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Foto do escritorSiqka

Como está Betlehem, a cidade ocupada por Israel onde Jesus nasceu?

Mesmo arriscando ficar mais uma vez presos na estrada, pegamos uma van com destino à cidade onde Maria deu à luz ao menino Jesus. Ficamos mais de 2h na estrada, em um trajeto de apenas 28km, mas chegamos. Bethlehem (nome em árabe) ou Belém como a conhecemos, estava bem tranquila e tão vazia quanto esperávamos, com apenas alguns poucos grupos de turistas.

 



A Igreja da Natividade foi o primeiro ponto a ser visitado. Encomendada por Constantino, começou a ser construída em 300 d.C. Adentramos no salão principal e vislumbramos meticulosamente cada obra de arte que resistiu ao tempo e as mudanças entre um império e outro. Abaixo do altar principal existe uma gruta onde uma estrela de prata marca o local do nascimento de Jesus. Descemos entre os fiéis e vimos diversas manifestações de devoção religiosa. Enquanto a Di fazia suas orações, olhei para Ruayda e perguntei: Será que eles sabem o que aconteceu aqui?

 

Em 2 de abril de 2002, o governo de Israel enviou as Forças de Ocupação Israelense (IOF) para invadir a cidade de Belém na tentativa de capturar fedayins[1] da Organização para Libertação da Palestina (OLP). Os fedayins fugiram para a Igreja da Natividade onde foram acolhidos pelos padres e outros civis que estavam rezando. As autoridades israelenses montaram um cerco ao redor da Igreja com tanques, helicópteros, franco-atiradores e outros soldados de infantaria. O governo israelense reivindicava a imediata libertação dos reféns, no entanto, a ordem franciscana, uma das que administra a igreja[2], se pronunciou dizendo que todos os monges e as outras pessoas – mais de 200 – que estavam presentes na igreja eram voluntários em defesa dos guerrilheiros palestinos. O chefe da Igreja Católica Romana (outra administradora da igreja) na região disse que os homens foram recebidos em um santuário e que “a basílica é um lugar de refúgio para todos, até mesmo para os combatentes. Temos a obrigação de dar refúgio a palestinos e israelenses.”

 

No dia 4 de abril, o palestino Samir Ibrahim Salman, que estava dentro da Natividade, foi baleado várias vezes no peito por um franco-atirador israelense e acabou morrendo; ele não era guerrilheiro, era um sineiro da Igreja. Um porta-voz dos monges católicos na Terra Santa acusou os israelenses de “ato indescritível de barbárie”. O Vaticano também se manifestou dizendo para Israel respeitar o local sagrado; o Papa João Paulo II descreveu a violência como tendo atingido níveis “inimagináveis e intoleráveis”. No dia 10 de abril, outro monge foi baleado, e os israelenses culparam a própria vítima por estar usando roupas civis durante o ataque.

 

O cerco israelense durou semanas. Os monges e as autoridades negociavam a evacuação da Igreja desde que Israel garantisse a vida de todos os combatentes, mas as negociações foram frustradas e fizeram mais fatalidades. Em 2 de maio, dez ativistas estrangeiros do Movimento de Solidariedade Internacional conseguiram driblar os israelenses e adentrar na igreja para proteger os combatentes. Após 39 dias, um acordo foi alcançado, segundo o qual os militantes se entregaram a Israel e foram exilados na Europa e na Faixa de Gaza. O saldo foi de 8 pessoas mortas dentro da Igreja construída para marcar o local de nascimento de Jesus Cristo.

 

Admito que essa Igreja também me emocionou, mais ainda por saber que pessoas, lutadores pela liberdade de seu país, morreram ali enquanto fugiam de soldados colonizadores, os mesmos que agora exploram o turismo religioso em território ocupado. Por isso, enquanto fiéis se curvavam para tirar suas fotos beijando a estrela de prata, preferi fazer a clássica pose dos dedos em “V” e pronunciar um “free Palestine”, algo que incomodou a maioria dos religiosos.

 

No lado de fora da Igreja da Natividade, encontramos mais uma vez com Musa Al-Shaer, o jornalista do PJS. Ele nos levou até a gruta do Leite. Segundo conta a história, esse foi o local onde a Sagrada Família se escondeu de Herodes antes de fugir para o Egito.

 

A gruta se tornou simbólica, sobretudo para casais com dificuldades para engravidar. O simbolismo decorre da lenda de que aqui, uma gota do leite de Maria caiu na rocha, tornando-a e ao seu redor branco. Se verídico ou não, cabe a crença e a fé de cada um. A Gruta do Leite, assim como a Igreja da Natividade, são importantes santuários protegidos por cristãos e muçulmanos, também visitados por eles. Em nosso grupo por exemplo, havia dois muçulmanos, uma devota de São Jorge, e eu.

 

Nosso amigo Musa, nos levou para conhecer a região de Belém onde acontecem os maiores confrontos entre as pedras palestinas e as balas e bombas israelenses. Almoçamos bem em frente ao portão dos confrontos. Pedi para nos sentarmos bem em frente a janela. Olhando para a torre de vigilância queimada, a comida que apesar de maravilhosa, custava descer. Caminhamos um pouco ao redor do muro. Vimos manifestações artísticas em apoio a causa palestina e outras causas que clamam por urgência em todo mundo. Murais enormes, com aproximadamente 8 metros (tamanho do muro neste setor), os rostos estampados eram de Yasser Arafat, Abu Jihad[3], Ahed Tamimi[4], Shireen Abu Akleh[5], Leila Khaled[6] e outros.

 

Neste muro, encontra-se também manifestações artísticas como apoio a outras causas de justiça social, como o rosto de George Floyd[7] e as artes de Banksy[8].

 

Visitamos também The Walled off Hotel, também um projeto do artista e ativista Banksy. Inaugurado em 2017 esse projeto é parte importante na demonstração e conscientização para os crimes e danos causados pela ocupação sionista.

 

A Di estava tão impactada que não quis entrar. A Ruayda ficou com ela passeando pelo lado de fora. Circulando pelo Museu, passei por uma sala na qual só havia um telefone tocando. Por ser todo interativo, entendi a mensagem e atendi o telefone. A voz do outro lado se identificava como um oficial do governo israelense e notificava que esse prédio seria bombardeado e que eu teria somente cinco minutos para deixar o local. Bati o telefone e corri para o lado de fora, obvio que eu sabia que era uma encenação, no entanto, eu já entrevistei pessoas que passaram por esse momento e me coloquei no lugar delas; senti o desespero que elas sentiram, lógico que em outra proporção, mas senti. Saí dali correndo, sem olhar para trás. Encontrei com a Di e a Ruayda do lado de fora e pedi um copo de chá, precisava tirar aquele nó preso na garganta. Fiquei muito perturbado, eu só queria naquele momento, desabafar.

 

Depois de nossa visita a Belém, Ruayda nos levou até a cidade de Al-Khader, uma cidade próxima, para conhecer a casa de São Jorge. A Igreja estava fechada, mas Ruayda buscou, em uma casa em frente à Igreja, um senhor muito educado que saiu para abrir as portas da igreja e nos guiar por uma visita.

 

Como dito antes, São Jorge nasceu na Capadócia, Turquia, mas foi viver com sua mãe na Palestina. São Jorge doou toda sua fortuna, mas a casa de sua mãe foi preservada pela comunidade cristã da época. Ruayda nos guiava e contava algumas histórias sobre a Igreja e a vida de São Jorge e outras histórias eram contadas pelo palestino que abriu a igreja para nossa visita exclusiva. Alguns pontos da igreja haviam sido restaurados recentemente pelo senhor que nos acompanhava, já em outros anexos ele explicava o que faltava restaurar. Depois de nos mostrar as salas usadas como creche e outras como salas de aulas para crianças, o senhor nos convidou a tomar um café. Claro que aceitamos, iríamos tomar um café na casa da mãe de São Jorge!

 

Sentados à mesa, o palestino nos contou sobre os ataques israelenses no campo de oliveiras nos fundos da igreja; e como uma bomba de gás lançada pelas IOF incendiou o campo, quase destruindo a igreja; ele contou que precisou de dois caminhões de bombeiro para controlar o incêndio e da ajuda de cristãos e muçulmanos. “Como assim cristãos e muçulmanos” perguntei. “Sim”, ele disse, e completou “aqui rezamos e cuidamos da igreja juntos”. Ruayda explicou que a Igreja é frequentada tanto por cristãos como por muçulmanos, mesmo aquele senhor que era como um caseiro, cuidador e restaurador também era muçulmano.

 

Não se sabe exatamente quando a igreja passou a ser cuidada pelos palestinos muçulmanos. Estudiosos acreditam que al-Khadr – mesmo nome da cidade – um servo de Deus mencionado no Alcorão, tenha sido o próprio São Jorge. Mesmo que os detalhes dessa história sejam desconhecidos por uns e rejeitado por outros, os palestinos enxergam São Jorge como protetor da fé e dos necessitados, e por isso seguiram protegendo o monastério ao longo dos séculos, inclusive o protegem agora do exército colonizador de Israel.

 

Tudo o que vimos em um único dia, nos mostrou quanto cristãos e muçulmanos são próximos e convivem harmoniosamente na Palestina, demonstrando que o problema não tem nada a ver com religião e sim com ocupação territorial. Tanto é que pouco antes de nos curvarmos para adentrar pela “porta da humildade” na Igreja da Natividade, Ruayda nos mostrou um entalho discreto, mas com muito simbolismo; um entalho de uma meia lua que representa a religião islâmica na porta da Igreja que guarda o local de nascimento de Jesus e o assassinato de oito mártires palestinos durante o cerco israelense de 2002.

 

O Estado de Israel não se importa se a Igreja de Jorge é ou não importante para cristãos e muçulmanos, pois os judeus que costumavam também frequentar a igreja, já não a frequentam mais. Assim, como não respeitam o local do nascimento de Jesus, a menos que possam lucrar com o turismo religioso, ou usá-lo como desculpa para o seu plano de limpeza étnica e estado de genocídio permanente contra a população palestina. Conhecendo um pouco da história de Jesus Cristo, um palestino que nasceu em Belém, ou melhor Bethlehem, não tenho dúvidas que se o cerco israelense tivesse acontecido hoje, Jesus e São Jorge estariam lá defendendo os seus compatriotas e acabariam sendo os primeiros a serem baleados assim como foi o padre Samir.



 

[1] Fedayin é um termo que se refere aos militantes ou guerrilheiros de orientação nacionalista entre o povo palestino. A maioria dos palestinos considera os fedayin como “guerreiros da liberdade”, enquanto o governo israelense os descreve como “terroristas”.

[2] A custódia da Igreja da Natividade é dividida por três denominações cristãs: Ortodoxa Grega, Católica Romana e Armênia. Cada denominação cristã cuida de uma área específica da estrutura, porém todas elas realizam cultos na igreja.

[3] Abu Jihad, foi um dos fundadores da Fatah e segundo na linha de comando da OLP.

[4] Ahed Tamimi, é uma adolescente ativista palestina que age contra a ocupação dos territórios palestinos. Ficou conhecida por esbofetear soldados israelenses depois de seu primo ser baleado na cabeça.

[5] Shireen Abu Akleh foi uma jornalista palestino-estadunidense morta pelo exército israelense em 2022.

[6] Uma das guerrilheiras mais admiradas na Palestina, pertencia a Frente Popular para Libertação da Palestina (FPLP).

[7] George Floyd foi um afro-americano que morreu sufocado (25 de maio de

2020), após um policial ajoelhar em seu pescoço. Ativistas e organizações de

defesa dos direitos humanos, incluindo Roger Waters (líder da banda Pink Floyd), acusaram o governo americano de exportar a tática do exército israelense, que, frequentemente está associada a treinamento e consultorias as forças de segurança americana. A morte de George Floyd levou a protestos em todo o mundo do movimento ativista antirracista Black Lives Matter, pedindo à reforma da polícia e a legislação para lidar com as desigualdades raciais.

[8] Banksy é o pseudônimo de um artista anônimo “britânico”, cujos trabalhos em estêncil são facilmente encontrados nas ruas da cidade de Bristol, Londres

e em várias cidades do mundo.

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