Kevin Carter e o abutre do jornalismo
- Siqka
- 12 de jul. de 2024
- 5 min de leitura

Você já parou para pensar qual é o preço pago para jornalistas e fotógrafos documentarem guerras, fome e sofrimento humano? E já parou para pensar qual o preço um jornalista ou fotógrafo paga por documentar guerras, fome e sofrimento humano? O preço que jornalistas e fotógrafos pagam para nos trazer essas realidades sombrias é frequentemente altíssimo. Se, por um lado, eles documentam as consequências da nossa indiferença, por outro, o impacto em suas vidas pessoais é imensurável. Kevin Carter foi um fotojornalista sul-africano que o preço mais alto preço por mostrar ao mundo a realidade por vezes ignorada, tornando-se mais uma vítima de um ciclo de lucros e perdas que envolvem a mídia corporativa.
Contrariamente à ideia de que pessoas se acostumam com a violência, a realidade é que cada cena de horror deixa cicatrizes profundas. A dor e o trauma acumulados são comparáveis a quebrar o mesmo osso repetidamente, sem nunca deixar de sentir a dor. Kevin Carter era integrante do "Clube do Bang Bang", um grupo de fotógrafos brancos de classe média composto por Greg Marinovich, João Silva e Ken Oosterbroek. Esses profissionais capturaram imagens brutais de violência, assassinatos e injustiças durante o apartheid na África do Sul, expondo ao mundo as atrocidades, mas, sem nunca se acostumar com ela.
No livro "O Clube do Bang Bang", Marinovich e Silva detalham o impacto devastador de seu trabalho em suas vidas pessoais. Marinovich narra como a exposição constante à morte e à destruição não permitiu que ele se tornasse insensível.
"Em 1992, já tinha visto muitos cadáveres. Certa vez quis contá-los, numa tentativa de reconhecer verdadeiramente a existência deles, mas foi impossível. Difícil não se sentir perturbado com toda aquela morte." [...] "Era igualmente difícil não desligar as emoções. Eu não conseguia suportar o repetido impacto de uma completa reação emocional a cada cadáver ou pessoa ferida com que topava – precisaria ter sido um santo. Mas também não queria agir como os fotógrafos mais experientes pareciam fazer: desligar completamente." Greg Marinovich
Além das experiências de impacto emocional, Greg e João fazem outra denúncia. O “preço” pago pelas grandes mídias, principalmente as estrangeiras, não cobria o “valor” da sanidade dos profissionais em campo, pior ainda em caso de ferimento ou, no mais grave, morte. Durante o apartheid, as balas encontraram os corpos de Abdul e de Ken Oosterbroek. Após a morte, houve silêncio das empresas, que, no máximo, contribuíram com seus nomes acrescentados a obituários e não mais que uma coroa de flores. Nem mesmo após ganhar o Pulitzer, a condição de Greg ou dos outros fotógrafos do Clube do Bang Bang mudou; ele continuava lutando para encontrar trabalho e uma remuneração digna ao risco que corria. Com Kevin Carter, a situação foi ainda pior. Kevin encontrou nas drogas uma maneira de fugir dos rostos mortos que registrava com sua câmera e de silenciar, por alguns instantes, as vozes que o atormentavam durante a noite. O convite de João Silva para um trabalho no Sudão foi uma tentativa de resgatá-lo do abismo em que se encontrava.
O Sudão era apenas mais um entre os muitos países africanos mergulhados em um cenário pós-colonial de guerra civil, miséria e fome. Durante sua breve estadia no Sudão, Kevin Carter capturou uma foto das mais icônicas e perturbadoras do fotojornalismo, "A Menina e o Abutre". Embora tecnicamente simples, esta imagem transcendeu a estética e revelou a essência cruel da nossa “evolução” como seres humanos: A pele fina de uma criança, quase rasgada pelos ossos aparentes devido à fome, o peso da cabeça que em parte parece sobrecarregar o frágil corpo, ao mesmo tempo em que adota uma postura de súplica e, para completar a composição, ao fundo um abutre à espreita, como se aguardando o momento de uma morte inevitável.
Kevin ganhou o Prêmio Pulitzer por aquela foto — quantas vítimas um Pulitzer ou um Nobel fizeram na história? — mas a imagem o perseguiria até o fim de sua vida. Embora, na época, a foto estivesse sendo reproduzida mundialmente e ajudando a angariar fundos para organizações humanitárias que prestavam assistência ao Sudão, Kevin começou a ser questionado por sua postura ética e moral em relação à criança. As dúvidas giravam em torno de se ele havia ajudado a criança, se espantou o abutre ou o que aconteceu após a foto. Embora a mídia tivesse encontrado vários desfechos ficcionais sobre a história, a verdade narrada por João Silva foi que o jornalista espantou o abutre, mas deixou a criança no local, pois acreditava que ela estava próxima a um centro de distribuição de alimentos, onde sua mãe provavelmente estava disputando as migalhas da ajuda internacional. João Silva, que acompanhava o fotojornalista, relatou que, após tirar a foto, Kevin se escondeu à sombra de uma árvore para chorar.
Uma das principais características de nossa espécie é o julgamento. Julgamos tudo e todos a todo momento, como se tivéssemos todas as respostas certas para uma vida “errada”, mesmo sem termos as respostas para nossas próprias vidas. Como fotógrafo, não sei qual teria sido a minha reação se estivesse no lugar de Carter. Talvez eu tivesse agido de forma diferente, talvez não. Eu poderia agir de maneiras distintas em dias distintos; é impraticável. Nesse processo de julgamento, o que nos falta é empatia, ou seja, nos colocarmos no lugar do outro. Kevin Carter foi um dos poucos profissionais de sua época que arriscou a vida, a sanidade e a paz que a cor de sua pele proporcionava em um regime de apartheid, para registrar a violência e denunciar um sistema racista para o mundo. Seria hipócrita dizer que não havia “remuneração” e que ele fazia isso por puro ativismo; sim, havia, mas esse era seu trabalho. E sejamos justos, a remuneração e as condições de exploração eram muitas, mesmo quando passou a reportar para grandes agências internacionais.
Após receber aclamação da mídia, Kevin foi subsequentemente massacrado por ela mesma. A mídia retratou Kevin como o próprio abutre da fotografia. Aqui se revela uma das dinâmicas mais perversas das grandes corporações de mídia capitalista: elas lucraram enormemente com a fotografia de Kevin — muito mais do que ele jamais sonhou ou recebeu como autor. Essas mesmas corporações, que lucraram vendendo sua imagem, também lucraram ao criticar Kevin por ter capturado a imagem que gerava seus próprios lucros. E, ainda pior, persuadiram outros jornalistas — trabalhadores como Kevin, que conheciam bem a dura rotina e o custo pago em termos de sanidade — a fazer o mesmo. Mais uma vez, o capital transforma o trabalhador em carrasco de seus próprios pares.
A pressão foi tão esmagadora que, combinada com outros problemas pessoais e um histórico de sofrimento, levou Kevin a um aumento no uso de drogas. Incapaz de silenciar as vozes e imagens que o assombravam, ele acabou vendo o suicídio como a única saída.
"Eu realmente sinto muito. A dor da vida se sobrepõe à alegria a tal ponto que a alegria não existe. …deprimido… sem telefone… dinheiro para alugar… dinheiro para pensão alimentícia… dinheiro para dívidas… dinheiro!!! … Sou assombrado pelas memórias vívidas de assassinatos e cadáveres e raiva e dor… de crianças famintas ou feridas, de loucos no gatilho, muitas vezes policiais, de algozes assassinos… Fui me juntar a Ken se tiver essa sorte." Carta de suicídio de Kevin Carter
Ainda hoje, a fotografia de Kevin continua a impactar profundamente aqueles que a veem. Para mim, "A Menina e o Abutre" de Kevin Carter simboliza a luta interna dos fotojornalistas entre documentar a verdade e ser mais crucificados do que os próprios criminosos de guerra que cometem tais atrocidades. Além disso, tornar-se vítimas de outros colegas que escrevem sobre ética no conforto de seus lares, sem nunca terem pisado na lama ou sentido o cheiro que a miséria impregna no ar. Conhecendo a dinâmica capital eu te pergunto: – Quem é o abutre do jornalismo?