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Foto do escritorSiqka

Feliz Navidad. Passando o natal com papai noel, o menino Jesus e Fidel Castro

Havana, 25 de dezembro

 

Acordamos cedo, enquanto a Di se arrumava para o primeiro dia completo de passeio, me acomodei na varanda da casa de Jamile para fumar um cigarro observando os habitantes de Havana cruzarem a rua três andares abaixo. Ao meu lado, um imenso Papai Noel inflável me fez lembrar de que hoje é natal. Lancei um segundo olhar para baixo e, um tanto desapontado, não testemunhei nenhum comunista com suas foice e martelo perseguindo um cristão que estivesse celebrando o nascimento de Jesus.


Perguntei para Jamile se em Cuba não se comemorava o natal, ela olhou de volta e deu de ombros, como se eu estivesse falando algum absurdo.


Após tomar um café, saímos às ruas para andar à toa, já que por ser feriado não havia nenhum lugar específico que pudéssemos ir. Não vimos decorações natalícias nem mesmo no Plaza de San Francisco de Asís, onde se encontra a igreja A Basílica Menor de São Francisco de Asís, inaugurada em 1575, cinquenta anos antes da inauguração da própria praça ao seu entorno. Ficamos nos perguntando se realmente os comunistas estavam perseguindo os cristãos como tantas vezes os pastores-deputados brasileiros disseram em campanha pró Bolsonaro, talvez não só os cristãos, pois a mesquita Abdallah a poucos metros da basílica também não tinha grande movimento.


A perseguição a religião e aos religiosos acontece sim e acontece de maneira aberta e até mesmo amparado pela lei. No início do ano, alguns parlamentares[1] propuseram uma lei para proibir a evangelização, tornando ilegal qualquer esforço para compartilhar a mensagem de Jesus e seus ensinamentos. A proposta previa pena de até um ano de prisão para missionários ou qualquer outra pessoa que, tanto em conversas pessoais quanto através de correspondência ou vídeos online, tentasse converter alguém ao cristianismo. Embora a proposta não tenha sido aprovada, a legislação do país já continha uma lei "anti-missionária" que punia os cristãos que praticam o batismo e a conversão de novos fiéis. Não só isso, na principal cidade religiosa do país, tornou-se costume cuspir em padres e freiras. – Não acredita, né? Um jornalista também não acreditou, por isso ele mesmo se vestiu como um padre e saiu às ruas.

 

“Humilhações, cuspes e espancamentos. Nos últimos seis meses, o cristianismo em Israel está sob ataque. Cada vez mais crimes de ódio contra o clero cristão e símbolos cristãos. Após um grande número desses casos, decidimos pedir um hábito de frade franciscano e saímos com frades do Vaticano para verificar as ruas da cidade velha”, escreveu Eli em sua conta no Twitter. “Os resultados foram surpreendentes. Alguns não pararam de cuspir em nós e nos menosprezar”. Yossi Eli [2]

 

Ficaria surpreso se te disséssemos que isso aconteceu em Jerusalém? - Pois é, tudo isso acontece em Israel, bem longe dos comunistas cubanos. No "Estado Nação Judeu", a intolerância religiosa é a regra e não a exceção, não só contra muçulmanos, mas também contra cristãos. Quando estivemos por lá, em 2023, um israelense invadiu a Capela da Condenação do Senhor, local onde Jesus saiu carregando a cruz até o Monte das Oliveiras. O criminoso picou a principal imagem de Jesus Cristo a golpe de machados. Essa foi apenas uma sutil demonstração de tolerância inter-religiosa.


Mas, deixemos Israel de lado e voltemos ao assunto principal, "a perseguição religiosa em Cuba". Meses antes de iniciarmos essa viagem, lemos juntos o livro “Fidel e a Religião”, uma séria de entrevistas que o comandante concedeu ao brasileiro frei Betto em 1985. Como frei dominicano, o autor também questionou ao entrevistado se realmente havia ou houve em algum momento perseguição no país. Para surpresa do leitor, o Comandante em Jefe confirmou que sim, mas como estamos falando de Fidel Castro, lógico que a resposta não foi curta nem superficial. 

 

“Em nome de Deus, os espanhóis e portugueses invadiram a América Latina e trucidaram milhões de indígenas. Em nome de Deus, multidões de escravizados foram trazidos da África para trabalhar em nossas terras. Em nome de Deus, estabeleceu-se o projeto de dominação burguesa no continente. Será que esse nome invocado por conquistadores, senhores de escravizados e opressores capitalistas, é o mesmo Deus dos pobres invocados por Jesus?” [3]

 

O governo revolucionário ganhou a reputação de perseguidor ao declarar Cuba um Estado ateu e implementar políticas seculares que enfraqueceram o tradicional poder político e a influência da Igreja Católica na ilha. Essa decisão não foi motivada pela visão comunista de considerar o Natal como um símbolo do capitalismo. Ela se baseou no histórico papel desempenhado pela Igreja ao longo do século XX, atuando como defensora de ditaduras e golpes militares. A Igreja deu apoio incondicional a regimes autoritários no Chile, Brasil, Guatemala, El Salvador, Uruguai, Peru e Venezuela. Na Argentina, até mesmo o padre Jorge Mario Bergoglio foi acusado de "omissão" e de ser "cúmplice" da repressão durante a ditadura argentina. Em 2010, Bergoglio teve que testemunhar para esclarecer essas acusações. Hoje esse padre argentino é mais conhecido como Papa Francisco. Se o Papa é culpado ou não das acusações, sinceramente não posso afirmar, mas se você perguntar às mães da Praça de Maio, certamente terá uma resposta diferente. O que é inquestionável é que a igreja falhou ao apoiar ditaduras e ignorar as torturas e assassinatos por toda América Latina, inclusive de seus próprios membros como Frei Betto, que como tantos outros foi preso, torturado e por sorte não acabou assassinado como tantos outros.

 

“O deus que vocês, marxistas-leninistas, negam, eu também nego: o deus do capital, o deus da exploração, o deus em cujo nome se promoveu a evangelização missionária da Espanha e de Portugal na América Latina, com o genocídio dos índios; o deus que justificou e sacralizou os vínculos da Igreja com o Estado burguês; o deus que hoje legitima ditaduras militares como a de Pinochet. Esse deus que vocês negam, e que Marx denunciou em sua época, nós também negamos. Esse não é o Deus da Bíblia, não é o Deus de Jesus.” Frei Betto

 

Nas décadas seguintes, ocorreram mudanças graduais nas relações entre o governo cubano e a religião. Apesar de o país manter sua secularidade, a Constituição de 1992 revogou a classificação de Cuba como um Estado ateu. De acordo com um relatório sobre liberdade religiosa em Cuba, divulgado pela Embaixada dos Estados Unidos - sim, dados oficiais da embaixada americana -, mais de 60% da população cubana identifica-se como cristã hoje. Além do Catolicismo Romano, diversas outras denominações religiosas, como o protestantismo, o espiritismo e até seguidores da fé bahá'í, coexistem. É importante destacar também a presença de outras crenças, como budismo, judaísmo, islamismo, além de sincretismos originados das tradições religiosas trazidas pelos africanos escravizados, como a santeria, que apresenta semelhanças com a Umbanda brasileira.


Mesmo ciente de todo esse contexto histórico e sabendo que a perseguição religiosa está mais evidente no Brasil do que em Cuba, o único Papai Noel que vimos por toda cidade estava na varanda de Jamile, e assim, minha pergunta ainda não tinha sido respondida. Ao chegarmos em casa, sugeri a Jamile se poderíamos preparar um macarrão para jantarmos juntos, mesmo que nenhum de nós celebre o natal. Ela concordou, mas Ryan foi quem mostrou mais interesse na ideia. Quando saímos para comprar os ingredientes, ele compartilhou que seu sonho era ser chef de cozinha, porém, em Cuba, isso era desafiador. Durante o jantar de Natal, Jamile explicou que, para Ryan, a dificuldade não estava em estudar, já que o governo proporciona educação gratuita para todos, mas sim em encontrar os ingredientes para pratos especiais. Com o bloqueio, nem todos os produtos estão sempre disponíveis nas prateleiras. Compreendi que a explicação de Jamile era a resposta para a pergunta que eu havia feito durante o dia todo. Decidi reformular a pergunta, indagando se esses eram os motivos para o Natal não ter tanta importância para os cubanos. Ela não demorou a responder que sim.



Mesmo conhecendo todo esse processo histórico e sabendo que a perseguição religiosa está mais ativa no Brasil do que em Cuba, o único papai Noel que vi em toda cidade era o da varanda de Jamile, com isso, minha pergunta ainda não estava respondida.


Então, sim, em todo o mundo hoje é Natal, desde a histórica Bethlehem, cidade onde nasceu Jesus e que hoje foi atacada por soldados israelenses, até as ruas vibrantes de Havana lá embaixo que, devido ao bloqueio, não há árvores decoradas com presentes e nem uma farta ceia da qual muitas coisas acabarão no lixo amanhã. Então, sim, é natal, mas a pergunta a ser feita é: – Natal para quem? – Talvez para aqueles que despejam suas bombas e embargos econômicos!

 

“Se a Igreja exige: ‘não roubar’, também aplicamos com rigor este princípio. Uma das características de nossa Revolução é a erradicação do roubo, da malversação e da corrupção. Se a Igreja exige: ‘amar o próximo como a si mesmo’, é precisamente o que pregamos através do espírito de solidariedade humana que está na essência do socialismo e do comunismo; o espírito de fraternidade entre os homens, que é também um dos nossos objetivos mais apreciados.” Fidel Castro

 

[1] Moshe Gafni e Yaakov Asher.

[2] ELI, Y. O humilhante costume que se instalou em Jerusalém: judeus cuspindo em cristãos. Gaudium Press Logo, 2023.

[3] (FREI BETTO, 1985)

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