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Foto do escritorSiqka

O espírito olímpico está decrépito

Quase oito séculos antes de Cristo, os gregos buscaram promover a paz entre os povos através dos Jogos Olímpicos. Em 776 a.C., na cidade de Olímpia, realizou-se a primeira competição que ficou conhecida como Olimpíada. Este festival esportivo tinha duas características principais além das competições: a primeira era uma celebração religiosa em honra a Zeus, o principal deus do Monte Olimpo. A segunda, e mais significativa, era a tentativa de unir as cidades-estados frequentemente envolvidas em conflitos, visando alcançar a paz entre elas. Durante os Jogos, estabelecia-se uma trégua sagrada chamada "Ekecheiria", anunciada por arautos antes de cada Olimpíada, para proteger Olímpia e garantir viagens seguras. Registra-se apenas uma reclamação de violação da trégua, proveniente de Atenas. [1]

 

As primeiras Olimpíadas foram um grande sucesso na Grécia Antiga e foram frequentemente elogiadas por filósofos renomados como Pitágoras, Tales de Mileto e Platão e através de suas palavras, Sócrates [2]. Os Jogos não apenas proporcionavam um período de trégua, mas também facilitavam a reconciliação entre governantes, que se reuniam em Olímpia a cada quatro anos. Os Jogos Olímpicos antigos perduraram por mais de mil anos até serem suprimidos em 393 d.C. pelo imperador romano Teodósio I, que os considerava incompatíveis com o cristianismo, então religião oficial do Império Romano.

 

Se hoje seguíssemos os princípios das primeiras Olimpíadas, quantas vidas poderiam ter sido poupadas em conflitos como os da Palestina, Líbano, Sudão, República Democrática do Congo, Rússia e Ucrânia durante essas poucas semanas de Jogos? Embora seja impossível determinar com precisão o número de vidas perdidas em guerras, é certo que teríamos poupado muito mais do que algumas dezenas de milhares. No entanto, isso não aconteceu, e o Comitê Olímpico, que deveria servir como mediador em tempos de conflito, falhou em sua missão. Um exemplo disso é o caso da atleta refugiada afegã Manizha Talash, de 21 anos, que representou a Equipe Olímpica de Refugiados e foi desclassificada da competição de breaking B-Girl por exibir uma capa com a mensagem "Mulheres Afegãs Livres" durante sua apresentação.

 



Retrocedendo um pouco no tempo, no final do século XIX, o Barão francês Pierre de Coubertin, inspirado pelos antigos Jogos gregos, viu nas Olimpíadas uma oportunidade de promover a paz e a amizade entre as nações por meio de uma competição esportiva saudável. Em 1896, a primeira edição dos Jogos Olímpicos modernos foi realizada em Atenas, na Grécia, como uma forma de homenagear a herança histórica do evento. Desde então, os Jogos Olímpicos têm ocorrido a cada quatro anos, reunindo atletas de todo o mundo em um ambiente de respeito mútuo.

 

Devemos lembrar que, na França de Pierre de Coubertin, onde está ocorrendo a edição atual dos Jogos Olímpicos, os princípios de moral, ética e esperança olímpica tenham sido comprometidos. Antes do início da Olimpíada de Paris 2024, milhões de pessoas ao redor do mundo se mobilizaram e assinaram petições exigindo a exclusão de Israel das competições, em razão das denúncias de genocídio, violação dos direitos humanos e crimes de guerra em Gaza. No entanto, essa proibição não foi implementada. Vale lembrar que a África do Sul foi banida dos Jogos Olímpicos de 1964 a 1988 devido à sua política de segregação racial, sendo readmitida apenas quando o apartheid começou a ser desmantelado, voltando a competir nas Olimpíadas de Barcelona, em 1992.

 

Proibições de países dos Jogos Olímpicos são raras e estão geralmente relacionadas a grandes escândalos de doping – como a Rússia em 2020) ou graves violações dos direitos humanos e normas internacionais. Se a situação da África do Sul sob o apartheid não é um paralelo claro para o que deveria ser imposto ao regime sionista, é difícil imaginar um exemplo mais apropriado.

 

Esta edição dos Jogos tem se mostrado a mais decepcionante desde os Jogos de Munique. Temos testemunhado ataques racistas, debates insanos sobre o gênero da boxeadora argelina Imane Khelif e uma treinadora húngara fazendo o gesto nazista, mesmo após o The Intercept ter denunciado um funcionário da transmissão oficial dos Jogos de Paris 2024 fazendo o mesmo gesto durante a final do skate. Em um mundo tão caótico e desiludido como o atual, nada seria mais necessário do que um período de "Ekecheiria", mas infelizmente essa não é a realidade.

 



Segundo a Enciclopédia Britânica:


“No ano 2000, as autoridades olímpicas estabeleceram a Fundação Internacional da Trégua Olímpica para incentivar o estudo da paz mundial e a criação de progresso em sua busca. A fundação está sediada em Atenas e tem se esforçado para instituir um novo tipo de trégua olímpica oficial que, ao contrário da versão antiga, persuadiria os países a não travar guerras durante os Jogos Olímpicos.” [1]

 

Se o espírito olímpico, a Ekecheiria e a visão de Pierre de Coubertin sobre um evento que reúne homens e mulheres de todas as nações e que se tornou um símbolo de unidade, paz e fraternidade entre os povos fossem respeitados, deveríamos desclassificar o Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos por sua postura antiética e conceder a Medalha Coubertin — a maior honraria dos Jogos Olímpicos, que premia um atleta não pelo desempenho, mas por sua atitude moral e ética — a Manizha Talash, Imane Khelif e qualquer outro que seja punido por fazer o que o Comitê Olímpico não faz: lutar contra as injustiças e em favor da paz. Ou, como sugeriu Snoop Dogg, usar a tocha olímpica - que simboliza a continuidade e a perenidade do espírito olímpico que une a humanidade em torno dos ideais de excelência, amizade e respeito - para tacar fogo em tudo.


 

Referências

[1] Britannica Enciclopedy, “The Olympic Truce,” 2024.

[2] D. Laêrtios, “Vida e Doutrina dos Filósofos Ilustres,” Editora Universidade de Brasília, Brasília, 2008.

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