Istambul, Capital de muitos impérios
A região da Capadócia será o ponto mais frio de nossa viagem. Daí a ideia de ter como primeira parada o mercado de pulgas de Kadiköy. Porém, antes de começar falando sobre nosso primeiro dia, precisamos esclarecer algumas coisas:
Istambul não é a capital da Turquia; sua capital é Ancara.
Turcos não são árabes; árabes são aqueles que falam o idioma árabe.
Na Turquia fala–se turco, portanto, não se fala árabe.
Nem todo turco é muçulmano; embora o Islã seja a religião predominante, a presença do cristianismo e judaísmo também é forte e constitui parte da história do país.
No Oriente Médio também faz frio! – Nós, ocidentais, tendemos a pensar que qualquer canto do Oriente Médio é deserto e faz calor. Trata–se de uma visão orientalista, a qual o autor palestino Edward Said descreveu como “Oriente como invenção do Ocidente”. Isso quer dizer que pouco ou nada sabemos sobre a cultura oriental, apenas especulamos; muitas vezes tirando conclusões precipitadas e equivocadas – percepção que o cinema americano e as novelas ajudaram a formar. Esqueça tudo que assistiu em “O clone”, até porque ele se passa no Marrocos, ou seja, outro país.
Voltando ao assunto, comecemos a falar de Kadiköy pela cidade gigantesca onde se situa. Como esclarecido, embora não seja capital da Turquia, Istambul é a maior e mais populosa cidade, onde está localizado o coração econômico que movimenta o país. A cidade é dividida pelo estreito de Bósforo, com um lado no continente europeu e a maior porção na Ásia; aliás, a única cidade do mundo dividida entre dois continentes.
Istambul antecede seu nome; a cidade já esteve nas mãos de persas, espartanos, atenienses, macedônios, celtas, romanos e bizantinos, até que em abril de 1453, o Sultão Mehmed II disparou o primeiro tiro de canhão contra suas muralhas. As semanas seguintes foram de batalhas épicas, uma delas, foi quando o papado de Nicolau V enviou navios em auxílio aos bizantinos. Mehmed II mandou os barcos para bloquear a ajuda no mar, mas sua frota inteira foi destruída pelo fogo grego[1].
Impossibilitado de adentrar no Corno de Ouro por causa das gigantescas correntes que guardavam o canal, Mehmed II ordenou a construção de uma estrada de rolagem ao norte da colônia genovesa, contornando por detrás da Torre de Gálata. Por essa estrada os otomanos atravessaram os navios do Sultão, uma estratégia ousada, mas que no final não deu certo e os navios otomanos acabaram sendo repelidos. Em 29 de maio a batalha final teve início. De um lado, Constantino XI Paleólogo defendia as muralhas com apoio do seu líder militar italiano Giovani Giustiniani; do outro o Sultão atacava a muralha com o maior canhão já construído e enviava as tropas de elite do exército otomano para escalar os muros da cidade e combater os soldados bizantinos.
O cerco otomano à Constantinopla se encerrou em 29 de maio de 1453, quando as tropas de elite dos Janízaros[2] feriram o militar Giustiniani, que foi retirado da batalha. Segundo a lenda, no último momento, prevendo a perda da cidade, o Imperador Constantino levantou sua espada e seguiu para luta; foi visto pela última vez. O Sultão Mehmed II venceu a batalha e finalmente conseguiu entrar na cidade capital bizantina e, a cavalo. Transformando a capital Constantinopla em Istambul, capital do seu próprio império. A vitória dos otomanos sobre os escombros bizantinos marcou o fim da Idade Média e da Idade Moderna.
Dada uma pequena introdução de mais de dois mil anos de história, voltemos ao frio de congelar os ossos. Acordamos cedo, deixamos as mochilas no hotel e saímos para conhecer a cidade, comprar as passagens para Göreme, na Capadócia e, quem sabe, fazer umas compras. Istambul é enorme; antes de chegar ao mercado de pulgas de Kadiköy atravessamos toda a cidade de trem e metrô, já que a primeira e mais importante missão era a compra das passagens. Um turco gentil nos ajudou bastante; por coincidência ou não, seu nome é Mehmed, igual ao do sultão otomano que tomou Constantinopla e a converteu em Istambul. Mehmed – não o sultão – depois que nos viu “quebrando cabeça” para comprar um ticket de metrô, conversou com um dos seguranças e passamos pela catraca no modo “free”. Não sei o que Mehmed estava fazendo naquele dia, mas parou tudo e foi conosco até a agência de ônibus da Metro, onde nos ajudou também com a compra das passagens para Göreme.
Já que falaremos muito sobre preconceitos neste diário, vamos assumir um dos nossos. Quando Mehmed nos ajudou, logo de cara pensamos: “vamos ter que dar uma grana”. Erradíssimos! Em todos os lugares que viajamos, sem exceção, geralmente as pessoas sempre estão dispostas a dar uma ajuda para os turistas perdidos, mas entre um e outro sempre aparece um querendo cobrar por uma informação, empurrar uma mercadoria que você não quer comprar, ou como é mais comum, te levar para uma “lojinha” da qual ganha comissão. Na Turquia tem sido diferente, as pessoas te ajudam de verdade, sem interesse. Com Mehmed foi assim, ele nos ajudou e de repente sumiu e foi viver sua vida.
Andamos muito por toda Istambul. Tentamos nos adaptar ao câmbio, já que percebemos que ao idioma seria impossível – eles têm “Ğ, Ö, Ş, e Ü” no alfabeto, letras que não sabemos nem como pronunciar. O atual alfabeto turco foi uma reforma promovida por um nome que repetiremos muitas vezes aqui, Kemal Atatürk – por sinal Atatürk com trema no “u”. Várias vezes nos perdemos tentando chegar ao famoso mercado de pulgas de Kadiköy – com trema no “o” – mas a cidade é tão fascinante que quanto mais nos perdemos, mais queríamos nos perder. Na procura do Kadiköy, chegamos sei lá como ao Grand Bazaar, um dos mercados cobertos mais antigo do mundo, o qual possui mais de 60 ruas e é frequentado por uma média de 400 mil pessoas por dia. O Grand Bazaar, como muitas outras construções na cidade, também é uma herança deixada por Mehmed II – dessa vez o Sultão, não o cara do metrô. Pouco depois de conquistar a cidade, Mehmed II mandou restaurar e expandir o mercado bizantino que havia. O Império Otomano cobrava uma taxa dos comerciantes, tal imposto foi revertido na transformação da Catedral de Hagia Sofia em Mesquita de Ayasofya. – Se você se perdeu com esses nomes, calma, explicaremos direitinho quando visitarmos o monumento. Atualmente o Grand Bazaar não é mais movimentado por artesãos ou comerciantes da rota da seda como antes, ele acabou se adaptando aos gostos e gastos dos turistas. Por falar nisso, se você pretende comprar roupas, saiba que a Turquia é o melhor país para isso, não estou brincando. Seja no Kadiköy, no Grand Bazaar, ou em qualquer um dos outros milhares de mercados em território turco, as roupas são extremamente baratas; além de que, visitar qualquer um desses mercados já é uma atração.
Quando demos conta já estava quase na hora de pegar o ônibus para a Capadócia. Não conhecemos o Kadiköy, mas conhecemos o Grand Bazaar, andamos por suas ruas, provamos alguns de seus doces e tomamos alguns – muitos – chás; além de conhecer o próprio Mehmed. Diante das muitas maravilhas que a cidade de Istambul tem a oferecer nem ficamos tristes por não chegar ao mercado de pulgas de Kadiköy.
Para não haver “pré-conceitos” como o que cometemos mais cedo, gostaria de esclarecer uma última coisa: mercado das pulgas é um termo popular usado para bazares medievais, principalmente em metrópoles como na França e Inglaterra, que vendiam roupas – junto com as roupas, também suas pulgas.
[1] "Fogo grego" era uma arma incendiária usada historicamente em batalhas navais, especialmente pelos bizantinos. Composta por uma mistura inflamável que podia ser lançada em direção aos navios inimigos, causava incêndios intensos e danos devastadores. Sua composição exata e métodos de uso variavam ao longo da história, mas sua eficácia era temida pelos adversários marítimos.
[2] Os Janízaros eram uma milícia de elite do Império Otomano, composta principalmente por soldados cristãos convertidos ao Islã. Reconhecidos por sua lealdade ao sultão e sua ferocidade no campo de batalha, os Janízaros foram uma força poderosa por séculos, exercendo influência significativa na política e na sociedade otomanas.