Göreme, Jorge da Capadócia
Salve Jorge! Existe uma ligação entre nós que eu nunca compreendi; na verdade nunca me questionei sobre essa simpatia. Há quase 20 anos eu o desenho, e tatuo o santo em seus fiéis mais devotos. Sempre pensei como era forte aquela imagem do homem em seu cavalo branco matando um dragão. Anos se passaram e eu mantive essa ligação invisível, sempre o admirando quando cruzava meu caminho, até que em 2021, tive o tombo mais significativo da minha vida e na primeira oportunidade corri para os pés do Grande Jorge, por coincidência ou não, tive a honra de visitar a linda igreja dedicada a ele no Cairo. Fiz uma profunda oração ao Santo Guerreiro e fui atendida maravilhosamente por ele, por Deus e tantos outros seres de luz.
Não sei bem como rezar, já que não tenho nenhuma religião, mas me sinto à vontade em me comunicar com ele e Deus. Nesse monólogo entre amigos, gosto de pensar que eles me aceitam como sou, cheia de defeitos. Agora aqui no berço de São Jorge tive a certeza de que nada é por acaso; toda a minha ansiedade, pressa e urgência foi tomada por um sopro de tranquilidade.
São Jorge esteve comigo ano passado, num momento de desespero, me mostrando que existem coisas que não queremos, mas que Deus é absoluto, e às vezes age de formas dolorosas. Temos que aceitar o que o universo nos dá, assim como o que nos tira. Ele levou meu ‘amiguinho’, mas me deixou a certeza que ele está em suas mãos e um dia nos veremos.
Eu estou aqui Jorge, em sua homenagem, e te seguirei para sempre até te encontrar e te dizer obrigada por estar comigo, mesmo quando eu nem sabia da sua presença. Salve São Jorge Guerreiro.
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Acordamos com a primeira oração que soava da mesquita, antes do sol nascer. Nossa esperança era tomar um café assistindo ao espetáculo dos balões da Capadócia, mas não foi dessa vez! Os termômetros marcavam –4°C e a neblina não permitia ver um palmo à frente do nariz. Dadas as condições, não teve balões!
Como programado, saímos para uma trilha – uma não, duas: Rose Valley e Red Valley. Entre o frio, a neblina e a neve acumulada da madrugada, caminhamos sem pressa e fazendo muitas fotos pelo caminho; não tantas quanto eu gostaria, pois, algum dispositivo da máquina congelou – junto, meu coração. Já tínhamos visto neve antes, mas sempre no topo de alguma montanha ou em flocos tão sutis que derretiam ao primeiro contato com o solo. Dessa vez tinha neve. Como duas crianças, pulamos em arbustos e raspamos o chão para arremessar bolas de neve um no outro.
O passeio de hoje foi a Di que escolheu; estou tão focado na Palestina que nem me preocupei em saber o que faríamos na Turquia. Pela primeira vez em uma viagem decidimos separar o roteiro e cada um ficar responsável pelo que fazer em cada país. Adotamos essa estratégia por dois motivos específicos: o primeiro é que para conhecer a Palestina depende da vontade e nível de agressão dos soldados de ocupação israelense; o segundo é que a Di não sairia da Turquia sem antes conhecer os famosos mercados de pulgas.
Após uma hora de caminhada chegamos ao Rose Valley. Não sei se foi a neblina, mas não consegui distinguir onde acabava o Rose Valley e onde começava o Red Valley. Andamos algumas horas por entre subidas, descidas, terra e gelo, até que finalmente chegamos à primeira chaminé de fada.
Mais adiante, encontramos escavado na pedra, uma igreja cristã. Sim, uma igreja cristã, sabe–se lá de que época. A igrejinha é obviamente simples, mas chama a atenção pelas pinturas no teto e nas paredes, ao estilo cristão primitivo, ao menos em nosso ponto de vista leigo. As imagens estão bem deterioradas, o que impossibilita apreciar a obra por completo. Arrisco dizer que além dos anjos e arabescos que estavam melhores definidos, acredito que dois dos personagens das imagens eram os apóstolos Paulo e Pedro, pois, após a crucificação de Jesus os dois seguidores vieram propagar o cristianismo na Turquia.
“E sucedeu que, enquanto Apolo estava em Corinto, Paulo, tendo passado por todas as regiões superiores, chegou a Éfeso; ali encontrou alguns discípulos.” Atos 19:1
Entre um caminho e outro encontramos mais igrejas escavadas nas rochas. Somente na região da Capadócia existem cerca de 600 delas. Uma em particular nos impressionou bastante por ter uma cruz dos cruzados, esculpida no teto, muito bem preservada apesar dos séculos.
Não vamos nos atrever a falar muito das igrejas, pois é uma história que demanda estudo. Abordar esse tema sem tanto conhecimento apenas nos deixaria ainda mais confusos.
Para alguns pode ser uma novidade falar de cristianismo na Turquia ou no Oriente Médio, mesmo considerando que o cristianismo nasceu aqui. A começar, Jesus nasceu na Palestina; de lá seus seguidores espalharam seus ensinamentos pelo mundo e até hoje a presença da religião é forte nessas regiões. Referente a Turquia, o apóstolo Paulo nasceu em Tarso; era comum desde a antiguidade chamar uma pessoa e suceder seu nome a sua cidade ou região de nascimento, por isso, o apóstolo é chamado de Paulo de Tarso.
“Mas Paulo lhe disse: Na verdade que sou um homem judeu, cidadão de Tarso, cidade não pouco célebre na Cilícia; rogo-te, porém, que me permitas falar ao povo.”
Atos 21:39
Embora Paulo de Tarso seja o turco mais conhecido do Novo Testamento, escolhemos outro conterrâneo seu para destacar um pouco da relevância dos turcos para a formação do cristianismo, principalmente por nascer na região em que estamos.
Jorge nasceu na região da Capadócia, mas seu nome se difundiu no mundo todo. Hoje é reverenciado para além do catolicismo apostólico romano. Segundo a tradição, foi ele o soldado do exército romano que matou o dragão. Até aqui, acho que todos conhecem a estória, mas vamos um pouco mais além.
Após a morte de seu pai em batalha, Jorge mudou–se com sua mãe para Lida, na Palestina (cidade ocupada por Israel durante a Nakba ou “catástrofe”, em 1948, atualmente Lod). Na adolescência, Jorge entrou para o exército romano, no qual rapidamente ascendeu de posto. Quando sua mãe faleceu, o militar já de alta patente resolveu doar toda fortuna aos pobres, revelando ao Império Romano sua verdadeira devoção a Jesus Cristo.
A história do Santo Guerreiro trafega por lendas e tradições orais transmitidas pelos fiéis ao longo dos tempos, principalmente por sua imagem estar vinculada a um dragão e a lua. Uma dessas narrativas é que uma pequena cidade era atacada periodicamente por um animal alado que cuspia fogo. Para proteger a cidade, os cidadãos faziam um sorteio de jovens virgens para oferecer ao dragão. Um dia a filha de um rei foi escolhida como oferenda, e o rei não poderia negar a sorte da própria filha. Aí que aparece um jovem guerreiro que matou o dragão e salvou a princesa. – Matou não! A lenda conta que Jorge com uma espadada transformou o dragão em cordeiro, colocou em uma coleira e o deu a princesa.
– Tá; mas e a lua? – Popularmente no ocidente, acredita–se que a lua simboliza o islamismo combatido pelo santo. Mentira! São Jorge nunca combateu muçulmanos, até porque o islã surgiu 300 anos depois de sua morte. Essa versão só ganhou força porque a história e imagem do Santo Guerreiro se popularizou durante as cruzadas.” – Então São Jorge não vive na lua? – Pelo contrário, a União Astronômica Internacional batizou uma das crateras lunares com seu nome, então São Jorge vive sim na lua.
Mas como somos brasileiros, vale mencionar que as religiões de matrizes africanas também reverenciam o santo turco. Quando as pessoas escravizadas na África eram trazidas para o Brasil, os únicos bens que conseguiam trazer era sua cultura e religião, que também eram vistas como paganismo. Para driblar a imposição do cristianismo, os africanos escravizados adotaram a imagem de São Jorge para simbolizar Ogum. Esse sincretismo ainda hoje é usado na umbanda e candomblé.
– Afinal qual a realidade de São Jorge no meio de tantos mitos? – Durante a história do nascimento do cristianismo, o Império Romano dominava toda Terra Santa, na época a religião oficial era politeísta, e o cristianismo era visto como uma revolução popular, assim como seus adeptos que pregavam a igualdade e a humildade. Em 303 d.C., o imperador Diocleciano (284 – 305 d.C.) decretou a prisão de todos os soldados romanos que professassem a fé em Jesus Cristo. Jorge objetou diretamente ao imperador e declarou–se publicamente cristão. Consagrado como um dos melhores tribunos de Roma – isto é, agente público. O imperador tentou dissuadi-lo, ao lhe oferecer terras, dinheiro e escravos, mas encontrou apenas a abnegação e uma fé irredutível do bom soldado. Jorge foi preso, torturado e, enfim, no dia 23 de abril de 303 d.C., decapitado.
A história do jovem mártir em defesa da fé em Cristo ganhou notoriedade na Palestina, incluindo entre outros soldados que se rebelaram e se converteram. Mesmo a esposa do imperador, tocada pela história de Jorge da Capadócia, se converteu ao cristianismo. Voltando ao dragão, a historiografia de São Jorge é baseada em documentos seculares, apócrifos e pela tradição oral contada de geração em geração. Boa parte do relato pode ser considerado mítico ou místico – o que não quer dizer que não tenha credibilidade, afinal, elementos místicos e míticos nos ajudam a compreender a realidade. O dragão, portanto, é interpretado por teólogos como o mal que tenta destruir a fé.
Entre a deturpação da narrativa e o simbolismo místico e mítico, São Jorge pode ter até lutado contra povos árabes – lembrando que ser árabe é diferente de ser muçulmano – já que o exército romano guerreou contra os povos de quase todo o Oriente – incluindo árabes – o que nada tem a ver com fé ou religião. Quanto a afinidades e diferenças entre judaísmo, cristianismo e Islã, deixo o assunto para quando passarmos por Hebron (Al-Khalil), na Palestina ocupada. Por ora, gostaria de deixar uma reflexão nada teológica: se os antigos cristãos que habitavam essa terra foram embora ou se converteram ao Islã, quem foi que preservou as 600 igrejinhas da Capadócia?
Por muito tempo, sobretudo após os atentados de 11 de setembro de 2001, os muçulmanos sofreram com o preconceito nominado islamofobia. Todo preconceito se origina do medo; por sua vez nascido daquilo que não conhecemos. Jorge da Capadócia era cristão, foi torturado e morto por romanos pagãos que depois se converteram e canonizaram o soldado que eles próprios executaram. São Jorge morreu no século IV e o Islã surgiu no século VII, sendo assim, o argumento do santo contra muçulmanos é só mais uma ofensa preconceituosa.
O Ocidente de modo geral pouco sabe sobre os muçulmanos ou os árabes, – se soubesse, saberia diferenciar a nomenclatura – mesmo assim os trata com preconceito e discriminação. São Jorge morreu em defesa da fé. Porém, retratado com a pele clara, em um cavalo “branco” e com uma armadura reluzente, não é visto como “terrorista” ou “extremista”. De fato, muçulmanos e cristãos já viveram suas crises e confrontos na Turquia. Por conta dos efeitos colaterais da Primeira Guerra Mundial, cristãos – mesmo nascidos na Turquia – eram tratados pelo Império Otomano como estrangeiros e dependiam do suporte da Igreja Ortodoxa Grega e Armênia para subsistir. O atual governo turco prega um regime secular. Naturalmente, ainda há problemas a serem resolvidos.
De todo modo, muçulmanos, cristãos e fiéis da umbanda e candomblé, ainda lutam para defender sua fé e sua liberdade religiosa – direito inerente a todo ser humano, que deve ser garantido e protegido conforme a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Depois de uma caminhada de seis horas, conversando com a Di – por sinal, devota de São Jorge desde sua visita à igreja dedicada ao Santo Guerreiro no Cairo – atrevo-me a dizer que caso estivesse vivo hoje, Jorge da Capadócia defenderia com afinco os direitos de todos os povos, sobretudo seus irmãos muçulmanos, que por tanto tempo ajudaram a preservar a história do santo cristão.
Dedicado à S. A. Matos
“É justamente a possibilidade de realizar um sonho que torna a vida interessante.”
O Alquimista, Paulo Coelho