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Foto do escritorSiqka

Desinformação global e o chamado urgente pelo jornalismo e a regulamentação da Internet

A era da globalização se tornou também a era da desinforma­ção. Nunca foi tão necessário o fortalecimento do jornalismo sério, responsável e comprometido com os princípios éticos para defesa da sociedade e de nossa própria civilidade, assim como nunca se fez tão urgente aderir à política de regulamentação da internet e mídias sociais. Atualmente, a UNESCO e diversos jornalistas, representantes de estado e outras organizações têm discutido uma regulamentação em âmbito global. 

No início do ano de 2023, em Paris, foi realizado a Primeira Conferência Global “Internet for Trust”, ou “Por uma Internet Confiável” para discutir um “conjunto de rascunhos de diretrizes globais para a regulamentação de plataformas digitais” no intuito de “melhorar a confiabilidade da informação e proteger a liberda­de de expressão e os direitos humanos” [109]. O evento gerou contro­vérsia em todo mundo, alimentando a mesma desinforma­ção, discurso de ódio e teorias da conspiração que a conferência buscava combater.

Uma das questões centrais discutidas durante a conferência está relacionada ao direito à intimidade e privacidade na internet, con­forme estabelecido no artigo 12 da Declaração Universal dos Direitos Humanos. É inegável que milhões de dados pessoais de usuários da internet são coletados por empresas privadas e comer­cializados para quem oferecer o maior lance. A justificativa recorrente para essa prática de espionagem frequentemente gira em torno da segurança. Curiosamente, ainda há pessoas que se sentem seguras sob vigilân­cia constante, apoiando o argumento clássico de “quem não deve não teme”. A realidade vai muito além do escopo da segurança e encontro de práticas que visam não apenas a identificação de “terroristas”, como evidenciado no Project Pegasus, mas também a vigilância de opositores políticos e jornalistas comprometidos com a responsabilidade e transparên­cia – dessa vez, diferente do Project Pegasus.

Guilherme Canela, chefe da área de Liberdade de Expressão e Segurança de Jornalistas da UNESCO, explicou à ONU News, em Paris, os objetivos do evento, a magnitude do desafio e as estraté­gias para enfrentá-lo.

 “Temos um desafio considerável: embora haja um certo consenso sobre o problema, ainda não existe consenso sobre como abordá-lo. Portanto, a UNESCO convocou este debate global com todos os interessados para apresentar um rascunho de proposta em desenvolvimento. Queremos receber contribuições sobre como podemos efetivamente lidar com a situação, desenvolvendo oportunidades, mitigando riscos e buscando justiça pelos danos causados, ao mesmo tempo em que protegemos a liberdade de expressão.” Guilherme Canela, 2023. [110]


A expressão “regulamentação” já foi deturpada por agentes mal-intencionados que a conhecem bem. Muitos deles usaram suas redes sociais para criticar a possível regu­lamentação internacional da internet e das redes sociais, alegando que isso infringiria a liberdade de opinião e expressão dos usuários.

A regulamentação da internet não é uma questão nova no Brasil. Em 2021, uma audiência pública foi realizada pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados para debater o tema. Deputados brasileiros, principal­mente da direita, se manifestaram contra a possibilidade de o Ministério do Turismo editar um decreto regulamentando a mode­ração de conteúdo em plataformas digitais. A deputada Carla Zambelli (PSL-SP), conhecida por disseminar desinformação sobre o processo eleitoral brasileiro e medicamentos ineficazes contra a covid-19, foi uma das primeiras a se manifestar contra a regulamentação de postagens em mídias sociais. Segundo a depu­tada, 19 de seus vídeos foram retirados do Facebook, ela alegou que seus vídeos “não continham nenhum tipo de crime, eram apenas opiniões”. É compreensível que Carla Zambelli tema a regulamentação, uma vez que sua concepção de liberdade de opinião e expressão parece não considerar os direitos humanos de terceiros. Também, o que podemos esperar de alguém que compartilha nas redes sociais uma imagem retratando uma águia adornada com as bandeiras de Israel e dos EUA atacando um rato com um cinto de explosivos e a bandeira da Palestina? E isso ocorreu quando 9 mil palestinos já haviam sido assassinados por bombardeios israelenses no cerco a Gaza de 2023.

Em seu discurso de abertura na conferência, Audrey Azoulay, diretora-geral da UNESCO, observou que a linha divisória entre verdade e falsidade está cada vez mais tênue, com a negação de fatos científicos e a amplificação da desinformação e das teorias conspiratórias. Ela afirmou que, embora a desinformação não tenha começado nas redes sociais, a falta de regulamentação permitiu que ela ganhasse mais espaço do que a verdade. A conferência foi uma resposta a um apelo global de ação feito pelo Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, para enfrentar a disseminação da desinformação e a negação de fatos científicos estabelecidos, que representam “um risco existencial para a humanidade” – como aqueles propagados pelo conhecido gabinete do ódio do clã Bolsonaro, Zambelli e outros apoiadores.

Na França, onde ocorreu a primeira discussão internacional sobre a regulamentação da internet, o debate sobre a regulação dos meios de comunicação é antigo. Em 1982, o país estabeleceu sua regulação de comunicações com a criação da Alta Autoridade da Comunicação Audiovisual, posteriormente transformada na Comissão Nacional da Comunicação e das Liberdades (CNCL). O marco regulatório orienta as operações de emissoras públicas e privadas, visando garantir a proteção e promoção da cultura nacional, liberdade de expressão, direitos fundamentais, liberdade econômica e diversidade dos meios de comunicação. A legislação francesa limita o controle de veículos impressos diários a 30% por grupo de mídia, exigindo deles a exibição de programas educativos por meios de comunicação, tanto públicos quanto privados, aos quais foram concedidas licenças. Além disso, a França autoriza restrições à liberdade de expressão para evitar crimes, como a lei de combate ao racismo e à xenofobia, e possui leis que protegem direitos individuais, incluindo privacidade e restrições à pornografia.

Em todo o mundo, a desinformação e o discurso de ódio se tornaram cada vez mais frequentes nos últimos anos. A jornalista filipino-americana Maria Ressa[1], que também participou da conferência em Paris, destacou que “as mentiras se espalham mais rapidamente do que os fatos” e que, quando combinadas com medo, raiva, ódio e tribalismo, se espalham como um incêndio em gravetos secos. O que Ressa advertiu é que não podemos mais tolerar algoritmos de mídias sociais que recompensam a disseminação de mentiras em troca de nossa liberdade.




 

[1] Maria Angelita Ressa é uma jornalista e autora filipino-americana, mais conhecida por cofundar o website jornalístico Rappler, do qual é diretora executiva. Em 2021, ela recebeu o Prêmio Nobel da Paz.

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