A Mesquita Al-Aqsa, o terceiro lugar mais sagrado do Islã
Conseguimos entrar na Esplanada das Mesquitas, na cidade ocupada de Jerusalém. Não pudemos acompanhar os palestinos no mesmo horário, como gostaríamos. Porém, entramos. O que acontece na Palestina sob ocupação militar israelense não é uma guerra religiosa – como nós brasileiros tendemos a acreditar. O que acontece é ocupação e colonização sionista, cujo termo mais inteligível sobre os fatos talvez seja apartheid.
Passamos por soldados israelenses fortemente armados que controlam a entrada da Esplanada das Mesquitas. Enquanto a mochila com os passaportes passava pelo raio X, éramos revistados por tropas policiais da ocupação israelense. Como se já não fosse estranho que colonos judeus controlem o acesso a um local islâmico, um deles me perguntou ainda por que eu queria visitar o “Monte do Templo” já que eu mesmo não sou muçulmano. Pensei em responder: “Pelo mesmo motivo que visitei o Muro das Lamentações sem ser judeu, o rio Ganges sem ser hindu, ou a Basílica do Santo Sepulcro sem ser cristão”. No fim das contas achei melhor evitar confusão e indagar apenas “por que não?”, e o soldado tampouco quis se estender.
Para acessar à Esplanada das Mesquitas, cruzamos por uma passarela de madeira improvisada por cima do Al-Buraq, ou muro externo da Esplanada, – provavelmente você deve conhecer melhor se disser, Muro das Lamentações.
Em 2021, logo no primeiro dia do período do Ramadã, época que os muçulmanos de todo mundo se reservam em observação da fé, o Primeiro-ministro Benjamin Netanyahu autorizou a invasão do complexo da Esplanada das Mesquitas onde se encontra a mesquita Al-Aqsa. Nesse período os muçulmanos se reservam à prática da “maior Jihad”, expressão que ressalta a importância do fiel em elevar seu espírito acima de suas próprias vontades, através da observação de práticas religiosas que compreendem caridade, fraternidade, estreitamento dos laços familiares, leituras corânicas individuais ou em grupo e, o mais importante, o jejum praticado desde o alvorecer e encerrado com entes queridos ao se pôr de cada dia. Com o ataque autorizado, os policiais arrombaram as portas do minarete e cortaram os fios dos alto-falantes, reprimindo o chamado para oração noturna. Os muçulmanos também foram impossibilitados de distribuir as refeições de quebra do jejum. Conforme o Reino da Hachemita da Jordânia, que detém a custódia como parte de um acordo bilateral e é responsável pelo controle e segurança do local, o ataque à mesquita foi uma violação grave ao direito internacional de liberdade de religião dos muçulmanos.
Após a profanação do local que é restrito aos muçulmanos, o Sheikh Muhammad, Grande Mufti de Jerusalém pediu aos religiosos de todo o mundo para interceder contra as violações praticadas contra os muçulmanos e a mesquita Al-Aqsa. A fim de repelir mais ataques contra o local ele também pediu a intensificação da presença dos palestinos na mesquita. Muçulmanos atenderam ao chamado, assim como árabes-cristãos que prestaram sua solidariedade.
Os ataques não foram repelidos, continuaram ao longo do mês gerando ainda mais manifestações. Cristãos juntaram-se aos muçulmanos em defesa da mesquita. Na investida contra as manifestações populares e suas repercussões internacionais, o governo israelense, alegando contenção do avanço da covid-19 proibiu milhares de palestinos da Cisjordânia de entrarem no complexo da Esplanada das Mesquitas.
As agressões durante o Ramadã de 2021 se repetiram em 2022, ainda com mais violência. Dias antes do de iniciar o mês sagrado, grupos judaicos publicaram um chamado nas redes sociais convocando os judeus para invadirem a mesquita durante o feriado de Páscoa e oferecer sacrifícios animais. Os muçulmanos pediram para que organizações de países árabes se manifestassem para evitar a profanação. Novamente policiais do governo de Israel invadiram a esplanada disparando balas de borracha, granadas de gás, e agredindo os fiéis com cassetetes. Aproximadamente 30 mil muçulmanos estavam presentes naquela manhã, mais de 400 pessoas foram presas por tentar defender a mesquita e a liberdade de culto. Segundo as autoridades israelenses os palestinos fizeram um cordão de isolamento para impedir o avanço das forças policiais, a polícia informou que os palestinos na barricada estavam armados com fogos de artifício.
Mas tudo isso aconteceu longe dos olhos dos turistas, já que é proibido entrar na Esplanada das Mesquitas no mesmo horário que os palestinos. De certa maneira os turistas também são intimidados. Assim que entramos no pátio da Esplanada, por um ato automático, dei a mão para Di. No Islã não existe nenhuma regra para que um casal não dê as mãos; contudo, um dos policiais – faço questão de reforçar, israelense e não-muçulmano – nos repreendeu grosseiramente. De modo algum queríamos desrespeitar qualquer local sagrado, religião ou aqueles que a praticam, mas achamos absurdo que alguém tão estrangeiro como nós, que tampouco pertence àquela fé, nos chamasse a atenção enquanto muçulmanos que caminhavam ao nosso lado não se mostravam nada ofendidos. Percebemos que a forma com que os israelenses gritam com as pessoas serve justamente para constranger os visitantes, a fim de oprimi-los para que logo se retirem do local. Sendo assim, a mera permanência apesar do assédio a todo momento é uma maneira de resistir e demonstrar solidariedade à causa palestina – e assim o fizemos.
Em frente ao Domo da Rocha paramos para fotografar. A Di levou um lenço com tramas preto e branco semelhante – e apenas semelhante – ao keffiyeh[1] palestino, mas estava tão quente que ela o amarrou na mochila. Eu lhe pedi para que fizesse uma foto minha, cerrei o punho em sinal de resistência, como fez Nelson Mandela e o Congresso Nacional Africano (CNA)[2] contra o regime de apartheid na África do Sul; como fez Malcolm X na luta contra as leis segregacionistas nos Estados Unidos; e como nós brasileiros fazemos contra o racismo em nosso país. Imediatamente outro policial gritou comigo para me coibir de uma foto ali em “pose de resistência”. Fingi não escutar e ele repetiu seus berros umas três vezes, mas permaneci até que a Di tirasse a fotografia. Em português, pedi a Di que preparasse outro retrato, olhei para o policial, pedi desculpa como se nada tivesse acontecido e mudei de pose: agora com os dedos em “V” de vitória – em alusão à pose tradicional de Yasser Arafat e dos palestinos que lutam contra a ocupação sionista. Posso imaginar o que passou pela cabeça daquele soldado, mas não esperamos para saber e seguimos a visita.
Ainda na Esplanada caminhamos até a Mesquita Al-Aqsa. Sabíamos, claro, que não permitiriam a nossa entrada – mesmo assim, tentamos. Outro soldado saltou a frente. Chega a ser cômico como pensam que somos todos surdos, porque mesmo a uma distância de um braço, aquele homem achou que era imprescindível gritar. O “bem-educado” insistiu que a passagem ali era autorizada apenas aos muçulmanos. Novamente pensei: “Então, o que faz aqui um israelense judeu?”. Por óbvio, caso assim respondesse, a visita seria cancelada e seríamos retirados à força do local. Adotamos novamente a cara de “turista idiota” para evitar um confronto que não venceríamos.
Vamos novamente esclarecer uma coisa para reforçar a ideia. Quando me refiro a “israelenses judeu”, o faço, pois é justamente a maneira como escolheram para descrever o Estado autoproclamado, a mesma maneira que usam para discriminar a própria população.
Jerusalém é pauta principal nas negociações entre israelenses e palestinos. Ambos reivindicam a cidade como capital de seu Estado. Em 29 de novembro de 1947 a Organização das Nações Unidas (ONU) recomendou que todo o território – a Palestina histórica, antes sob Mandato Britânico – fosse dividido em dois: um lado para os judeus, outro para os árabes (muçulmanos e cristãos). A mesma resolução (181) recomendou ainda que Jerusalém ficasse como corpus separatum, ou seja, administrada pela ONU sob regime internacional. A recomendação da partilha deu vazão para que imigrantes europeus se assentassem na Palestina, incluindo Jerusalém, expulsando a população nativa e executando aqueles que resistissem. O processo culminou na criação do Estado de Israel em maio de 1948, evento conhecido em árabe como Nakba ou “catástrofe”, cujos esforços de limpeza étnica resultaram na então expulsão de 800 mil palestinos de suas casas.
Com mais da metade da Palestina tomada a força em 1948, faltava pouco para obter controle total do território. Durante a guerra de 1967, os israelenses ocuparam o que faltava, obtendo controle de toda Palestina, incluindo a cidade de Jerusalém, e também de países vizinhos como: Síria, Líbano, Jordânia e Egito. Com toda região sob controle israelense, o próximo passo era expulsar a população palestina e judaizar integralmente a cidade. Este processo é parte da limpeza étnica que Israel promove até hoje em toda a Palestina, incluindo esforços para apagar ou eliminar a identidade cristã e islâmica da cidade sagrada.
Em 1980 Israel anexou toda Jerusalém, ao declará-la capital de Israel. A ONU voltou a protestar e reiterou através da Resolução 476 que toda e qualquer anexação era ilegal segundo o direito internacional. Mesmo sob as notas de repúdio da comunidade internacional, Israel manteve sua tomada à força do território palestino. Em 2018 uma nova lei aprovada pelo Knesset israelense (parlamento) definiu o país como exclusivamente judaico e reafirmou sua reivindicação ilegal sobre Jerusalém como suposta capital.
Tudo que relatei trata-se de um resumo, grosso modo, das atrocidades cometidas para chegar ao resultado que presenciamos na Cidade Santa. Essas agressões mencionadas não foram exclusivas. A organização Rabbis for Humans Rights (Rabinos para Direitos Humanos) denunciou 43 ataques contra igrejas, mesquitas e mosteiros em Israel, Cisjordânia ocupada e em Jerusalém Oriental somente no período de 2009 a 2015. A situação se agravou em 2022 devido à coincidência no calendário das três religiões monoteístas, tornando um dos anos de maior violência. Estima-se que durante o período do último ramadã, mais de 3.600 judeus invadiram o complexo da Esplanada das Mesquitas em 23 ataques diferentes. Embora a questão seja política, de caráter colonial, o papel da religião tem de ser esclarecido, até porque os documentos de identidade de Israel especificam a religião de seus cidadãos a fim de discriminá-los.
No entanto, criticar as políticas coloniais de Israel não equivale a antissemitismo[3]. Sabendo que comentários posteriores às atrocidades do Holocausto nazista e dos pogroms perpetrados na Europa poderiam soar como discriminação antijudaica, o sionismo se apropriou deste argumento para difamar os opositores a suas práticas de apartheid. É deste mesmo modo que se “justifica” que um policial israelense não-muçulmano controle quem entra e sai de um lugar sagrado para o islamismo – e até mesmo como se posa para as fotos naquele local.
[1] Tradicional lenço palestino. As cores e as tramas simbolizam as regiões tribais ou as aspirações políticas de seu usuário.
[2] CNA é um partido político sul-africano. Foi fundado em 1912, na cidade de Bloemfontein, com a proposta de advocar os direitos da população negra do país. Desde o fim do regime conhecido como apartheid, em 1994, o CNA é o principal partido político da África do Sul, sendo apoiado pela aliança com Congresso dos Sindicatos Sul-africanos e o Partido Comunista Sul-Africano. Nelson Mandela foi a figura mais influente do partido, assim como de todo o continente africano.
[3] palavra semita deriva da expressão bíblica que se refere a linhagem de descendentes de Sem, filho de Noé. O termo semita é designado para povos do Oriente Médio que compartilham conjuntos linguísticos, entre os quais se destacam os árabes, portanto, palestinos. “Antissemitismo é o preconceito, hostilidade ou discriminação contra judeus, apesar de não serem o único povo semita, já que os árabes também tem origem semita.”