Derrubando os ninhos de pássaros palestinos
Conhecidos como instituições de imprensa, ou mídia, os “canais” são os meios pelos quais as mensagens ou notícias são entregues aos receptores; a eles cabe a garantia da disseminação do conhecimento e da informação. Sem os atuais canais de mídia que conhecemos e usamos diariamente, estaríamos fadados a retornar aos métodos tradicionais do passado. Os textos seriam novamente escritos por monges copistas, em um processo demorado e restrito a poucos privilegiados. A transmissão das histórias dependeria exclusivamente da tradição oral, com o risco de perda de informações importantes ao longo do tempo. E a comunicação não verbal voltaria a ser limitada às pinturas em cavernas, incapazes de alcançar um público amplo e diversificado. Somente com um sistema de mídia plural, independente e comprometido com a verdade, poderemos garantir que a liberdade de informação cumpra seu papel essencial na promoção da democracia e na defesa dos direitos humanos.
Neste capítulo, cabe compreender que ataques, mesmo quando lançados contra instalações físicas, são agressões contra a liberdade de opinião e expressão de toda população, podendo ser interpretadas como punição coletiva. A esse efeito, é preciso trazer à luz o art. 48 do Protocolo Adicional I, da Convenção de Genebra, na qual determina que instituições de imprensa são bens civis e não devem ser consideradas alvos ou parte do conflito.
A fim de assegurar o respeito e a proteção da população civil e dos bens civis, as Partes em conflito devem sempre distinguir entre a população civil e os combatentes e entre os bens civis e os objetivos militares e, portanto, devem dirigir suas operações apenas contra objetivos militares. Convenção de Genebra [91]
Seguindo na Convenção de Genebra, lemos um pouco mais adiante, no artigo 52 do Protocolo Adicional I, sobre proteção geral dos bens de caráter civil:
1.Os bens de caráter civil não serão objeto de ataques nem de represália. São bens de caráter civil todos os bens que não são objetivos militares como definido no parágrafo (2.) 2. Os ataques limitar-se-ão estritamente aos objetivos militares. No que concerne aos bens, os objetivos militares se limitam aqueles objetos que por sua natureza, localização, finalidade ou utilização contribuam eficazmente para a ação militar ou cuja destruição total ou parcial, captura ou neutralização, ofereça nas circunstâncias do caso presente uma vantagem militar definida. 3. Em caso de dúvida a respeito de um bem que normalmente se presta a fins civis, tal como um lugar de culto, uma casa ou outra moradia, ou uma escola, estar sendo utilizado para contribuir eficazmente para ação militar, será presumido que não está sendo utilizado com tal propósito. Convenção de Genebra. [91]
A impunidade para com os crimes cometidos pelos soldados sob ordens dos três poderes israelense, mesmo em casos considerados pela lei internacional como crimes de guerra, fez com que a violência contra escritórios de agências de mídia e as residências de jornalistas palestinos tivessem um aumento significativo nos últimos anos.
Em 20 de novembro de 2019, as IOF invadiram um edifício na Jerusalém Oriental ocupada que abrigava os escritórios da Al-Arz Tv Productions e do Canal de Satélite da Palestina. Durante a incursão, o jornalista Ayman Abu Al-Romouz foi preso. Os soldados israelenses confiscaram pastas com arquivos pessoais, documentos e computadores da agência. De maneira injustificada, o Ministro de Segurança Interna, Gilad Erdan, decretou o fechamento da agência por 6 meses [9]. No ano seguinte, o Primeiro-ministro Netanyahu nomeou Erdan como embaixador de Israel na ONU e embaixador de Israel nos Estados Unidos; ao longo do cerco à Gaza, fica perceptível o protagonismo e compromisso de Erdan com o extermínio de todo povo palestino.
Os direitos civis, políticos e de liberdade de associação das pessoas são frequentemente violados quando ocorrem ações contra agências de notícias. Cada ataque à mídia prejudica tanto o direito à informação quanto a liberdade de informação, mesmo que a repressão seja direcionada contra instituições físicas e não necessariamente contra indivíduos. Netanyahu e Erdan não teriam conseguido autorizar essas violações se não fossem respaldados pela Lei de Combate ao Terrorismo 5776 de 2016, que foi alvo de críticas, considerando-a ilegal em comparação com outras leis internacionais. Uma de suas disposições permite que o Ministro da Defesa designe qualquer associação como “organização terrorista”. As definições fornecidas pela lei são excessivamente amplas e vagas, podendo abranger organizações e atividades legais. “Tais definições amplas resultaram em uma política de execução arbitrária e discriminatória.” [92]
“A Lei expande a gama de ofensas percebidas como terrorismo e inclui ofensas relacionadas à expressão explícita (por exemplo, §24). Isso viola o direito constitucional à liberdade de expressão e é usado para amordaçar a expressão política legítima. A Lei também diminui os processos judiciais relacionados, de modo que violem o direito fundamental ao devido processo – Incluindo o uso de provas secretas – e prevê penalidades desproporcionalmente severas para crimes de segurança definidos na Lei.” Adalah. [93]
Amparado pela lei de combate ao terrorismo, o Estado continuou a empregar violações arbitrárias nos anos seguintes. Em 4 de maio de 2019, durante a escalada militar na Faixa de Gaza, aviões israelenses despejaram 7 mísseis contra um prédio de 6 andares que continha instalações da Agência Al-Anadol. No ano seguinte, outros três bombardeios de escritórios de mídia palestinas foram registrados na Faixa de Gaza. [9]
Em 2022, o número de agressões saltou para 28 ocorrências, o que mais chamou a atenção foi o bombardeio a um prédio de 13 andares que abrigava escritórios da empresa americana Associated Press e da catari Al Jazzera [94] ocorridos durante os 12 dias consecutivos de bombardeio contra Gaza. Wael Al-Dahdouh, chefe do escritório da Al Jazeera em Gaza, um telefonema do Ministério da Defesa de Israel, alertou quanto ao bombardeio, dando um prazo de dez minutos para evacuação completa do prédio. “Dê-nos dez minutos extras”, pediu o proprietário do prédio, mas a voz do outro lado da linha se recusou a prorrogar o limite estipulado [94]. Na evacuação, os jornalistas recolheram o máximo de equipamento possível para poder manter o trabalho. Ao término do prazo concedido, os aviões bombardearam o prédio que desmoronou imediatamente. O ataque foi transmitido ao vivo por ambos os canais, AP e Al Jazeera. Em comunicado oficial, as agências condenaram o ataque e acusaram o governo israelense de um crime que visava unicamente impedir os jornalistas de cumprirem seu dever de informar o mundo e relatar as incursões militares contra a população civil não combatente na Faixa de Gaza.
Na mesma noite, em um pronunciamento ao vivo, Netanyahu justificou aos telespectadores que o ataque visava atingir o Hamas, que usava o prédio como base operacional e a imprensa internacional como escudo humano – uma desculpa nem um pouco original. Gary Pruitt, Ceo da Associated Press refutou a acusação.
“Posso dizer que estivemos ‘Associated Press’ naquele prédio por cerca de 15 anos e não tínhamos ideia de que o Hamas operava no prédio. Gostaríamos de ver as evidências para ter certeza se o Hamas estava lá ou não.”Gary Pruitt, Associated Press, 2022. [95]
A direção do Hamas comunicou que não havia qualquer militante ou mesmo residente do grupo no prédio bombardeado. De fato, após o bombardeio, os jornalistas vasculharam os escombros com ajuda da comunidade local em busca de recuperar o máximo de equipamento possível. Não encontraram qualquer evidência da presença do grupo de resistência palestino.
Ao contrário do argumento utilizado por Netanyahu, o edifício que foi alvo de bombardeio não abrigava uma ala militar de nenhum grupo de resistência por trás dos escritórios de imprensa. Em vez disso, abrigava dezenas de famílias palestinas. O relatório da Agência das Nações Unidas (UNRWA), cita durante o período anterior de bombardeios em Gaza que, conhecido como a Operação Margem Protetora, cerca de 15 mil residências sofreram algum grau de danos, sendo que duas mil foram completamente destruídas ou sofreram danos severos. Nesse período, 461 casas, 94 edifícios, 58 escolas, quatro hospitais e 19 instalações médicas foram totais, ou parcialmente destruídos devido aos ataques israelenses, resultando no deslocamento forçado de mais de 113.000 palestinos.
No total, 256 palestinos, incluindo 66 crianças, morreram durante as hostilidades. Quase 2.000 palestinos ficaram feridos, dos quais mais de 600 eram crianças e 400 eram mulheres, algumas das quais sofreram ferimentos graves e deficiências a longo prazo, exigindo reabilitação. No mesmo período, houve 13 mortes em Israel, incluindo duas crianças. [96]