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Foto do escritorSiqka

Alaçati, Democracia e um colete salva-vidas

Gostaríamos de abordar outro assunto, porém, desde que chegamos em Izmir, não conseguimos nos concentrar em outra coisa senão o ataque terrorista contra a democracia brasileira.

 



Assim que chegamos no hotel Konak Saray, o recepcionista nos disse que estavam sem internet, mas era um problema em toda a região e que mais tarde voltaria ao normal. Sem problemas; pensamos. Guardamos as malas e fomos trocar de roupa para sair. Como não havia internet, a Di pela primeira vez em uma viagem, ligou a televisão para fazer um pouco de barulho. Foi quando vimos uma emissora de notícias turca exibindo imagens ao vivo do Brasil. Cenas de nosso país sendo vandalizado e violentado. Não entendemos nada, pois estava tudo em turco. Quando o Presidente Lula e o Ministro Flávio Dino apareceram na tela, um narrador traduzia para turco o que estavam falando e tirava o áudio original. Repetindo; não tínhamos internet e não havia como saber o que estava acontecendo. Encontrar um canal em inglês não foi problema, pois todos os canais reproduziam imagens do Brasil. A legenda na TV dizia “tentativa de golpe contra a democracia no Brasil”, ou algo desse tipo.

 

Como não havia uma forma de ter mais detalhes sobre o que estava acontecendo, decidimos ir até a cidade de Alaçati e, quem sabe lá encontrar internet e nos orientar melhor.

 

Estar em Izmir e ouvir falar em golpe contra democracia brasileira é, no mínimo, deprimente. Não sei se é de conhecimento dos terroristas brasileiros, ou se eles apenas não se importam de depredar nossas instituições democráticas, ao passo que mais de cem milhões de pessoas fugiram de suas casas para encontrar somente um pouco do que temos.

 

Assim que começamos a descer pela rua Konak, a primeira coisa que vi foi uma loja com coletes salva-vidas. Nós sabíamos o motivo para tantos coletes pendurados em destaque em diversos estabelecimentos. A crise dos refugiados, a maior da história, está evidenciada em Izmir pelos coletes salva-vidas expostos nas vitrines, ao lado de equipamentos eletrônicos.

 

Quando chegamos em Alaçati, paramos em uma lanchonete e conseguimos saber o que estava acontecendo no Brasil. Tomamos uns mil chás enquanto revirávamos as notícias das últimas 24 horas. A todo momento eu pensava como era possível isso acontecer em um país como o Brasil! Temos nossos defeitos e falhas, mas ainda assim temos uma democracia.

 

Em Alaçati, cidade anterior à Çesme, fiquei pensando como é fácil, barato e seguro para qualquer turista chegar à Europa Ocidental. Do bairro Konak saem ônibus com translado em balsas que levam direto para ilha de Lesbos, na Grécia; ainda mais perto é possível pegar um ônibus no Otogar (rodoviária) ao lado do Istinye Park – como fizemos para chegar até aqui – e seguir para cidade de Çesme por 70 liras turcas (cerca de R$ 20,00). Çesme fica a somente 18 quilômetros da ilha grega de Chios. No entanto, isso é apenas para os turistas. Para os refugiados ou migrantes, a travessia da Turquia rumo às ilhas gregas é feita clandestinamente, com alto índice de mortalidade e risco de ser devolvido ou abandonado pelas autoridades gregas à deriva. Por este motivo tornou-se lucrativo vender coletes salva-vidas próximos aos aparelhos eletrônicos. Poucos dias antes de chegarmos aqui, em dezembro de 2022, a guarda costeira turca resgatou mais de 200 refugiados no mar Egeu. Uma operação em Izmir encontrou 61 imigrantes à deriva, rejeitados pela Grécia. A cidade de Izmir, para alguns tornou-se uma passagem obrigatória; para outros, abrigo temporário. Infelizmente, no entanto, para tantos outros, Izmir se tornou o ponto final.

 

No último artigo que publiquei antes de viajar: “Neste Natal, mais de cem milhões de pessoas formam o maior presépio vivo da história”, escrevi que mais de 103 milhões de seres humanos fugiram ou foram expulsos de suas casas. O que eu não sabia é que grande parte dessa população passou ou se estabeleceu em Izmir. Segundo o último relatório de Tendências Globais do Alto–comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), a Turquia recebeu sozinha 3,7 milhões de refugiados, o país no mundo que mais acolheu pessoas em condições de vulnerabilidade.

 

Izmir se tornou um dos principais pontos de trânsito dos refugiados que visam entrar na Europa via mar Egeu. Em 2014 o bairro de Basmane – a metros de onde estamos hospedados – tornou-se centro de tráfico de pessoas. Os contrabandistas além de realizarem o translado ilegal, fornecem transferências bancárias, chip de celular e, naturalmente, coletes salva-vidas. Porém, muitas pessoas impossibilitadas de pagar os altos custos do contrabando, acabaram se estabelecendo na cidade, dando prioridade aos bairros de Basmane e Konak por ficarem próximos a rotas de metrô, ônibus e barco. Os impactos causados pela onda migratória, agravada pela guerra civil na Síria – e seus 6,8 milhões de pessoas em situação de refúgio –, atingiu praticamente todos os setores de Izmir.

 

Nos bairros de Basmane e Konak a presença de refugiados se tornou tão sólida que até mesmo a comida de rua se adaptou. Atravessando a rua, bem em frente ao hotel, comemos um delicioso shawarma em uma lanchonete de sírios originários de Aleppo e Damasco.

 

Nas ruas é visível o grande fluxo de migrantes; além de sírios, encontra-se também pessoas de outros países do Oriente Médio e dos mais diversos países africanos. Diferente do que vimos no primeiro dia em Istambul, aqui em Izmir encontramos pessoas em situação de vulnerabilidade pelas ruas, mesmo que não exista muitos obstáculos formais para emprego ou estudo. Há ainda, para essa população, acesso aos mesmos serviços de saúde fornecidos aos turcos, bem como outras assistências específicas de instituições e ONGs internacionais.

 

A Turquia não é um paraíso para os refugiados. Na verdade, o grande fluxo se deve às fronteiras com Síria, Iraque e Irã, dos quais derivam um vasto número de refugiados ou migrantes. Quando citei, na introdução deste texto, que “estar em Izmir e ouvir falar em golpe contra democracia brasileira é no mínimo deprimente”, estava pensando nos 3,7 milhões de pessoas refugiadas na Turquia e nos outros 99 milhões pelo mundo que fugiram de seus países de origem por medo, perseguição ou outros fatores de risco às suas vidas. Todas essas pessoas fugiram de países onde a democracia faleceu antes mesmo de nascer, dando lugar ao fascismo e regimes totalitários. No Brasil, mesmo que imperfeita, ainda temos uma democracia almejada por todas essas pessoas.

 

Quando passei pelos coletes salva-vidas pendurados, tive um triste sentimento de que falhamos como humanidade, ao ponto de permitir que mais de cem milhões de outros seres humanos dependam de ajuda humanitária para sobreviver. Por outro lado, após uma reflexão mais detalhada, lembrei que esses coletes ajudaram centenas, talvez milhares de sobreviventes, somente no mar Egeu. Lembrei que para milhares de pessoas, esses coletes servem como última gota de esperança em um gigantesco oceano. Para nós, brasileiros, a democracia é nosso colete salva-vidas – cabe a nós, agarrar ou nos jogar à deriva.



 

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