As crônicas da tecelã de Ancara
- Siqka
- 14 de dez. de 2024
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Anaid era conhecida como a mais talentosa tecelã de tapetes do antigo Império Otomano. Suas tramas eram famosas pela complexidade e pelas cores meticulosamente sobrepostas. Em Ancara, todos sabiam que seus fios vinham de lugares distantes: o violeta dos fenícios, o rubro de Damasco, o dourado de Bagdá, e os tons de turquesa únicos de Isfahan. Mas além da beleza visível em sua arte, havia algo mais. Anaid havia sido agraciada por Allah com o dom da profecia. Enquanto as Parcas gregas cortavam os fios do destino, do outro lado do mediterrâneo, Anaid os tecia, criando histórias de amor, felicidade e esperança para seus clientes.
Todos os dias, ao amanhecer, ela subia uma montanha até uma mesquita de largos pilares, erguidos pelos janízaros de Mehmed. Lá, orava e pedia a Deus que, apenas uma vez, lhe permitisse prever seu próprio futuro. Mas, por mais que tentasse, Anaid não conseguia tecer o destino para si mesma. Sempre havia um nó mal feito, uma trama solta ou desalinhada. Suas mãos, que criavam obras perfeitas para os outros, falhavam quando tentavam criar para ela.
Após a oração, Anaid retornava à sua casa de teto baixo, que era tanto seu ateliê quanto sua loja. Colocava os tapetes ao sol, esperando os comerciantes que vinham de todas as partes do mundo. Alguns desejavam presentear uma pessoa amada; outros buscavam desvendar o futuro. A fama de Anaid crescia, e a montanha começou a se encher de mercadores que buscavam estar perto dela. Alguns até tentaram vender seus próprios tapetes, mas nenhum se comparava ao trabalho feito pela tecelã.
Certo dia, um homem entrou no ateliê. Encantado com as peças, perguntou de quem era as mãos responsáveis por tamanha arte. Anaid respondeu que ela mesma as tecia. O homem começou a chorar, e, surpreso, ela perguntou o motivo das lágrimas. Ele explicou que amava sua arte, mas, sendo andarilho, não tinha uma casa onde pudesse colocar algo tão belo. Pediu permissão para carregar seus tapetes para os compradores, aliviando o peso que ela tinha de carregar. Assim, Anaid poderia dedicar mais tempo à sua arte, enquanto ele teria o privilégio de admirar suas obras no caminho.
A princípio, Anaid hesitou, mas, diante da insistência do homem, acabou aceitando. Com o passar do tempo, ela voltou à mesquita e, ao observar os vitrais coloridos, teve a inspiração para criar sua grande obra: um tapete que revelaria o próprio destino, dessa vez, ela estava certa que conseguiria. Durante dias e noites, Anaid trabalhou incansavelmente, sem comer ou dormir, até suas mãos sangrarem. Quando finalmente terminou, deu dois passos para trás e sentiu uma profunda frustração. O tapete estava cheio de imperfeições: tramas desalinhadas, nós mal feitos e uma composição incompreensível.
Naquele momento, o andarilho entrou na loja para mais uma entrega. Vendo as lágrimas de Anaid, perguntou por que ela chorava. Ela não conseguiu responder. O homem então disse que, infelizmente, era sua hora de partir, e ele não poderia mais carregar seus tapetes. Anaid esqueceu de sua própria dor e sentiu a perda daquela amizade tão sincera. Antes de o homem partir, insistiu que ele escolhesse um tapete como pagamento por sua ajuda.
Ele hesitou, mas acabou escolhendo o pequeno tapete que Anaid havia tecido para si mesma. Ela ficou surpresa e perguntou por que ele escolhera aquele, justamente o que ela considerava imperfeito. O homem sorriu e respondeu:
— Foi exatamente por isso que escolhi. Fui à mesquita, olhei para os vitrais e pedi a Deus que me desse um destino. Senti em meu coração que Allah nos ensina que a vida é assim: como vitrais, às vezes vermelhos, outras vezes violetas ou turquesas. Alguns se quebram, outros ficam opacos com o tempo. Mas todos existem para dar cor à luz que passa por eles. Quando vi este tapete, com suas falhas e imperfeições, percebi que ele é a essência de quem você é. Você é uma artista, mas também é humana. Erra, se frustra, mas transforma seus erros em algo belo.
Naquela noite, Anaid fechou as portas pesadas de madeira pela última vez e partiu com o andarilho. Eles nunca mais foram vistos em Ancara. Ainda hoje, dizem que é possível saber por onde passaram, pois onde estiveram deixaram obras de arte únicas, feitas de erros e acertos, que jamais poderiam ser pisadas.
De um andarilho para Anaid
