O regime Corpus Separatum de Jerusalém
Diferente da noite anterior, hoje não nos deixaram chegar nem perto para observar as orações no Al-Buraq (muro das lamentações para os israelenses). Logo acima do muro está a Esplanada das Mesquitas e mesquita Al-Aqsa, local que os colonos sionistas insistem em chamar de “Monte do Templo”. A Esplanada das Mesquitas é um dos pontos de nosso maior interesse na cidade, mas os soldados israelenses que guardam suas entradas não nos permitiram entrar. Tentamos pelos portões de acesso dos fiéis muçulmanos duas vezes, mas os soldados israelenses – não eram poucos – voltaram a nos impedir. Na tentativa derradeira, o soldado afirmou que não poderíamos entrar porque não éramos muçulmanos; eu lhe perguntei como poderia saber, mas saímos para evitar um tumulto e tentar novamente na manhã seguinte.
“O que é odioso para você, não faça para seu próximo” (Judaísmo)
“Faça aos outros o que gostaria que fizessem a você.” (Cristianismo)
“Nenhum de vocês é crente até que deseje para seu irmão o que deseja para si mesmo.” (Islamismo)
É bizarro que nos territórios controlados pelo Estado de Israel eu tenha que mentir sobre uma religião que nem tenho para poder entrar em algum templo religioso que também não pertence a religião do soldado que o controla. Ainda mais bizarro é um ateu olhar para um soldado que veio de algum lugar do mundo para morar na “Terra Prometida”, e saber que apesar de ele estar usando o quipá, ele acredita muito mais na segurança de seu fuzil que na provida por Deus. A hipocrisia dos fanáticos religiosos, seja lá qual for a religião, me incomoda profundamente.
Vou explicar uma coisa; o conceito de que “Deus” prometeu uma terra para o “povo de Israel”, não se sobrepõe aos direitos humanos, muito menos se o “povo escolhido” quer tomar terras à força, prendendo, torturando e matando qualquer um que se atreva a se opor às suas vontades nefastas. Ainda mais se o argumento usado para isso é puramente raso e não possui nenhum fundamento religioso. Termos empregados puramente como propaganda sionista que caminham na contramão do judaísmo. E nem sou eu que estou falando.
Atualmente existem muitas organizações judaicas de oposição ao sionismo em diversas partes do mundo. A Rede Judaica Antissionista Internacional (IJAN) afirma que o sionismo é um movimento racista e o Estado de Israel um regime de Apartheid. Grupos como a IJAN afirmam que não existem argumentos no judaísmo para o “retorno”, pelo contrário, as leis judaicas contidas no Talmude e outros livros sagrados afirmam que os judeus são proibidos de retornar para Terra Santa até a vinda do Messias.
Um dos grupos judaicos antissionistas de maior destaque é o Neturei Karta (‘Guardiões da cidade’ em aramaico). Formado por judeus húngaros e lituanos que se estabeleceram na Palestina no início do século XIX (antes das primeiras imigrações sionistas), seus fundadores ajudaram a comunidade palestina de Jerusalém na fundação de novos bairros para aliviar a superlotação da Cidade Velha[1]. Quando os primeiros sionistas imigraram, quase um século após o estabelecimento do Neturei Karta, estes se opuseram afirmando que a redenção judaica só poderia ser realizada de maneira divina e não pelas mãos humanas do sionismo. Atualmente com associados em Israel, EUA, Inglaterra e outros países o grupo de judeus ortodoxos se opõe ao sionismo pedindo pelo “desmantelamento pacífico” do Estado de Israel e expressa apoio à libertação da Palestina. O grupo também afirma que o sionismo (não o judaísmo) foi uma das causas que provocou o holocausto nazista.
Na opinião dos rabinos do Neturei Karta, “o sionismo é uma presunçosa afronta a Deus” e que “as tentativas humanas de estabelecer a soberania judaica sobre a Terra de Israel são pecaminosas”, a qual se opõe ao conceito dos Três Juramentos contidos no Talmude babilônico. A Lei dos Três Juramentos foi um pacto entre Deus, o povo judeu e as nações do mundo, estabelecida quando os judeus foram enviados para o exílio.
Para os Judeus: não reclamar à força a Terra de Israel e não se rebelar contra as outras nações. E para as outras nações: não subjugar excessivamente os judeus. Ao se rebelar contra esse pacto, os rabinos ortodoxos do Neturei Karta afirmam que os sionistas estão se rebelando contra Deus. Organizações como o Neturei Karta, o Edah HaChareidis[2] e outros, em Israel e no exterior, geralmente pertencem à segmentação filosófica Haredi[3], na qual rejeita a participação na política.
Após a “independência” de Israel, o judaísmo Haredi se caracterizou por sua oposição ao sionismo e ao estabelecimento do Estado de Israel; em sua maioria não celebram Yom Ha’Atzmaut (Dia da Independência de Israel) ou quaisquer outros feriados instituídos pelo estado. Os seguidores do judaísmo Haredi que não se consideram sionistas se enquadram em dois campos: não-sionista e antissionista.
Antissionista: que constituem a minoria, acreditam que qualquer independência judaica antes da vinda do Messias é um pecado. Não-sionista: se opõem a Israel como um estado judeu independente, os que o consideram positivo não acreditam que tenha qualquer significado religioso.
Embora sejam minorias presentes no Estado de Israel, os judeus antissionistas e não sionistas não pertencem aos principais partidos políticos, naturalmente, não possuem o apoio em números para eleger um governo majoritário porque devido à Lei de “retorno” de 1950 que deu o direito de qualquer pessoa do mundo, mesmo que não seja judeu ou religiosa, retornar para onde nunca esteve. Lastimavelmente, o mesmo direito não se aplica aos 5,8 milhões de refugiados palestinos que esse sistema de limpeza étnica promove há pelo menos um século. Desta maneira, o direito de retorno para Israel é tão incompatível com sua alegação, quanto o sionismo é incompatível com o judaísmo.
Caminhamos pelo bairro muçulmano, comemos o melhor falafel do mundo. Conversando com o palestino que preparou nosso falafel e nos recebeu com característica hospitalidade, falei que fomos impedidos de entrar na Esplanada das Mesquitas. Ele nos convidou a acompanhá-lo no dia seguinte, mas, infelizmente os palestinos não podem entrar na esplanada no mesmo horário que os turistas. Uma maneira que Israel encontrou para violar os direitos humanos dos palestinos sem cometer o erro de um tiro perdido atingir um turista.
Seguindo nossos planos caminhamos pela Via Dolorosa[4]. Entramos em cada igreja que marca os principais pontos do percurso de Jesus para a crucificação. De todo trajeto o ponto que mais nos impressionou foi o calabouço onde Jesus foi encarcerado após ser condenado por Pilatos. O local é sombrio e claustrofóbico, mas de uma forma inexplicável (pelo menos para um ateu), causa uma certa sensação de conforto. No momento que entramos nesse calabouço que hoje é uma igreja, estava acontecendo um culto ortodoxo. Alguns poucos cristãos entonavam um cântico (talvez em grego) que acabou dando tom à visita. Descemos até o subsolo. A aparência de caverna muda completamente e a sensação de conforto dá lugar ao sentimento de agonia. Em uma das celas escavadas na rocha vimos um altar de pedra com dois buracos, acima uma imagem de Jesus sentado com as pernas presas naqueles buracos. Estávamos sozinhos nesse momento, apesar de estar abaixo do solo podíamos ouvir o som dos cânticos de oração. A Di acendeu uma vela e subiu rapidinho. Não ficamos muito por ali e resolvemos seguir em frente.
Finalmente chegamos à Basílica do Santo Sepulcro, onde Jesus foi sepultado e ressuscitou. A igreja estava lotada. A cotoveladas, cristãos de todos os cantos do mundo disputavam os centímetros da basílica, em particular, o Altar da Crucificação e a Pedra da Unção. Ortodoxos, católicos apostólicos romanos, coptas e outros – cada qual a seu modo – entoam orações e cânticos. É difícil caminhar pela Igreja, afinal este local é considerado sagrado por todas as vertentes do cristianismo. Romanos, ortodoxos gregos, ortodoxos orientais, protestantes e há ainda os muçulmanos e, ateus como eu, todos juntos dividindo suas orações, rituais, crenças e fé.
Nesta igreja há uma cerimônia específica a qual me interessei muito. O patriarca ortodoxo, sob os olhos atentos de autoridades judaicas, para garantir que não haja nenhum artifício de combustão, adentra sozinho no Santo Sepulcro. O sacerdote aguarda quieto na antecâmara – no mesmo lugar onde o anjo esperou Maria Madalena para lhe revelar a ressurreição – e sai apenas quando as 33 velas se acendem espontaneamente. Durante o milagre, no “Sábado de Aleluia” do ano passado, um dos dias mais santos para o cristianismo, o governo israelense solicitou as autoridades das Igrejas Católica Romana, Católica Ortodoxa e Apostólica Armênia que restringissem o número de visitantes e peregrinos à Igreja do Santo Sepulcro durante o feriado. Os policiais israelenses tentaram dificultar o acesso da multidão e houve conflitos do lado de fora do local do sepultamento de Jesus, mas, após horas de espera, o Patriarca de Jerusalém conseguiu realizar a cerimônia do Fogo Santo e abriu os portões aos fiéis. Líderes palestinos no Knesset disseram que o Primeiro-ministro Naftali Bennett e Omer Ber-Lev, Ministro do Interior, estavam cometendo uma “violação flagrante à liberdade de culto” e iniciando um novo capítulo contra palestinos. A Igreja do Santo Sepulcro é uma experiência única na vida. Não sei se existe outro lugar no mundo com tanta concentração de pessoas que acreditam em dogmas diferentes acendendo uns as velas dos outros e repassando-as pela multidão.
“Impossível não se emocionar no local mais importante do cristianismo. Na Igreja do Santo Sepulcro, onde pude sentir com as mãos e coração a santíssima Pedra da unção, a pedra memorial do ritual judaico, onde foi realizada a unção de Jesus Cristo antes do seu enterro. Não sei como expressar o sentimento de entrar nessa igreja.” Diana Emidio
Contando assim, parece que a Terra Santa é um paraíso de respeito ecumênico onde as religiões convivem em harmonia. Já foi, mas hoje está bem longe de ser, principalmente para os muçulmanos e cristãos que vivem aqui. Há anos, a Esplanada das Mesquitas e a Igreja do Santo Sepulcro e outros templos na cidade são alvos de extremistas sionistas. Em uma dessas incursões contra a Mesquita Al-Aqsa, Ariel Sharon – mais tarde, primeiro-ministro israelense – Invadiu o complexo com soldados armados para realizar rituais judaicos. O episódio deflagrou a Segunda Intifada, revolta civil da população palestina contra a ocupação sionista, entre os anos 2000 e 2005. Com o tempo os ataques israelenses se tornaram cada vez mais frequentes e violentos; mortos e feridos se acumularam. No ano passado, soldados israelenses trancaram centenas de pessoas – palestinos muçulmanos – na Mesquita de Al-Aqsa, estilhaçaram seus vitrais e, dali, dispararam bombas de gás lacrimogêneo em seu interior, deixando centenas de pessoas intoxicadas pela inalação de gás. Mas as agressões, como disse, não foram destinadas somente aos muçulmanos. Extremistas judeus também queimam, picham e depredam igrejas cristãs. A sede da Igreja Ortodoxa Grega em Jerusalém foi vandalizada com as palavras “Jesus é um lixo”. No norte do território, local que foi ocupado por Israel em 1948, a igreja onde Jesus realizou o milagre da multiplicação dos peixes foi incendiada duas vezes.
Em 2022 os ataques foram tantos que muçulmanos fizeram um cordão de isolamento para que cristãos pudessem realizar sua tradicional procissão de Páscoa. Na mesma época, quando os ataques à Esplanada das Mesquitas se tornaram mais comuns e agressivos, os patriarcados das diferentes congregações cristãs também se uniram em defesa de Al-Aqsa. Até mesmo o Papa Francisco se pronunciou, ao defender o direito de todos os palestinos (cristãos e muçulmanos) de acessar aos seus lugares sagrados em Jerusalém ocupada.
Conhecer um pouco das religiões e transitar por Jerusalém é encantador mesmo para um ateu. No entanto, saber sobre os atos de violências e as violações aos direitos à liberdade de pensamento, consciência e religião (Art. 18 da Declaração Universal dos Direitos Humanos) é repugnante.
Jerusalém foi declarada uma cidade santa pertencente a todas as religiões. Seria bom se fosse! Em 1980, o Estado de Israel ignorando o status de corpus separatum promulgou uma lei declarando Jerusalém “completa e unida” como Capital de Israel. Tomando à jurisdição e administração de toda cidade, incluindo as partes árabes. O Conselho de Segurança das Nações Unidas declarou que a aquisição de terras árabe-palestinas a força era inadmissível e uma violação ao direito internacional. Em resposta a ONU aprovou a Resolução 478 que além de não reconhecer Jerusalém como capital de Israel, exortava os estados-membros a retirarem suas missões diplomáticas da cidade. Todos os estados-membros da ONU aprovaram a resolução, com exceção dos EUA que se absteve. Para piorar, em 2018, novamente o Knesset aprovou outra lei, esta declarava que Israel era um Estado Judeu.
Procurando pela Terra Santa, andamos pelo mesmo caminho que Jesus fez para crucificação. No fim do dia, ao chegar ao Jardim do Getsêmani e o Monte das Oliveiras, local que Jesus costumava falar com Deus, víamos o Domo Dourado da Esplanada das Mesquitas e também o cemitério judaico, três locais sacros para três religiões distintas. Percebi que a Terra Santa que procurávamos, só pode ser verdadeiramente Santa quando todas as religiões desfrutarem dos mesmos direitos à liberdade de pensamento, consciência e religião, bem como “a liberdade de manifestar essa religião ou crença pelo ensino, pela prática, pelo culto em público ou em particular.” (Declaração Universal dos Direitos Humanos)
[1] Rodeada por muros antigos, a Cidade Antiga é o lar de lugares sagrados para o monoteísmo, como o Al-Buraq (Muro das Lamentações), a Esplanada das Mesquitas, a Mesquita Al-Aqsa e a Basílica do Santo Sepulcro.
[2] Inspirado pela ideologia militante anti-sionista, o grupo se recusa a endossar o voto nas eleições, contando com doações de outros judeus Haredi anti-sionistas no exterior e com sua própria renda.
[3] Grupo judaico ortodoxo caracterizados por sua estrita adesão à halakha (lei judaica) e tradições, em oposição aos valores e práticas modernas.
[4] Via Dolorosa (Via Crucis) é uma rua na cidade velha de Jerusalém, que começa na Portão do Leão e percorre a parte ocidental da cidade de Jerusalém, terminando na Igreja do Santo Sepulcro.