Al-Quds, uma jornada pela história sangrenta em Jerusalém
Deixamos a Turquia com vontade de ficar mais, mas era hora de ir; sabendo qual seria nosso próximo destino, nem olhamos para trás. Esta é a segunda vez que tentamos entrar na Palestina. Na tentativa anterior, o plano era adentrar na Faixa de Gaza pela turbulenta passagem de Rafah, fronteira com o Egito; contudo, assim que chegamos à península do Sinai, as condições políticas no momento nos desencorajaram e nem tentamos.
Pousamos no aeroporto Ben Gurion em Tel Aviv às 20h de sexta-feira. Não havia ônibus ou trem para Jerusalém haja vista que na sexta-feira após o pôr-do-sol começa o Shabat, dia de descanso para os judeus. Após uma negociação sobre os valores da viagem com um motorista que faz o translado, seguimos para Al-Quds, que talvez você conheça pelo nome de Jerusalém. Chegamos na cidade de Al-Quds por volta das 22h. Ficamos em um hostel bem perto do portão de Jaffa, uma das entradas para a Cidade Velha. Sem demora, mesmo que já estivesse tarde, largamos as malas e saímos para conhecer a capital da Palestina.
Não foi preciso mapa para entrar na Cidade Velha; só de olhar para as muralhas e seus mais de cinco mil anos de história você já se localiza fácil. Jerusalém é uma cidade mítica, mística e com séculos de histórias reais, nem todas boas. A cidade já foi ocupada, destruída, sitiada, atacada e capturada muitas vezes por diferentes povos; entre eles, egípcios, babilônios, romanos, cruzados e sionistas[1], todos interessados na cidade que, repetindo, é a capital da Palestina.
Muitos devem estar se perguntando: Mas Jerusalém não fica em Israel? Não! Jerusalém é o centro de uma disputa territorial desde 1948 e se agrava diariamente diante dos olhos da comunidade internacional. Vamos nos referir a Jerusalém como Al-Quds, por ser o nome árabe para a capital da Palestina, mas antes disso vou explicar por quê?
Houve uma época que judeus, cristãos e muçulmanos viviam em harmonia na Palestina. Basicamente a sociedade era composta em 85% de muçulmanos, 10% de cristãos e 5% de judeus. Na mesma época, em 1890, ou seja, antes de Adolf Hitler, os judeus eram perseguidos pela Europa, nos chamados pogroms[2]. Assim surgiu entre euro-judeus a ideia de se proteger dos ataques e “fundar” um país onde pudessem viver “em paz”. O movimento mais proeminente foi o sionismo. Os sionistas cogitaram a criação do Estado Judeu na Argentina, Marrocos, Uganda, Madagascar e até lhes foi cedido um território em uma região na Rússia, mas no fim decidiram ir para Palestina. Iniciou-se a imigração judaica ilegal para Palestina, durante o Mandato Britânico para Palestina[3]. Os ingleses tentaram limitar a imigração, mas por baixo dos panos davam pleno apoio para o crescimento da ocupação e do movimento sionista.
Em 1947, com o aumento exponencial da imigração judaica – aí sim com efeitos da perseguição nazista – e o abandono do Mandato Britânico para Palestina; a recém fundada Organização das Nações Unidas, sugeriu dividir o território em duas partes (Resolução 181).
Sobre a Resolução 181. Os imigrantes judeus (32,95% à época) ficariam com 57% do território, já os árabes-palestinos receberiam apenas 43% do próprio país. Para a cidade de Jerusalém seria instituído o regime de “corpus separatum”, o qual ficaria sob administração internacional por um período de dez anos até que um plebiscito decidisse qual nacionalidade administraria a cidade. Observando os aspectos religiosos da cidade, dos lugares sagrados, santuários e edifícios religiosos, é dito neste documento que respeite e garanta a liberdade de culto, acesso, visitas e trânsito dos residentes e dos cidadãos de outros estados sem distinção de nacionalidade.
Os Palestinos rejeitaram a proposta, já que obviamente beneficiava somente os imigrantes europeus. Com o argumento da partilha, milícias judaicas organizadas sob liderança do Haganah[4] (atualmente Forças de Ocupação Israelense, conhecida pela sigla IOF)[5] começaram a atacar, matar e expulsar os palestinos de suas próprias casas. As vilas conquistadas pelos euro-judeus foram destruídas para que não houvesse casas para os palestinos voltarem.
Ao final desse episódio, 774 cidades e povoados palestinos foram ocupados, 531 foram totalmente destruídos. Houve 70 massacres com mais de 15 mil mortos e milhares de feridos e mutilados. Aproximadamente 800 mil palestinos foram expulsos; os que resistiram a sair foram empurrados para as extremidades, ficando com apenas 22% de seu próprio território – dividido e separado – que ficaram conhecidos como Cisjordânia e Faixa de Gaza, para que os sionistas pudessem chamar os outros 78% de “Eretz Israel”. O massacre foi chamado pelos euro-judeus de Independência, para os palestinos é chamado de Nakba, uma palavra em árabe que quer dizer catástrofe. Então, quando se argumenta que o que acontece atualmente na Palestina se trata de uma guerra religiosa, comete-se dois perigosos enganos que beneficiam somente ao estado de ocupação: o primeiro é que não há nada de “religioso” nessa história, isso é uma ocupação territorial, uma colonização violenta e assassina, na qual a religião é apenas um argumento de “legitimação” a causa sionista; segundo, isso não é uma guerra, pois, para ser tratado como guerra deveria ambos os lados estarem armados; aqui os soldados sionistas humilham, prendem, torturam e matam civis, sejam mulheres, crianças ou idosos; na ocupação, de um lado tem-se um dos maiores e mais modernos e tecnológicos exércitos do planeta, do outro, palestinos com paus e pedras. Existem várias nomenclaturas que podemos usar para definir o que acontece na Palestina atualmente, algumas que podem ser usadas são: limpeza étnica, apartheid[6], racismo[7], colonialismo e genocídio.
Dado esse panorama superficial de uma catástrofe muito mais profunda, agora vamos falar em especial da cidade de Al-Quds (Jerusalém) e sua a importância religiosa para as três religiões monoteístas.
Para cristãos, a cidade é cenário dos últimos dias de Cristo. Aqui fica a Via Dolorosa – caminho que Jesus percorreu para a crucificação. Jesus também tem uma história com o Templo; de acordo com a Bíblia foi no segundo Templo de Salomão que o profeta expulsou os vendilhões e cambistas. Outro local sacro é a Gólgota, a colina onde Jesus foi crucificado. João afirma em seu Evangelho que o calvário estava situado nos arredores de Jerusalém, mas evidências arqueológicas recentes sugerem que o Gólgota fica a uma curta distância dos muros da Cidade Velha, justamente na área da Basílica do Santo Sepulcro, local de peregrinação cristã pelos últimos dois mil anos.
Para os muçulmanos que consideram a cidade como a terceira mais sagrada de sua fé, a maior importância se dá pela Mesquita de Al-Aqsa. Conforme o Islã, por volta do ano 621 d.C., o anjo Jibril (Gabriel) guiou o Profeta Muhammad por uma viagem noturna por via de um Buraq[8]. O primeiro destino foi o Monte Sinai – onde Allah revelou a Torá a Moisés. A segunda parada se fez em Bethlehem (Belém), cidade palestina do nascimento de Jesus. Na sequência, o profeta foi guiado ao local onde Moisés foi sepultado – hoje, na Esplanada das Mesquitas. Por fim, Muhammad foi conduzido pelo anjo até o local onde profetas antes dele – como Abraão, Enoque, Moisés, José, João Batista, Jesus – o aguardavam para iniciar uma oração. Após a prece os profetas ascenderam juntos ao céu e lá Muhammad recebeu a instrução de repassar aos muçulmanos o culto das cinco orações diárias. No local do encontro e partida dos profetas foi erguida a mesquita Al-Aqsa.
Para os judeus o maior argumento de sacralidade é o Muro das Lamentações. Segundo a tradição judaica, na cidade de Jerusalém foi erguido o Templo de Salomão, cujo Muro das Lamentações – conforme certas interpretações – é vestígio do santuário antigo, a ser restaurado com a vinda do Messias, e somente com a vinda – conforme o judaísmo – será autorizada a volta dos judeus para Jerusalém. No entanto, o muro das lamentações reivindicado é na verdade o Al-Buraq, muro ocidental que guarda a mesquita Al-Aqsa. O muro não tinha nenhuma importância, somente no século XVI é que os judeus que habitavam a Palestina começaram a orar ali. Durante a ocupação britânica, os judeus tentaram controlar a área do muro, mas os palestinos recusaram.
Em 1929 houve a chamada Revolução de Al-Buraq. Uma comissão internacional foi montada para avaliar a situação; a conclusão enviada para Liga das Nações (antecessora da ONU) foi: “O Buraq ‘Muro das Lamentações’ é parte integral da Mesquita de Al-Aqsa e al-Haram al-Sharif (nome em árabe para Esplanada das Mesquitas). Nenhuma pedra sequer remonta os tempos do Templo de Salomão. A passagem da frente do Muro não é uma passagem pública, mas ela foi construída para uso dos habitantes do bairro de Mughrabi e outros muçulmanos, deixando os judeus sem nenhum direito sobre o assunto.”
Durante a Guerra de 1967, as Forças de Ocupação Israelense (IOF) tomaram e ocuparam outras partes do Território da Palestina, bem como a cidade de Al-Quds. Com isso tomaram o controle de toda cidade, do Muro, destruíram o bairro de Mughrabi e distorceram toda história a favor da narrativa sionista. – Ficou confuso com a história? Não se espante, como se ela já não fosse confusa o suficiente, ainda assim o quer o sionismo.
Chegamos a Jerusalém em pleno shabat que começa com o pôr do sol da sexta-feira e termina ao anoitecer do sábado. É o sétimo dia da semana judaica e é dedicado ao descanso. No shabat você não trabalha, não dirige, não cozinha e não compra; é um dia dedicado à oração e à desconexão total.
Deixamos as malas no hostel e corremos para cidade antiga. Foi impactante, estava vazio, já que Jerusalém é uma das cidades mais visitadas da terra. Por conta do horário e do shabat, havia poucas pessoas na rua, o que nos deixou ainda mais animados. Nunca ouvimos falar de um tour noturno por Jerusalém, mas uma coisa podemos afirmar: à noite, a cidade é absolutamente outra.
Apesar de câmeras que parecem te olhar o tempo todo, a cidade velha não é nem um pouco segura, pelo menos não se você for ou se parecer com um palestino. Em 2014 Mohammed Abu Khdair, um jovem palestino de 16 anos foi sequestrado, espancado e assassinado por judeus ortodoxos. Segundo a autópsia, o jovem foi queimado vivo. Segue abaixo trechos do depoimento dos assassinos:
“Estávamos de cabeça quente e com raiva e decidimos queimar algo dos árabes.” [...] “Decidimos pegar alguém, sequestrá-lo, espancá-lo e expulsá-lo.” [...] “Eu disse a Yud para pressionar com força e acabar com ele porque essas pessoas têm sete vidas. Não deixe que ele se levante.” [...] “Peguei um isqueiro e coloquei fogo no cara… e tudo pegou fogo.” [...] “Eu disse a eles: ‘Vou falar a verdade, nós tínhamos um propósito, mas isso não é para nós. Nós estávamos errados. Somos judeus misericordiosos. Somos seres humanos’”. The Times of Israel
Andando pela Cidade Velha percebemos muitos jovens ortodoxos, sempre com olhares desconfiados. Queríamos encontrar o Al-Buraq (Muro das Lamentações), mas o Google Maps não funcionava, então perguntamos para dois jovens como chegar. Não é difícil encontrar “israelenses” que falam outros idiomas, na verdade é bem comum, visto que muitos desses jovens não nasceram no Estado de Israel. Logo depois da Nakba (1948), que Israel chama de Independência, era preciso firmar maioridade populacional dentro da Palestina, para isso, em 1950 Israel criou a Lei de Retorno (5710-1950). Essa lei, ainda válida, garante a qualquer judeu de qualquer parte do mundo, “retornar” para Israel. – Aí te pergunto como é possível que estrangeiros que nunca estiveram aqui, “retornem”? – E pior, como não é permitido que os palestinos que nasceram aqui, que tem seus pais, avós, bisavós e além, e foram expulsos de suas casas, não possam retornar? – Para piorar a situação, em 1970 o Estado de Israel acrescentou a Emenda (5730), ampliando o “direito de retorno” para filhos e netos de judeus bem como seus cônjuges e os cônjuges de seus filhos e netos. Ou seja, qualquer um que se declara descendente de judeu, tem direito de cidadania israelense. – E com base em quê o Estado de Israel comete essa atrocidade? – Alegando o “direito divino” dessas pessoas ao “retorno” à Terra Prometida. Por isso não é difícil encontrar um judeu ortodoxo falando russo, inglês, espanhol ou mesmo um português carregado de um sotaque forçado.
Chegando ao Muro, a Di foi para área destinada às mulheres. Achei melhor observar de longe e ficar de olho. Sei que muitas pessoas enxergam o Muro das Lamentações como algo sacro, mas eu não conseguia olhar dessa maneira, para ser bem sincero estava louco para sair logo dali. Enquanto estava pensando nas histórias que permeiam esse muro e de longe olhando para Di, um francês judeu que decidiu morar em Jerusalém se aproximou de mim e puxou conversa. Ele também falava bem espanhol, o que facilitou compreendê-lo. Ele me disse que decidiu morar em Jerusalém pela “paz espiritual” que emana da cidade; fiquei pensando: “esse filho da puta só pode estar de sacanagem”, mas fiquei quieto. Ele me convidou a me aproximar do muro, embora eu não quisesse, acabei indo. Percebi que muitos jovens estrangeiros – ao qual percebesse pela dificuldade em ler e pronunciar o hebraico – faziam um tipo de “catequese”. Dei uma volta rápida e caminhei para o meu ponto de vigia, dando as costas para o muro; foi quando percebi, que outros israelenses pelos quais eu passei na entrada sem perceber, estavam fortemente armados. Pela aparência de mais velhos, deduzi que não eram soldados, deviam ser civis que montavam guarda para os que estavam orando. O que mais me chamou a atenção foi que aqueles caras armados, cantavam enquanto liam trechos da Torah[9]. Eu sei que meu ateísmo me impede de ver certas coisas, mas talvez esse mesmo ateísmo me possibilite ver outras. Fiquei pensando: “se eu acreditasse em Deus com essa mesma efervescência, se confiasse tanto na vontade de um ser superior e aceitasse seus planos divinos, me recusaria carregar um fuzil”, mas esse sou eu. Assim que saí dali fiquei buscando a Di com os olhos, mas ela me achou primeiro. Perguntei se tinha sentido algo e ela disse que não, pois o clima era muito tenso. Não esticamos a conversa e saímos logo. Caminhamos pela Via Dolorosa – percurso da crucificação de Jesus –, passamos pela Igreja do Santo Sepulcro, conhecemos o mercado, mesmo que fechado, e lá pelas três da madrugada o cansaço bateu e voltamos ao hostel para descansar um pouco e nos prepararmos para o dia seguinte. Era muita experiência de Terra Santa para um único dia.
[1] Fundado pelo Theodore Herzl, jornalista austro-húngaro, o sionismo surgiu como um movimento político que defende o direito à autodeterminação do povo judeu e à existência de um Estado nacional judaico independente e soberano, sobretudo, na Palestina.
[2] Pogrom é uma palavra russa que significa “causar estragos, destruir violentamente”. Historicamente, o termo refere-se aos violentos ataques físicos da população, principalmente contra judeus, tanto no império russo como em outros sob domínio do Czar.
[3] O Mandato Britânico da Palestina foi uma entidade geopolítica sob administração britânica que foi criada com a Partilha do Império Otomano após o final da Primeira Guerra Mundial. A administração civil britânica na Palestina operou de 1920 a 1948.
[4] No livro “Haganah”, o autor Munia Mardor, ex-oficial da força escreve, “Um dos principais objetivos da Haganah, tal como movimento sionista em geral, era abrir caminho aos imigrantes que desejavam entrar na Palestina”. (MARDOR, 1980).
[5] Após a autoproclamação de independência, o Haganah foi dissolvido e se tornou o exército israelense. Oficialmente o exército se chama, Israel Defense Forces (IDF), ao qual palestinos e organizações de direitos humanos preferem chamar de Israel Occupying Forces (IOF).
[6] Em 2021 a Anistia Internacional publicou um relatório especificando que o sionismo é um regime de Apartheid (outras Organizações já haviam feito anteriormente). Em 2022, durante a segunda Cúpula da Missão Palestina em Pretória, o governo da África do Sul pediu para que a comunidade internacional reconheça o Estado de Israel como regime de apartheid.
[7] Em 1975, a ONU adotou a Resolução 3379, considerando que o sionismo equivale a racismo. Esse status só foi revogado em 1991, após o discurso de Yasser Arafat, que tornou a OLP membro Observador Permanente da ONU.
[8] Buraq “relâmpago” ou geralmente traduzido do persa como “brilhante”; é interpretado na tradição islâmica como um animal alado
[9] A Torá ou Bíblia Hebraica corresponde aos cinco primeiros livros do Pentateuco – Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio, e constitui também a primeira grande parte da Bíblia Cristã, ou Antigo Testamento. (USP Online)