Chegada em Cuba após 20 anos de espera
Havana, 24 de dezembro
No instante em que as rodas do avião tocaram o solo cubano, uma indagação floresceu em minha mente: "Estamos realmente aqui?" Ao contemplar o sorriso da camarada-esposa Diana Emidio, essa dúvida se desfez, e tive a certeza de que, sim, de fato, chegamos a Cuba. Desejaria que este momento tivesse se materializado de outra maneira e em outros tempos, já que nossos pensamentos permanecem presos com nossos irmãos e irmãs na Palestina, impedindo-nos de nos entregarmos a esta jornada da mesma forma como o fizemos em tantas outras. Dado que não temos o poder de determinar a forma ou o momento em que um sonho se concretiza, a única alternativa é vivê-lo, mesmo que esse sonho seja obrigado a coexistir junto a um pesadelo.
Saímos do aeroporto com uma sensação contida, questionando se tínhamos o direito de viver aquele momento e se deveríamos ou não o desfrutar. Poucas palavras foram trocadas entre nós, exceto aquelas necessárias para localizar um meio de transporte público que nos levasse até Havana Velha.
Éramos os únicos passageiros no ônibus, e o motorista percebeu nossa expressão estranha e a falta de entusiasmo para dois turistas que acabam de iniciar suas férias no Caribe. Com sensibilidade, ele iniciou uma conversa para dissipar a tensão evidente em nossos rostos.
O início da conversa nos cativou, trazendo um breve alívio, pois o motorista não apenas nos guiava pelo trajeto, mas também nos conduzia por histórias que coloriam a paisagem que se desenrolava além das janelas. Nossa distração foi interrompida ao passarmos por uma grande quantidade de carros e postos de gasolina abandonados ao longo da estrada; abruptamente, a conversa tomou outro rumo, e o motorista começou a falar sobre as crises existentes no país e a atual situação do "bloqueio".
Qualquer indivíduo minimamente cognitivo, mesmo que seus neurônios operem em turnos alternados, em algum momento já se deparou com a noção do termo "Embargo Econômico" dos Estados Unidos sobre Cuba. Nos últimos anos, uma asfixia econômica sem precedentes agravou a situação, tornando-a ainda mais desesperadora. Por isso, é mais apropriado designar essa condição como "bloqueio" econômico, em vez de simplesmente embargo, afinal, nada entra ou sai da ilha, a não ser pelos furos da peneira dessa política. Certamente, abordaremos o tema do bloqueio ao longo de todos os dias que estivermos aqui. Sendo assim, é apropriado explicar agora, pelo menos, o que ocorreu nos últimos anos, culminando nessa intensificação do cenário que o motorista nos mostrava pela janela.
Há alguns anos, em uma visita mediada pelo Papa Francisco, o presidente estadunidense Barack Obama esteve na ilha, chegando a apertar a mão do então presidente Raul Castro. O espetáculo midiático preparado pela Casa Branca, no fim das contas, trouxe benefícios apenas para a popularidade da gestão Obama, que reabriu a embaixada americana que estava fechada há décadas. Após esse circo da gestão Obama, um novo palhaço entrou no picadeiro: Donald Trump. A administração Trump introduziu um conjunto de 68 novas medidas para endurecer ainda mais a já fragilizada economia cubana. Em resumo, o pouco de positivo que Obama trouxe para a ilha foi retirado por Trump, e o único vestígio restante foi a embaixada, que, na prática, não serve para além de elaborar relatórios depreciativos sobre Cuba, o governo cubano e o "comunismo".
Se anteriormente a ilha já sofria com o embargo, as novas medidas de Trump agravaram ainda mais a situação, resultando no que hoje é denominado como um bloqueio geral. Uma dessas medidas impôs várias restrições aos americanos que desejam visitar Cuba, como aquela que exige que os viajantes preencham formulários junto ao Departamento do Tesouro, conforme mencionado anteriormente. Dado que o principal grupo de visitantes é composto por cubanos que emigraram para os EUA e Europa, essas restrições tiveram um impacto negativo na economia, uma vez que esses visitantes costumavam trazer consigo dólares e euros.
Outra das medidas de Trump diz respeito à dificuldade de Cuba em importar petróleo, o que resultou em uma estrada repleta de carros abandonados. A escassez de gasolina dificulta toda a circulação de bens essenciais por todo o país, incluindo o setor turístico. Para compreender melhor a gravidade da crise no transporte, vale destacar que, durante o governo golpista de Michel Temer, uma greve de caminhoneiros por cinco dias quase levou o Brasil inteiro ao colapso. Agora, imagine essa situação prolongada por décadas e liderada por um capitão desgovernado e desumano chamado Trump.
Com o término dos quatro anos catastróficos de Trump, chegou a vez de um dos presidentes americanos mais apáticos, Joe Biden. Embora pudesse reverter as medidas de Trump em relação a Cuba, como fez em outras políticas internacionais, Biden demonstrou mais interesse em financiar o genocídio, tanto no início do mandato no Afeganistão quanto agora na Palestina. Esse líder, mais focado em questões militares, parece indiferente às preocupações de comunidades não brancas, exceto por Kamala Harris, que serviu como uma estratégia publicitária eleitoral. Vale ressaltar que ela foi quem ergueu a mão para vetar à proposta brasileira de cessar-fogo na Palestina durante a reunião do Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Perguntei ao motorista se, apesar de toda a dificuldade do bloqueio e da atual situação em seu país, ele gostava de morar aqui. Ele não respondeu, mas a expressão em seu rosto transmitia um sentimento ambíguo, um misto de "sim" e "não". Olhando-me pelo retrovisor, ele compartilhou a seguinte história:
"Este ano, enfrentei uma grave doença, um problema no fígado. Minha enfermidade coincidiu com a doença de meu pai, um guajiro[1], que precisou abandonar o trabalho na plantação para cuidar de sua saúde. Ficamos sem meios para cuidar da terra, quando um furacão desolador varreu o que restava. Sem dinheiro, sem trabalho, e sem os legumes e verduras que cultivávamos. Eu e meu pai passamos meses internados no hospital, período durante o qual não nos faltou absolutamente nada. Um médico de 25 anos foi o herói que salvou nossas vidas, e o governo providenciou tudo o que precisávamos, tanto em medicamentos quanto em alimentos, para garantir nossa sobrevivência. Não sei se encontraríamos esse nível de assistência pública em outro lugar."
Refletindo sobre o Brasil, percebo que não enfrentamos um bloqueio que nos impeça de receber bens essenciais ou de comercializar nossos produtos globalmente. Apesar das vezes em que presidentes americanos tentam impor suas regras por aqui, agora temos novamente um líder que não se curva diante da bandeira americana. Cuba e o Brasil estão entre as raras exceções, em que um motorista pudesse contar com os planos de assistência médica gratuita fornecidos pelo estado. Considerando essa perspectiva, compartilhei com o motorista que, no Brasil, se eu enfrentasse uma situação semelhante, poderia contar com uma sorte parecida. No entanto, se vivêssemos nos EUA, Japão, Alemanha ou outro país que valoriza somente aqueles que podem gerar lucro, poderíamos nos deparar com o fardo dos custos, até mesmo os gastos com o enterro, que acabaria sobrando para algum familiar. Ele olhou novamente pelo retrovisor, e sua expressão sugeriu a resposta que eu antecipava: "sim".
A voz do motorista foi se tornando mais melancólica, e seus olhos, que eu acompanhava pelo espelho retrovisor, ganharam um brilho especial enquanto compartilhava sua experiência. Ficava claro que a resposta para a pergunta que eu fizera pendia cada vez mais para o "sim" e menos para o "não".
Não posso afirmar se foi pela influência de nossa conversa, mas em um determinado momento, o motorista estacionou em frente à Praça da Revolução e gentilmente sugeriu que, como éramos os únicos no ônibus, poderíamos descer rapidamente para tirar algumas fotos antes de continuarmos para Havana Vieja. Parecia que ele próprio necessitava daquele momento solo para reflexão.
Nesse instante, na imponente Praça da Revolução, diante dos edifícios públicos adornados pelos bustos de Camilo Cienfuegos e Che Guevara, e com o monumento de José Martí às minhas costas, pensei sobre como esses líderes sacrificaram suas vidas acreditando que a verdadeira independência só se completa com a emancipação de todos os seres humanos, sejam eles guajiros, motoristas de ônibus ou jornalistas e que, para alcança-la a soberania política deve estar firmemente entrelaçada com sua independência econômica. Convenci-me de que, se verdadeiramente desejamos a libertação do povo palestino, a melhor contribuição que podemos oferecer estando aqui é enfrentar o monstro que oprime todos os trabalhadores do mundo. Devemos descrever, através de nossas próprias palavras, como é possível construir um mundo mais justo. Contudo, isso só será alcançado se, ao invés de permanecermos inertes, iniciarmos a jornada nessa direção, mesmo que o caminho possa parecer um horizonte inatingível.
“Soberania nacional significa, em primeiro lugar, o direito que um país tem de que ninguém interfira na sua vida, o direito que um povo tem de se dotar do governo e do modo de vida que melhor lhe convém, que depende da sua vontade e apenas do povo. É o que pode determinar se um governo muda ou não. Mas todos estes conceitos de soberania política, de soberania nacional, são fictícios se a independência económica não estiver próxima deles.” Che. 20 de março de 1960[2]
[1] "Guajiro" é uma palavra utilizada principalmente em Cuba para se referir a um camponês ou agricultor, muitas vezes associado a áreas rurais. O termo carrega uma conotação cultural e pode se referir a um modo de vida mais simples e tradicional, vinculado à vida no campo. O guajiro é frequentemente retratado como alguém que trabalha na agricultura, cultivando a terra e vivendo em comunidades rurais.
[2] Primeira conferência de uma série, transmitida pela televisão cubana com o título “Universidade Popular” e da qual participaram os líderes da Revolução. (GUEVARA, 2017)