Da Palestina ao Congo, a "Fuga dos Cérebros" é usada como arma de guerra
Vivemos numa era em que a guerra não se trava apenas com bombas e tanques nos campos de batalha. Pelo contrário, hoje, como vemos na Palestina, na Síria, no Iêmen e, infelizmente, em mais lugares do que podemos lembrar, o confronto direto entre soldados é cada vez mais raro. A guerra contemporânea é moldada por outra lógica — mais fria, mais tecnológica e infinitamente mais devastadora. Na era dos drones — inaugurada por Obama e levada a extremos por seus sucessores — a inteligência artificial se tornou arma, mesmo que ora ou outra as bombas sejam lançadas sobre tendas de refugiados; ou câmeras e tripés jornalísticos sejam confundidos com AK-47, isso é apenas "efeito colateral". Abdel Hakim Aburiach, Gaza (arquivo) Mas, mesmo em meio à guerra das máquinas ao estilo Skynet, uma força continua sendo decisiva para definir vencedores e vencidos: o cérebro humano. Não apenas para vencer batalhas, mas — e sobretudo — para reconstruir sociedades que emergem dos escombros. E é aí que a fuga dos cérebros revela seu papel central e brutal. O êxodo forçado de profissionais qualificados — médicos, engenheiros, cientistas, professores — condena nações inteiras a um futuro de escuridão. A evacuação intelectual se impõe como uma estratégia silenciosa, mas devastadora; não por acaso Israel tenha bombardeado como um de seus maiores trunfo a Universidade Islâmica de Gaza. Esvaziar universidades, hospitais e centros de pesquisa é uma forma eficaz — e cruel — de destruir um país de dentro para fora. A violência explícita faz as manchetes; a fuga de talentos, planejada ou induzida, é o golpe que escapa dos radares. Um assassinato de futuros. O Que é, Afinal, a Fuga dos Cérebros? O termo "fuga de cérebros" refere-se à migração de pessoas altamente qualificadas que deixam seus países natais em busca de melhores condições de vida e trabalho. Esse movimento, em sua maioria, ocorre do Sul Global para os centros capitalistas, privando as nações mais vulneráveis de seus quadros mais capacitados. Um exemplo emblemático é o Iraque: entre 1995 e 2000, aproximadamente dois mil professores abandonaram as principais universidades do país, impulsionados pela instabilidade e pelos conflitos. Antigos centros de excelência tornaram-se corredores vazios de esperança. Em 2010, dados da ONU indicavam que 15% dos médicos atuantes no Reino Unido eram de origem iraquiana. Engenheiros e cientistas também abandonaram o país em massa. Estima-se que mais da metade dos estudantes iraquianos formados no exterior jamais retornaram. Apesar disso, o Iraque ocupa apenas a 71ª posição em termos de fragilidade, o que demonstra a escala global e sistêmica desse processo. Não é coincidência. É projeto. "Analisando os dados mais recentes do Fragile States Index (2024) — num cenário que, diante de 2025, um ano que mal ultrapassou a metade e já figura entre os mais devastadores da história humana, tende a agravar-se ainda mais —, revela-se uma realidade brutal: os países mais afetados pela fuga de cérebros são justamente aqueles arrasados por guerras civis, ocupações militares, crises econômicas fabricadas e instabilidade política crônica." O Sudão do Sul , com a maior pontuação no índice de "fuga de cérebros" (8,8), é o retrato cruel desse mecanismo. Recém-saído da independência, mergulhou em conflitos internos alimentados pela cobiça estrangeira pelo petróleo. Sem esperança de estabilidade, seus profissionais qualificados fogem, alimentando um ciclo interminável de dependência e ruína. A Somália (8,7), destroçada por décadas de guerra civil e ocupações externas, vive um esvaziamento parecido. Não são apenas "danos colaterais". São ferramentas de dominação. Na Síria e no Haiti , a fuga de cérebros foi tão intensa que o conceito de "reconstrução nacional" tornou-se uma farsa cruel: como reconstruir hospitais sem médicos? Como revitalizar universidades sem professores? A máquina imperial não precisa mais invadir, basta sufocar, apodrecer e colher os frutos. Mesmo países fora das zonas de guerra tradicionais — como Fiji, Moldávia e Granada — sofrem do mesmo fenômeno. Forçados a exportar seus talentos para o Norte global, enquanto suas bases de conhecimento minguam, tornam-se cada vez mais dependentes. ©UNICEF I Benin I 2011 Países Mais Frágeis em 2024 (FSI) Somália – 111.3 pontos Sudão – 109.3 Sudão do Sul – 109.0 Síria – 108.1 República Democrática do Congo – 106.7 Iêmen – 106.6 Afeganistão – 103.9 República Centro-Africana – 103.9 Haiti – 103.5 Chade – 102.7 Mianmar (Birmânia) – 100.0 Etiópia – 98.1 Palestina – 97.8 Mali – 97.3 Nigéria – 96.6 Líbia – 96.5 Guiné – 96.4 Zimbábue – 95.7 Níger – 95.2 Burkina Faso – 94.2 Burundi – 92.6 Paquistão – 91.9 Eritreia – 91.8 Camarões – 91.6 Iraque – 91.4 A Guerra Também se Faz de Ausências A lista dos 25 países mais afetados pela fuga de cérebros comprova o padrão: nações fragilizadas, empurradas ao colapso, saqueadas não apenas de seus recursos, mas de sua capacidade de reconstrução. Enquanto isso, nos centros capitalistas, o saque é rebatizado de "migração qualificada" e "diversidade". Celebram o que chamam de "enriquecimento cultural" — um eufemismo para o roubo sistemático do futuro do Sul Global. A fuga de cérebros não é mero dano colateral da guerra. É arma de guerra. Uma arma que assassina gerações antes mesmo de nascerem. Certa vez, li que Jawaharlal Nehru — o Pandit Nehru, pai da Índia moderna e primeiro-ministro após a independência — fez da educação superior uma de suas primeiras prioridades nacionais. Quando questionado sobre por que não concentrara inicialmente seus esforços na educação primária, respondeu com uma metáfora contundente: "Não se espera que todos tenham sapatos para então construir estradas." Mais tarde, diante das críticas sobre a provável fuga de cérebros — a ideia de que os jovens indianos, uma vez formados, emigrariam para nações com melhores oportunidades e remunerações — Nehru manteve sua serenidade. Reconheceu que, sim, muitos deixariam o país, mas acreditava firmemente que retornariam, trazendo consigo não apenas conhecimento acadêmico, mas também experiências práticas que a Índia, naquele momento, ainda não poderia oferecer. O tempo provou que Nehru estava certo. A Índia, hoje, não figura entre as nações mais frágeis do mundo, como atesta sua ausência das posições críticas do Fragile States Index. Pelo contrário, emerge como uma potência do Sul Global, com uma força de trabalho altamente qualificada e, cada vez mais, vê seus cérebros retornando para contribuir com a reconstrução e o fortalecimento de sua nação. Se a história de Nehru nos ensina algo, é que, enquanto houver um solo ao qual se possa voltar — uma pátria que sobreviva e resista —, os cérebros dispersos pelo mundo inevitavelmente encontrarão o caminho de volta. A reconstrução é possível. E este não é um final romântico ou utópico; é, antes, uma realidade histórica para aqueles que têm para onde retornar.