tornando-se mais um apátrida entre os milhões de refugiados palestinos que tentavam encontrar um lugar para se estabelecer pelo mundo.
Após a Guerra dos Seis Dias, Israel usurpou todo o território que estava sob controle jordaniano, incluindo a vila de Kobar. Com a tomada dos novos territórios, o governo sionista proibiu o retorno de todos aqueles que foram expulsos ou fugiram da guerra. Hussein e sua família, ausentes e apátridas, agora corriam o risco de perder tudo o que haviam temporariamente deixado na Palestina.
Lei de Propriedade dos Ausentes (1950)
Em 1950, alguns anos após a assim chamada "independência", Israel promulgou, sem o consentimento ou a participação da sociedade civil, a Lei de Propriedade dos Ausentes. Essa legislação conferiu ao Estado o poder de apropriar-se de todos os bens móveis, imóveis, terras e contas bancárias dos palestinos, incluindo as oliveiras de Hussein Rayan. Este foi o principal instrumento utilizado por Israel para confiscar terras pertencentes aos refugiados, tanto internos quanto externos, sem oferecer qualquer forma de compensação pelos bens que foram roubados.
Lei de Aquisição de Terras (1953)
Como complemento à Lei de Propriedade dos Ausentes, foi promulgada a Lei de Aquisição de Terras, concedendo ao Estado de Israel o direito de redistribuir e vender terras pertencentes a palestinos ausentes para recém-chegados judeus. Por meio dessas duas leis, Israel confiscou 417 vilas e aldeias palestinas. O confisco – nome para roubo institucional – não era a única ferramenta utilizada. Munya Mardor, ex-oficial da Haganah, descreveria em seu livro:
“Mesmo a imigração ilegal e o desrespeito das leis restritivas de Aquisição de Terras não seriam suficientes. A Haganah teria de entrar a sério na luta contra a política do Livro Branco e libertar-se de todo e qualquer escrúpulo quanto ao uso das armas.” (MARDOR, 1980)[3]
Lei do Fundo Nacional Judaico (1958)
A legislação ainda vigente concede à autoridade governamental o poder de adquirir terras palestinas por meio do Fundo Nacional Judaico (FNJ), uma entidade fundada pela aristocracia judaica europeia com o único e exclusivo propósito de adquirir terras dos palestinos expulsos pelos israelenses. Essa lei proporciona ao FNJ benefícios fiscais na aquisição de terras e propriedades pertencentes aos ausentes.
Com a persistência da Lei de Propriedade dos Ausentes, que confisca os bens e terras dos palestinos expulsos, aliada à distribuição e vendas garantidas pela Lei de Aquisição de Terras, e complementada pela Lei do Fundo Nacional Judaico, o Estado de Israel detém atualmente 93% do território originalmente palestino.
Não nos esqueceremos
Hussein Rayan viveu grande parte de sua vida como um ausente apátrida. Ao longo desses anos, ele meticulosamente anotou todas as informações que sua memória permitia: a extensão de suas terras, o número de oliveiras em seus campos, e até mesmo os nomes de seus vizinhos. Tudo isso era uma estratégia para não ser derrotado pelo tempo e preservar sua identidade. Sua filha, Ruayda, cresceu testemunhando o desejo persistente de seu pai de um dia poder visitar as oliveiras que se tornaram tão significativas ao longo do tempo dedicado a elas.
Após 37 anos, Hussein finalmente conseguiu retornar para rever a família, amigos, terras e suas preciosas oliveiras. No entanto, após apenas 37 dias em sua pátria, o coração do palestino, que viveu com saudade por tanto tempo, não suportou e ele faleceu. Como era de sua vontade, Hussein Rayan foi sepultado na Palestina.
“Aqueles que passam por nós, não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós.” Antoine de Saint-Exupéry, o Pequeno Príncipe.
Em uma mesquita de Maringá, Ruayda, filha de Hussein e neta do peregrino que se perdeu no deserto, encontrou um amigo do seu falecido pai. Ele compartilhou que em uma de suas últimas conversas, Hussein havia expressado a convicção de que um dia sua filha voltaria para cuidar das oliveiras. Em 1999, Ruayda e seu marido decidiram se mudar para a Palestina. Ao partir, sua intenção era reconectar-se com suas raízes e explorar um pouco de sua própria história. Ao chegar na cidade de Kobar, ela descobriu que suas origens de alguma forma sempre a acompanharam. Com base nas memórias compartilhadas por seu pai e em suas anotações, Ruayda tinha um conhecimento profundo de tudo: terras, idioma, cultura, religião e das pessoas ao seu redor. Essa conexão íntima foi construída de tal forma que ela se tornou familiar com cada detalhe, mesmo sem ter conhecido essas pessoas pessoalmente.
Em um casamento, Ruayda encontrou um antigo amigo da família que morou no Brasil. O senhor, encantado ao ver a filha de Hussein Rayan, apresentou-a aos convidados dizendo: "Essa é a filha do tio Hussein!" Ruayda, pela primeira vez, deu rostos aos personagens das histórias contadas por seu pai, exceto por um senhor bem idoso que aguçou sua curiosidade.
– Esse é o senhor Hessami? – ela perguntou. Espantados, os convidados explicaram que Hessami havia falecido há muito tempo e que, há mais de dez anos, ninguém mencionava seu nome. A memória palestina transcende gerações e permanece arraigada na sociedade refugiada. Todos que celebravam o casamento, após a menção do velho Hessami, compartilharam suas histórias sobre o senhor já falecido. Mesmo Ruayda, que nunca o conheceu e jamais optou por herdar essas histórias, tinha algumas para contar.
Uma vez, Ben Gurion declarou que os israelenses deveriam fazer de tudo para garantir que os palestinos nunca retornassem, assegurando aos companheiros sionistas que "os velhos morrerão e os jovens esquecerão"[4]. Essa previsão mostrou-se equivocada. Sim, como em qualquer parte do mundo, os mais velhos faleceram, em grande parte assassinados pelo Estado de Israel. No entanto, isso não significa que o tempo tenha enfraquecido a identidade palestina. Pois, como o essencial é invisível aos olhos, a "palestinidade" dos mais jovens renovou suas forças na luta pelo direito de serem reconhecidos pelo que nunca deixaram de ser: palestinos.
"Eu não tinha esse direito, pois esse direito foi usurpado de meu pai e minha mãe." [...] “Pessoas que nasceram na Europa e nunca estiveram aqui, não tinham pais aqui, não tinham avós aqui, não tinham bisavós aqui, tinham o direito de vir para cá e tomar as terras de pessoas que a vida toda viveram aqui e herdaram essas terras de suas bisavós.” Ruayda
As memórias herdadas resistiram aos estragos da colonização britânica, à ocupação sionista e às inúmeras guerras. Finalmente, Ruayda as trouxe de volta para onde jamais deveriam ter saído. Assim como muitos outros palestinos, ela reencontrou seus sentimentos de pertencimento, profundamente enraizados no solo da pátria-mãe. Nascida no Brasil como a "filha do tio Hussein", ela é brasileira, mas toda sua identidade, moldada pelas experiências transmitidas por seu pai, assim como suas memórias, está entrelaçada com a Palestina, sua família, sua terra e sua cultura.
Ela não precisava residir na Palestina para ser palestina, pois essa identidade sempre a acompanhou, sendo a forma pela qual se enxergava como pessoa, embora a nacionalidade fosse necessária para exercer seus direitos como tal. Após obter sua nacionalidade, Ruayda assumiu a presidência do conselho de cidadãos brasileiros na Palestina, com o objetivo de recuperar para outros descendentes o que lhes havia sido injustamente retirado: sua nacionalidade.

[1] SIQUEIRA, L. Entrevista com Ruayda Rabah. Kobar. 2021.
[2] REICHERT, R. História da Palestina. São Paulo: Editora Herder (Universidade de São Paulo), 1972.
[3] MARDOR, M. Haganah: Como uma organização secreta transformou-se no exército de Israel. Rio de Janeiro: Portugália, 1980.
[4] MEIR, G. Minha Vida. Jerusalém. 1976.