top of page

Leia on-line "A Revolução Russa" de Rosa Luxemburgo

 

Todos os arquivos da Editora Clandestino possuem uma versão gratuita, pois acreditamos que a informação deve ser amplamente acessível. No entanto, ao adquirir um de nossos arquivos disponibilizados, você contribui para a expansão de nosso trabalho e nos ajuda a alcançar um público ainda maior.



 



APRESENTAÇÃO

Escrito em 1918, "A Revolução Russa" de Rosa Luxemburgo é uma das obras mais importantes do pensamento marxista revolucionário. Nela, a autora faz uma análise profunda dos primeiros momentos da Revolução Russa, um evento que, em suas palavras, representava uma possibilidade histórica de transformação social, mas também um grande desafio para o movimento socialista global.

Luxemburgo, militante e teórica marxista de origem polonesa, vivia um período de grande efervescência política. A Revolução Russa, iniciada em 1917, trouxe uma onda de esperanças e incertezas para os trabalhadores e os movimentos sociais. Ao mesmo tempo, a Primeira Guerra Mundial ainda devastava a Europa, e o movimento operário enfrentava sérias divisões. É neste contexto de grandes transformações e lutas, mas também de contradições internas, que Rosa Luxemburgo escreveu sua obra.

Com a revolução em curso, a autora tinha uma perspectiva crítica, embora solidária aos ideais que alimentavam o movimento bolchevique. Luxemburgo reconhece o triunfo inicial da revolução, mas, ao mesmo tempo, questiona o que ela considera como os erros e as limitações da liderança bolchevique. Em particular, ela alerta sobre os perigos de uma revolução liderada apenas por uma vanguarda centralizada, sem a participação ativa e consciente das massas. Para ela, a verdadeira revolução socialista só seria alcançada através da ampla participação dos trabalhadores, da livre expressão das classes oprimidas e do debate democrático dentro do movimento revolucionário.

Luxemburgo via a revolução russa como uma oportunidade histórica que não poderia ser desaproveitada, mas também como um exemplo de como a falta de democracia interna e a centralização do poder poderiam engessar o potencial transformador do movimento. Ela se opôs à repressão de dissidentes dentro da revolução e à subordinação dos sovietes ao Partido Bolchevique, entendendo que a revolução só seria verdadeiramente socialista se fosse uma revolução de todo o povo, não apenas de uma facção.

O pensamento de Rosa Luxemburgo, expresso nesta obra, busca resgatar a dimensão revolucionária e democrática do socialismo. Ela enfatiza que o socialismo não se resume a uma mudança de classe dominante, mas a uma transformação radical das relações de poder e da própria natureza da política. Ao criticar a tendência de centralizar e burocratizar o poder nas mãos de poucos, Luxemburgo defende uma revolução que promova uma democracia popular e que dê voz às massas trabalhadoras em seu próprio processo de emancipação.

Em síntese, "A Revolução Russa" é uma obra que não apenas analisa os eventos que estavam em curso, mas também se coloca como uma reflexão para o futuro do movimento socialista. Rosa Luxemburgo nos convida a pensar a revolução não como uma série de decretos impostos de cima para baixo, mas como um processo coletivo e democrático que envolva as massas de maneira ativa e criativa. É um chamado à reflexão sobre como, mesmo em momentos de vitória, o movimento socialista deve permanecer fiel à sua essência democrática e revolucionária.

 Siqka


 

CAPÍTULO 1

SIGNIFICADO FUNDAMENTAL DA REVOLUÇÃO RUSSA

A Revolução Russa é o evento mais poderoso da Primeira Guerra Mundial. Seu surgimento, seu radicalismo sem precedentes, e suas consequências duradouras constituem a condenação mais clara das frases mentirosas que a social-democracia oficial tão zelosamente forneceu no início da guerra como um disfarce ideológico para a campanha de conquista do imperialismo alemão. Refiro-me às frases sobre a missão das baionetas alemãs, que deveriam derrubar o czarismo russo e libertar seus povos oprimidos.

O poderoso ímpeto da revolução na Rússia, os profundos resultados que transformaram todas as relações de classe, elevaram todos os problemas sociais e econômicos, e, com a fatalidade de sua lógica interna, se desenvolveram consistentemente desde a primeira fase da república burguesa até estágios cada vez mais avançados, finalmente reduzindo a queda do czarismo ao status de um mero episódio menor – tudo isso demonstra de forma clara que a libertação da Rússia não foi uma conquista da guerra e da derrota militar do czarismo, nem um serviço das "baionetas em punhos alemães", como certa vez prometeu o jornal Neue Zeit sob a edição de Kautsky. Pelo contrário, mostram que a libertação da Rússia tinha suas raízes profundamente fincadas no solo de sua própria terra e estava plenamente amadurecida internamente.

A aventura militar do imperialismo alemão, sob a bênção ideológica da social-democracia alemã, não trouxe a revolução na Rússia, mas apenas serviu para interrompê-la inicialmente, adiá-la por um tempo após sua primeira maré tempestuosa nos anos de 1911-1913, e, então, após seu início, criou para ela as condições mais difíceis e anormais.

Além disso, para qualquer observador pensante, esses acontecimentos são uma refutação decisiva da teoria doutrinária que Kautsky compartilhava com os social-democratas governistas, segundo a qual a Rússia, como um país economicamente atrasado e predominantemente agrário, não estaria madura para a revolução social e a ditadura do proletariado. Essa teoria, que considera viável apenas uma revolução burguesa na Rússia, também é a teoria da ala oportunista do movimento trabalhista russo, dos chamados mencheviques, sob a experiente liderança de Axelrod e Dan. E dessa concepção seguem as táticas da coalizão de socialistas na Rússia com o liberalismo burguês.

Com base nessa concepção da Revolução Russa, que define automaticamente suas posições detalhadas sobre questões táticas, tanto os oportunistas russos quanto os alemães encontram-se de acordo com os social-democratas governistas alemães [1]. Segundo a opinião de todos os três, a Revolução Russa deveria ter parado no estágio que o imperialismo alemão, em sua condução da guerra, estabeleceu como sua nobre tarefa, de acordo com a mitologia da social-democracia alemã, ou seja, deveria ter cessado com a derrubada do czarismo.

De acordo com essa visão, se a revolução ultrapassou esse ponto e estabeleceu como sua tarefa a ditadura do proletariado, isso é simplesmente um erro da ala radical do movimento trabalhista russo, os bolcheviques. E todas as dificuldades que a revolução enfrentou em seu curso posterior, bem como todas as desordens que sofreu, são retratadas como meramente o resultado desse erro fatídico.

Teoricamente, essa doutrina (recomendada como fruto do “pensamento marxista” tanto pelo Vorwärts de Stampfer quanto por Kautsky) decorre da descoberta “marxista” original de que a revolução socialista é um assunto nacional e, por assim dizer, doméstico em cada país moderno considerado isoladamente. Claro, nas névoas azuis das fórmulas abstratas, Kautsky sabe muito bem como traçar as conexões mundiais do capital que fazem de todos os países modernos um único organismo integrado. Os problemas da Revolução Russa, ademais – sendo um produto dos desdobramentos internacionais somados à questão agrária – não podem, de modo algum, ser resolvidos dentro dos limites da sociedade burguesa.

Na prática, essa mesma doutrina representa uma tentativa de se eximir de qualquer responsabilidade pelo curso da Revolução Russa, no que diz respeito à responsabilidade do proletariado internacional, especialmente o alemão, e de negar as conexões internacionais dessa revolução. Não foi a imaturidade da Rússia que foi provada pelos eventos da guerra e da Revolução Russa, mas sim a imaturidade do proletariado alemão para cumprir suas tarefas históricas. E tornar isso plenamente claro é a primeira tarefa de uma análise crítica da Revolução Russa.

O destino da revolução na Rússia dependia inteiramente dos acontecimentos internacionais. O fato de que os bolcheviques basearam sua política inteiramente na revolução proletária mundial é a prova mais clara de sua visão política de longo alcance, de sua firmeza de princípios e do ousado escopo de suas políticas. Nisso se evidencia o poderoso avanço que o desenvolvimento capitalista fez na última década. A revolução de 1905-1907 despertou apenas um eco tênue na Europa. Por isso, teve que permanecer como um mero capítulo de abertura. A continuação e a conclusão estavam atreladas ao desenvolvimento posterior da Europa.

É evidente que não são apologias acríticas, mas sim uma crítica penetrante e reflexiva que é capaz de extrair tesouros de experiências e ensinamentos. Tratando-se do primeiro experimento de ditadura do proletariado na história mundial (e um que ocorre, além disso, sob as condições mais difíceis concebíveis – no meio do incêndio global e do caos do massacre imperialista em massa, preso nas garras da mais reacionária potência militar da Europa e acompanhado pelo fracasso completo da classe trabalhadora internacional), seria uma ideia insana pensar que cada ação ou omissão desse experimento na ditadura do proletariado sob tais condições anormais representasse o ápice da perfeição. Pelo contrário, conceitos elementares de política socialista e uma percepção de seus pré-requisitos historicamente necessários nos forçam a entender que, sob tais condições fatais, mesmo o mais gigantesco idealismo e a mais testada energia revolucionária são incapazes de realizar a democracia e o socialismo, resultando apenas em tentativas distorcidas de ambos.

Destacar isso claramente em todos os seus aspectos fundamentais e consequências é o dever elementar dos socialistas de todos os países; pois somente com base nesse conhecimento amargo podemos medir a enorme magnitude da responsabilidade do próprio proletariado internacional pelo destino da Revolução Russa. Além disso, é apenas com essa base que a importância decisiva da ação internacional resoluta do proletariado pode se tornar eficaz, sem a qual, como suporte necessário, mesmo a maior energia e os maiores sacrifícios do proletariado em um único país inevitavelmente se enredarão em um labirinto de contradições e erros.

Não há dúvida de que as cabeças sábias no comando da Revolução Russa – Lenin e Trotsky, em seu caminho espinhoso, cercado de armadilhas de todos os tipos – deram muitos passos decisivos apenas com a maior hesitação interna e com a mais violenta oposição interior. E certamente nada está mais longe de seus pensamentos do que acreditar que tudo o que fizeram ou deixaram de fazer, sob condições de amarga compulsão e necessidade, no meio do turbilhão de eventos, deva ser considerado pela Internacional como um exemplo brilhante de política socialista, digno apenas de admiração acrítica e imitação zelosa.

Não seria menos equivocado temer que um exame crítico do caminho trilhado até agora pela Revolução Russa enfraquecesse o respeito e o poder de atração do exemplo da Revolução Russa, que, por si só, pode superar a inércia fatal das massas alemãs. Nada está mais distante da verdade. O despertar da energia revolucionária da classe trabalhadora na Alemanha nunca mais poderá ser convocado no espírito dos métodos de tutela da Social-Democracia Alemã de saudosa memória. Nunca mais poderá ser invocado por qualquer autoridade incontestável, seja a de nossos próprios “comitês superiores” ou a do “exemplo russo”. Não pela criação de um espírito de entusiasmo revolucionário, mas, ao contrário: somente por meio de uma compreensão de toda a terrível seriedade, de toda a complexidade das tarefas envolvidas, somente como resultado da maturidade política e da independência de espírito, somente como resultado de uma capacidade de julgamento crítico por parte das massas, cuja capacidade foi sistematicamente suprimida pela Social-Democracia por décadas, sob vários pretextos. Somente assim pode nascer no proletariado alemão a genuína capacidade de ação histórica. Dedicar-se a uma análise crítica da Revolução Russa em todas as suas conexões históricas é o melhor treinamento para a classe trabalhadora alemã e internacional diante das tarefas que lhes são impostas pela situação atual.

O primeiro período da Revolução Russa, desde o seu início em março até a Revolução de Outubro, corresponde exatamente, em seus contornos gerais, ao curso de desenvolvimento tanto da Grande Revolução Inglesa quanto da Grande Revolução Francesa. É o curso típico de todo primeiro ajuste geral das forças revolucionárias engendradas no ventre da sociedade burguesa.

Seu desenvolvimento segue naturalmente uma linha ascendente: de começos moderados a uma radicalização cada vez maior dos objetivos e, paralelamente, de uma coalizão de classes e partidos ao domínio exclusivo do partido radical.

No início, em março de 1917, os “Cadetes”, ou seja, a burguesia liberal, estavam à frente da revolução. A primeira grande onda revolucionária arrastou todos e tudo consigo. A Quarta Duma, produto ultra-reacionário do ultra-reacionário sistema de sufrágio de quatro classes e fruto do golpe de Estado, foi subitamente convertida em um órgão da revolução. Todos os partidos burgueses, até mesmo os da direita nacionalista, formaram repentinamente uma frente contra o absolutismo. Este último caiu no primeiro ataque, quase sem luta, como um órgão morto que precisava apenas ser tocado para despencar. O breve esforço da burguesia liberal para salvar ao menos o trono e a dinastia colapsou em poucas horas.

A marcha avassaladora dos eventos percorreu, em dias e horas, distâncias que, anteriormente, na França, levaram décadas para serem atravessadas. Com isso, ficou claro que a Rússia estava realizando o resultado de um século de desenvolvimento europeu e, acima de tudo, que a revolução de 1917 era uma continuação direta da de 1905-1907, e não um presente do “libertador” alemão. O movimento de março de 1917 ligou-se diretamente ao ponto onde, dez anos antes, seu trabalho havia sido interrompido. A república democrática foi o produto completo e internamente amadurecido do próprio início da revolução.

Agora, porém, começava a segunda e mais difícil tarefa. Desde o primeiro momento, a força motriz da revolução foi a massa do proletariado urbano. No entanto, suas demandas não se limitaram à realização da democracia política, mas concentraram-se na questão urgente da política internacional – paz imediata. Ao mesmo tempo, a revolução abraçou a massa do exército, que levantou a mesma demanda por paz imediata, e a massa dos camponeses, que trouxeram à tona a questão agrária, questão essa que, desde 1905, havia sido o eixo central da revolução. Paz imediata e terra – desses dois objetivos seguiu-se, inevitavelmente, a cisão interna na frente revolucionária.

A demanda por paz imediata estava em oposição irreconciliável às tendências imperialistas da burguesia liberal, cujo porta-voz era Milyukov. Por outro lado, a questão agrária era um espectro aterrador para a outra ala da burguesia, os proprietários de terras rurais. Além disso, representava um ataque ao princípio sagrado da propriedade privada em geral, um ponto sensível para toda a classe proprietária.

Assim, no dia seguinte às primeiras vitórias da revolução, iniciou-se uma luta interna dentro dela sobre as duas questões candentes – paz e terra. A burguesia liberal adotou táticas de adiamento e evasão. As massas trabalhadoras, o exército e o campesinato pressionavam cada vez mais impetuosamente. Não há dúvida de que as questões de paz e terra estavam intrinsecamente ligadas ao destino da democracia política da república.

As classes burguesas, levadas pela primeira onda tempestuosa da revolução, permitiram-se ser arrastadas até o ponto de um governo republicano. Agora, começaram a buscar uma base de apoio na retaguarda e, silenciosamente, a organizar uma contra-revolução. A campanha dos cossacos de Kaledin contra Petersburgo foi uma clara expressão dessa tendência. Se o ataque tivesse sido bem-sucedido, não apenas o destino das questões de paz e terra estaria selado, mas também o destino da república. A ditadura militar, um regime de terror contra o proletariado e, em seguida, o retorno à monarquia, teriam sido os resultados inevitáveis.

Disso podemos avaliar o caráter utópico e fundamentalmente reacionário das táticas pelas quais os "kautskyanos" russos ou mencheviques permitiram-se ser guiados. Endurecidos em sua adição ao mito do caráter burguês da Revolução Russa – porque, por ora, veja bem, a Rússia não estaria madura para a revolução social! – eles se agarraram desesperadamente a uma coalizão com os liberais burgueses. Mas isso significa uma união de elementos que haviam sido divididos pelo desenvolvimento interno natural da revolução e que entraram em conflito mais agudo entre si. Os Axelrods e Dans queriam colaborar a todo custo com aquelas classes e partidos de onde vinha a maior ameaça à revolução e à sua primeira conquista, a democracia.

É surpreendente observar como este homem industrioso (Kautsky), por meio de seu trabalho incansável de escrita pacífica e metódica durante os quatro anos da Primeira Guerra Mundial, rasgou buraco após buraco no tecido do socialismo. É um trabalho do qual o socialismo emerge crivado como uma peneira, sem um ponto intacto. A indiferença acrítica com que seus seguidores observaram esse trabalho incansável de seu teórico oficial e engoliram cada uma de suas novas descobertas sem sequer pestanejar encontra seu único paralelo na indiferença com que os seguidores de Scheidemann e companhia assistem enquanto estes últimos destroem o socialismo na prática. Na verdade, os dois trabalhos se complementam. Desde o início da guerra, Kautsky, o guardião oficial do templo do marxismo, tem feito na teoria exatamente o que os Scheidemanns têm feito na prática, a saber: (1) transformar a Internacional em um instrumento de paz; (2) desarmamento, Liga das Nações e nacionalismo; e, finalmente, (3) democracia, não socialismo.[2]

Nesta situação, a tendência bolchevique prestou o serviço histórico de ter proclamado desde o início, e seguido com consistência férrea, aquelas táticas que, sozinhas, poderiam salvar a democracia e impulsionar a revolução. Todo o poder exclusivamente nas mãos das massas trabalhadoras e camponesas, nas mãos dos sovietes – esse era, de fato, o único caminho para sair da dificuldade em que a revolução havia se metido; foi o golpe de espada com o qual cortaram o nó górdio, libertaram a revolução de um beco estreito e sem saída, e abriram para ela um caminho amplo e desimpedido para os campos livres e abertos.

O partido de Lenin foi, assim, o único na Rússia que compreendeu os verdadeiros interesses da revolução nesse primeiro período. Foi o elemento que impulsionou a revolução para a frente e, por isso, foi o único partido que realmente realizou uma política socialista.

Isso também esclarece por que os bolcheviques, embora no início da revolução fossem uma minoria perseguida, caluniada e caçada, atacada por todos os lados, chegaram, no menor tempo possível, à liderança da revolução e conseguiram atrair para sua bandeira todas as massas genuínas do povo: o proletariado urbano, o exército, os camponeses, bem como os elementos revolucionários da democracia, a ala esquerda dos socialistas-revolucionários.

A situação real em que a Revolução Russa se encontrava reduziu-se, em poucos meses, à seguinte alternativa: vitória da contrarrevolução ou ditadura do proletariado – Kaledin ou Lenin. Essa era a situação objetiva, como rapidamente se apresenta em toda revolução após o fim da primeira euforia, e como se apresentou na Rússia em razão das questões concretas e candentes de paz e terra, para as quais não havia solução dentro do marco da revolução burguesa.

Nisso, a Revolução Russa apenas confirmou a lição fundamental de toda grande revolução, a lei de sua existência, que determina: ou a revolução deve avançar em um ritmo rápido, tempestuoso e resoluto, rompendo todas as barreiras com mão de ferro e colocando seus objetivos cada vez mais à frente, ou será rapidamente jogada para trás, aquém de seu ponto de partida, e suprimida pela contrarrevolução. Permanecer imóvel, marcar passo em um mesmo ponto, contentar-se com o primeiro objetivo alcançado, nunca é possível em uma revolução. E aquele que tenta aplicar a sabedoria caseira derivada de batalhas parlamentares entre rãs e ratos ao campo das táticas revolucionárias demonstra apenas que a psicologia e as leis de existência da revolução lhe são completamente alheias e que toda a experiência histórica para ele é um livro selado com sete selos.

Considere o curso da Revolução Inglesa desde seu início, em 1642. Lá, a lógica dos acontecimentos tornou necessário que as primeiras vacilações tímidas dos presbiterianos, cujos líderes deliberadamente evitavam uma batalha decisiva com Carlos I e sua derrota, fossem inevitavelmente substituídas pelos independentes, que os expulsaram do Parlamento e tomaram o poder para si. Da mesma forma, dentro do exército dos independentes, a massa pequeno-burguesa inferior dos soldados, os “niveladores” lilburnianos, constituíram a força motriz de todo o movimento independente; assim como, por fim, os elementos proletários dentro da massa de soldados, aqueles que iam mais longe em suas aspirações por uma revolução social e que encontraram sua expressão no movimento dos “Diggers”, constituíram, por sua vez, o fermento do partido democrático dos “niveladores”.

Sem a influência moral dos elementos proletários revolucionários sobre a massa geral dos soldados, sem a pressão da massa democrática dos soldados sobre as camadas burguesas superiores do partido dos Independentes, não teria havido a "purga" dos presbiterianos do Longo Parlamento, nem o desfecho vitorioso da guerra contra o exército dos Cavalier e dos escoceses, nem o julgamento e execução de Carlos I, tampouco a abolição da Câmara dos Lordes e a proclamação de uma república.

E o que aconteceu na Grande Revolução Francesa? Aqui, após quatro anos de luta, a tomada de poder pelos jacobinos provou ser o único meio de salvar as conquistas da revolução, alcançar a república, destruir o feudalismo, organizar uma defesa revolucionária contra inimigos internos e externos, suprimir as conspirações da contrarrevolução e espalhar a onda revolucionária da França por toda a Europa.

Kautsky e seus correligionários russos, que desejavam que a Revolução Russa mantivesse o "caráter burguês" de sua primeira fase, são exatamente o equivalente àqueles liberais alemães e ingleses do século anterior que faziam distinção entre os dois bem conhecidos períodos da Grande Revolução Francesa: a "boa" revolução da primeira fase girondina e a "má" revolução após o levante jacobino. A superficialidade liberal dessa concepção da história, certamente, não se preocupa em compreender que, sem o levante dos "excessivos" jacobinos, mesmo as primeiras conquistas tímidas e vacilantes da fase girondina logo teriam sido enterradas sob as ruínas da revolução, e que a verdadeira alternativa à ditadura jacobina – como o curso implacável do desenvolvimento histórico colocou a questão em 1793 – não era a "democracia moderada", mas... a restauração dos Bourbons!

A "via do meio" não pode ser mantida em nenhuma revolução. A lei de sua natureza exige uma decisão rápida: ou a locomotiva avança a todo vapor para o ponto mais extremo da ascensão histórica, ou retrocede, pelo próprio peso, ao ponto de partida no fundo; e aqueles que tentam mantê-la com suas fracas forças no meio da subida são inevitavelmente arrastados para o abismo.

Assim, fica claro que, em toda revolução, apenas aquele partido capaz de assumir a liderança e o poder, e que tem a coragem de emitir as palavras de ordem apropriadas para impulsionar a revolução adiante e de tirar todas as conclusões necessárias da situação, é que consegue avançar. Isso também explica o papel miserável dos mencheviques russos, como Dan, Tseretelli, etc., que tinham enorme influência sobre as massas no início, mas que, após sua prolongada hesitação e depois de lutarem com unhas e dentes contra a tomada do poder e da responsabilidade, foram ignominiosamente expulsos do palco.

O partido de Lenin foi o único que compreendeu o mandato e o dever de um verdadeiro partido revolucionário e que, com a palavra de ordem – "Todo o poder nas mãos do proletariado e do campesinato" – garantiu o desenvolvimento contínuo da revolução.

Com isso, os bolcheviques resolveram o famoso problema de "conquistar a maioria do povo", problema que sempre pesou sobre a social-democracia alemã como um pesadelo. Como discípulos arraigados do cretinismo[3] parlamentar, esses social-democratas alemães tentaram aplicar às revoluções a sabedoria caseira da creche parlamentar: para alcançar qualquer coisa, primeiro é necessário obter uma maioria. O mesmo, dizem eles, aplica-se a uma revolução: primeiro, vamos nos tornar uma "maioria". No entanto, a verdadeira dialética das revoluções inverte essa sabedoria dos toupeiras parlamentares: não através de uma maioria, mas através de táticas revolucionárias, alcança-se uma maioria – esse é o caminho.

Apenas um partido que sabe como liderar, isto é, como avançar as coisas, ganha apoio em tempos tempestuosos. A determinação com que, no momento decisivo, Lenin e seus camaradas apresentaram a única solução capaz de fazer avançar a situação ("todo o poder nas mãos do proletariado e do campesinato"), transformou-os quase da noite para o dia de uma minoria perseguida, caluniada e proscrita, cujo líder teve de se esconder como Marat em porões, nos mestres absolutos da situação.

Além disso, os bolcheviques imediatamente estabeleceram como objetivo dessa tomada de poder um programa revolucionário completo e abrangente; não a salvaguarda da democracia burguesa, mas uma ditadura do proletariado com o propósito de realizar o socialismo. Com isso, conquistaram para si a distinção histórica imperecível de terem, pela primeira vez, proclamado o objetivo final do socialismo como o programa direto da política prática.

Tudo o que um partido poderia oferecer em termos de coragem, visão revolucionária e consistência em um momento histórico, Lenin, Trotsky e todos os outros camaradas ofereceram em grande medida. Toda a honra e capacidade revolucionária que faltaram à social-democracia ocidental foram representadas pelos bolcheviques. Sua insurreição de outubro não foi apenas a salvação efetiva da Revolução Russa; foi também a salvação da honra do socialismo internacional.



CAPÍTULO 2

A POLÍTICA AGRÁRIA DOS BOLCHEVIQUES

Os bolcheviques são os herdeiros históricos dos Niveladores[4] ingleses e dos Jacobinos franceses. Contudo, a tarefa concreta que enfrentaram após a tomada do poder era incomparavelmente mais difícil do que a de seus predecessores históricos.

(A importância da questão agrária. Mesmo em 1905. Então, na Terceira Duma, os camponeses de direita! A questão camponesa e a defesa, o exército.)

Certamente, a solução do problema pela tomada e distribuição direta e imediata da terra pelos camponeses era a fórmula mais curta, simples e direta para alcançar dois objetivos diversos: destruir a grande propriedade fundiária e, ao mesmo tempo, vincular imediatamente os camponeses ao governo revolucionário. Como medida política para fortalecer o governo socialista proletário, foi uma excelente manobra tática. Infelizmente, porém, essa medida tinha dois lados; e o lado reverso consistia no fato de que a tomada direta da terra pelos camponeses, em geral, nada tem a ver com economia socialista.

Uma transformação socialista das relações econômicas pressupõe duas coisas no que diz respeito às relações agrárias:

Em primeiro lugar, apenas a nacionalização das grandes propriedades fundiárias, como os meios e métodos de produção agrária tecnicamente mais avançados e concentrados, pode servir como ponto de partida para o modo de produção socialista no campo. Claro, não é necessário retirar do pequeno camponês sua parcela de terra, podendo-se, com confiança, conquistá-lo voluntariamente pelas vantagens superiores, primeiro da união em cooperativas e, por fim, pela inclusão na economia socializada geral. Ainda assim, qualquer reforma econômica socialista no campo deve, obviamente, começar pelas grandes e médias propriedades. Aqui, o direito de propriedade deve, antes de tudo, ser transferido para a nação ou para o Estado, o que, sob um governo socialista, equivale à mesma coisa; pois apenas isso possibilita organizar a produção agrícola de acordo com os requisitos de uma produção socialista interligada e em larga escala.

Além disso, em segundo lugar, é necessário eliminar a separação entre economia rural e indústria, característica da sociedade burguesa, de forma a promover uma interpenetração e fusão mútuas, abrindo caminho para o planejamento conjunto da produção agrária e industrial sob uma perspectiva unificada. Seja qual for a forma prática que os arranjos econômicos assumam – através de comunas urbanas, como alguns propõem, ou dirigidos de um centro governamental –, em qualquer caso, deve ser precedida por uma reforma introduzida a partir do centro, e esta, por sua vez, deve ser precedida pela nacionalização da terra. A nacionalização das grandes e médias propriedades e a união entre indústria e agricultura são dois requisitos fundamentais de qualquer reforma econômica socialista, sem os quais não há socialismo.

Que o governo soviético na Rússia não tenha realizado essas imensas reformas – quem pode culpá-los por isso! Seria uma piada de mau gosto exigir ou esperar que Lenin e seus camaradas, no breve período de seu governo, no centro de um redemoinho de lutas internas e externas, cercados por inúmeros inimigos e opositores – que, sob tais circunstâncias, já tivessem resolvido, ou mesmo abordado, uma das tarefas mais difíceis, senão a mais difícil, da transformação socialista da sociedade! Mesmo no Ocidente, sob as condições mais favoráveis, quando chegarmos ao poder, também quebraremos muitos dentes nessa dura tarefa antes de superarmos as milhares de dificuldades complicadas desse empreendimento gigantesco!

Um governo socialista que tenha chegado ao poder deve, em qualquer caso, fazer uma coisa: adotar medidas que apontem na direção desse requisito fundamental para uma posterior reforma socialista da agricultura; deve, pelo menos, evitar tudo o que possa barrar o caminho para essas medidas.

Agora, o slogan lançado pelos bolcheviques, a tomada e distribuição imediata da terra pelos camponeses, necessariamente apontava na direção oposta. Não apenas não é uma medida socialista; como também corta o caminho para tais medidas, acumulando obstáculos intransponíveis à transformação socialista da agricultura.

A tomada das propriedades fundiárias pelos camponeses, conforme o slogan curto e direto de Lenin e seus amigos – “Vão e tomem a terra para vocês” – levou simplesmente à conversão súbita e caótica da grande propriedade fundiária em propriedade fundiária camponesa. O que foi criado não é propriedade social, mas uma nova forma de propriedade privada, ou seja, a fragmentação de grandes propriedades em médias e pequenas propriedades, ou de unidades de produção relativamente avançadas em unidades pequenas e primitivas que operam com meios técnicos da época dos faraós.

Nem isso é tudo! Por meio dessas medidas e da maneira caótica e puramente arbitrária de sua execução, a diferenciação na propriedade fundiária, longe de ser eliminada, foi ainda mais acentuada. Embora os bolcheviques tenham convocado os camponeses a formarem comitês camponeses para que a apreensão das propriedades dos nobres fosse, de algum modo, feita de forma coletiva, fica claro que esse conselho geral não podia mudar nada na prática real e nas relações reais de poder na terra. Com ou sem comitês, eram os camponeses ricos e agiotas que compunham a burguesia camponesa possessora do poder real nas mãos de cada aldeia russa, que certamente se tornaram os principais beneficiários da revolução agrária. Sem estar lá para ver, qualquer um pode concluir por si mesmo que, no decorrer da distribuição da terra, a desigualdade social e econômica entre os camponeses não foi eliminada, mas sim aumentada, e que os antagonismos de classe foram ainda mais acentuados. A mudança de poder, entretanto, ocorreu em detrimento dos interesses do proletariado e do socialismo. Antigamente, havia apenas uma pequena casta de proprietários fundiários nobres e capitalistas e uma pequena minoria de rica burguesia rural para se opor a uma reforma socialista na terra. E sua expropriação por um movimento revolucionário de massa do povo seria mero jogo de criança. Mas agora, depois da "apreensão", como um opositor de qualquer tentativa de socialização da produção agrária, há uma enorme, recém-desenvolvida e poderosa massa de camponeses proprietários que defenderão sua propriedade recém-conquistada com unhas e dentes contra qualquer ataque. A questão da futura socialização da economia agrária – isto é, qualquer socialização da produção em geral na Rússia – agora se tornou uma questão de oposição e luta entre o proletariado urbano e a massa do campesinato. Como esse antagonismo já se acentuou pode ser visto no boicote camponês às cidades, onde retêm os meios de existência para especular com eles, da mesma forma que o Junker prussiano faz.

O pequeno camponês francês se tornou o defensor mais audaz da Grande Revolução Francesa, que lhe deu a terra confiscada dos emigrados. Como soldado napoleônico, carregou a bandeira da França à vitória, cruzou toda a Europa e destruiu o feudalismo em um país após o outro. Lenin e seus amigos poderiam ter esperado um resultado semelhante de seu slogan agrário. No entanto, agora que o camponês russo tomou a terra com o punho próprio, ele não sonha em defender a Rússia e a revolução à qual deve a terra. Ele se enterrou obstinadamente em suas novas posses e abandonou a revolução a seus inimigos, o Estado ao apodrecimento, a população urbana à fome.

(Discurso de Lenin sobre a necessidade de centralização da indústria, nacionalização dos bancos, do comércio e da indústria. Por que não da terra? Aqui, ao contrário, descentralização e propriedade privada.)

(O próprio programa agrário de Lenin antes da revolução era diferente. O slogan adotado dos muito condenados Socialistas-Revolucionários, ou melhor, do movimento camponês espontâneo.)

(Para introduzir princípios socialistas nas relações agrárias, o governo soviético agora tenta criar comunas agrárias a partir de proletários, em sua maioria desempregados urbanos. Mas é fácil ver de antemão que os resultados desses esforços devem permanecer tão insignificantes que desaparecerão quando medidos em relação ao todo das relações agrárias. Depois que os pontos de partida mais apropriados para uma economia socialista, as grandes propriedades, foram desfeitos em pequenas unidades, agora estão tentando construir unidades de produção modelo comunista a partir de pequenos começos. Sob essas circunstâncias, essas comunas podem ser consideradas apenas como experimentos e não como uma reforma social geral. Monopólio do grão com subsídios. Agora, post-festum, querem introduzir a guerra de classes no campo!)[5]

A reforma agrária leninista criou uma nova e poderosa camada de inimigos populares do socialismo no campo, inimigos cuja resistência será muito mais perigosa e obstinada do que a dos grandes proprietários fundiários nobres.


 

CAPÍTULO 3

A QUESTÃO DAS NACIONALIDADES 

Os bolcheviques são, em parte, responsáveis pelo fato de que a derrota militar foi transformada no colapso e na fragmentação da Rússia. Além disso, os próprios bolcheviques, em grande medida, agravaram as dificuldades objetivas dessa situação com um lema que colocaram em primeiro plano em suas políticas: o chamado direito de autodeterminação dos povos, ou algo que era realmente implícito neste lema – a desintegração da Rússia. 

A fórmula do direito das diversas nacionalidades do império russo de determinar seu destino independentemente "mesmo até o ponto do direito de separação governamental da Rússia" foi proclamada novamente com obstinação doutrinária como um grito de batalha especial de Lenin e seus camaradas durante sua oposição ao imperialismo de Miliukov e depois ao imperialismo kerenskyano[6]. Isso constituiu o eixo de sua política interna após a Revolução de Outubro também, e constituiu toda a plataforma dos bolcheviques em Brest-Litovsk; tudo o que tinham para se opor à demonstração de força pelo imperialismo alemão. 

Imediatamente se nota a obstinação e consistência rígida com que Lenin e seus camaradas aderiram a esse lema, um lema que é uma contradição flagrante com seu centralismo declarado na política, bem como com a atitude que assumiram em relação a outros princípios democráticos. Enquanto mostravam um desprezo frio pela Assembleia Constituinte, sufrágio universal, liberdade de imprensa e de reunião, em suma, por todo o aparato das liberdades democráticas básicas do povo que, tomadas em conjunto, constituíam o "direito de autodeterminação" dentro da Rússia, tratavam o direito de autodeterminação dos povos como uma joia da política democrática pela qual todas as considerações práticas de crítica real deveriam ser silenciadas. 

Enquanto não se permitiam ser impostos nem um pouco pelo plebiscito para a Assembleia Constituinte na Rússia, um plebiscito baseado no sufrágio mais democrático do mundo, realizado na plena liberdade de uma república popular, e enquanto simplesmente declaravam esse plebiscito nulo e sem efeito com base numa avaliação muito sóbria de seus resultados, ainda assim defendiam o "voto popular" das nacionalidades estrangeiras da Rússia sobre a questão de qual terra queriam pertencer, como o verdadeiro páládio de toda a liberdade e democracia, a quintessência pura da vontade dos povos e como a última instância para questões do destino político das nações. 

A contradição tão óbvia aqui é ainda mais difícil de entender, visto que as formas democráticas da vida política em cada terra, como veremos, envolvem de fato os fundamentos mais valiosos e até indispensáveis da política socialista, enquanto o famoso "direito de autodeterminação das nações" não passa de uma fraseologia e engano pequeno-burguês. 

Na verdade, o que se espera que este direito signifique? Faz parte do ABC da política socialista que o socialismo se opõe a toda forma de opressão, incluindo também a de uma nação por outra. 

Se, apesar de tudo isso, políticos geralmente sóbrios e críticos como Lenin e Trotsky e seus amigos, que nada têm além de um encolher irônico de ombros para todo tipo de frase utópica como desarmamento, liga das nações, etc., fizeram neste caso uma frase vazia de exatamente o mesmo tipo em seu hobby especial, isso surgiu, parece-nos, como resultado de algum tipo de política feita sob medida para a ocasião. Lenin e seus camaradas claramente calcularam que não havia método mais seguro para vincular os muitos povos estrangeiros dentro do Império Russo à causa da revolução, à causa do proletariado socialista, do que oferecer-lhes, em nome da revolução e do socialismo, a liberdade mais extrema e mais ilimitada de determinar seu próprio destino. Isso era análogo à política dos bolcheviques em relação aos camponeses russos, cuja fome por terra foi satisfeita pelo lema da apreensão direta das propriedades dos nobres e que deveriam ser, com isso, vinculados à bandeira da revolução e ao governo proletário. Em ambos os casos, infelizmente, o cálculo estava completamente errado. 

Enquanto Lenin e seus camaradas esperavam claramente que, como campeões da liberdade nacional até o ponto da "separação", transformariam a Finlândia, a Ucrânia, a Polônia, a Lituânia, os países bálticos, o Cáucaso, etc., em tantos aliados fiéis da Revolução Russa, testemunhamos, em vez disso, o espetáculo oposto. Um após o outro, essas "nações" usaram a liberdade recém-concedida para se aliar ao imperialismo alemão contra a Revolução Russa, como seu inimigo mortal, e, sob proteção alemã, levaram a bandeira da contrarrevolução para dentro da própria Rússia. O pequeno jogo com a Ucrânia em Brest, que causou uma virada decisiva nos acontecimentos daquelas negociações e trouxe toda a situação política interna e externa prevalecente atualmente para os bolcheviques, é um exemplo perfeito. A conduta da Finlândia, da Polônia, da Lituânia, das terras bálticas, dos povos do Cáucaso, mostra de forma mais convincente que não estamos lidando aqui com um caso excepcional, mas com um fenômeno típico. 

Certamente, em todos esses casos, não foram os "povos" que se envolveram nessas políticas reacionárias, mas apenas as classes burguesas e pequeno-burguesas, que – em oposição mais aguda às suas próprias massas proletárias – perverteram o "direito nacional de autodeterminação" em um instrumento de sua política contrarrevolucionária de classe. Mas – e aqui chegamos ao cerne da questão – é nisso que reside o caráter utópico e pequeno-burguês deste lema nacionalista: que, em meio às realidades cruas da sociedade de classes e quando os antagonismos de classe estão agudos ao extremo, ele se converte simplesmente em um meio de dominação da classe burguesa. Os bolcheviques deveriam ter aprendido, para grande prejuízo deles próprios e da revolução, que sob o domínio do capitalismo não existe autodeterminação dos povos, que em uma sociedade de classes cada classe da nação luta para "se determinar" de uma forma diferente, e que, para as classes burguesas, o ponto de vista da liberdade nacional está totalmente subordinado ao da dominação de classe. A burguesia finlandesa, assim como a burguesia ucraniana, foi unânime em preferir o domínio violento da Alemanha à liberdade nacional, se esta última tivesse que estar ligada ao bolchevismo. 

A esperança de transformar essas relações de classe reais de alguma forma em seu oposto e de conseguir um voto majoritário pela união com a Revolução Russa, confiando nas massas revolucionárias – se foi seriamente desejada por Lenin e Trotsky – representou um grau incompreensível de otimismo. E se foi apenas uma floritura tática no duelo com a política de força da Alemanha, então representou um jogo perigoso com o fogo. Mesmo sem a ocupação militar alemã, o famoso "plebiscito popular", supondo que tivesse chegado a esse ponto nos estados fronteiriços, teria dado um resultado, muito provavelmente, que teria dado aos bolcheviques poucas razões para se alegrar; pois devemos levar em consideração a psicologia das massas camponesas e de grandes seções da pequena burguesia, e as mil maneiras pelas quais a burguesia poderia ter influenciado o voto. De fato, pode-se tomar como uma regra inquebrável nestes assuntos de plebiscitos sobre a questão nacional que a classe dominante saberá como impedi-los onde não convier à sua finalidade, ou onde de alguma forma ocorrerem, saberá como influenciar seus resultados por todos os meios, grandes e pequenos, os mesmos meios que tornam impossível introduzir o socialismo por um voto popular. 

O simples fato de que a questão das aspirações nacionais e as tendências para a separação foram inseridas de qualquer forma no meio da luta revolucionária, e até empurradas para o primeiro plano e transformadas no grito de guerra da política socialista e revolucionária como resultado da paz de Brest, serviu para trazer a maior confusão nas fileiras socialistas e destruiu efetivamente a posição do proletariado nos países fronteiriços. 

Na Finlândia, enquanto o proletariado socialista lutava como parte da falange revolucionária russa fechada, possuía uma posição de poder dominante: tinha a maioria no parlamento finlandês, no exército; tinha reduzido sua própria burguesia a completa impotência e era o mestre da situação dentro de suas fronteiras. 

Ou tome a Ucrânia. No início do século, antes da tolice do "nacionalismo ucraniano", com seus rublos de prata e seus "Universais"[7] e o passatempo de Lenin com uma "Ucrânia independente", a Ucrânia era o bastião do movimento revolucionário russo. De lá, de Rostov, de Odessa, da região de Donetz, saíram as primeiras correntes de lava da revolução (já em 1902-04) que incendiaram toda a Rússia do Sul, preparando assim a insurreição de 1905. A mesma coisa se repetiu na revolução atual, na qual o proletariado do sul da Rússia forneceu as tropas escolhidas da falange proletária. A Polônia e os países bálticos têm sido, desde 1905, os focos mais poderosos e mais confiáveis de revolução, e neles o proletariado socialista desempenhou um papel de destaque.

Como é que então, em todas essas terras, a contrarrevolução triunfa subitamente? O movimento nacionalista, justamente por ter rompido o proletariado com a Rússia, o mutilou dessa forma e o entregou nas mãos da burguesia dos países fronteiriços.

Em vez de agir no mesmo espírito de verdadeira política internacional de classe que representavam em outras questões, em vez de trabalhar pela união mais compacta das forças revolucionárias em toda a área do Império, em vez de defender com unhas e dentes a integridade do Império Russo como uma área de revolução e opor, a todas as formas de separatismo, a solidariedade e a inseparabilidade dos proletários em todas as terras dentro da esfera da Revolução Russa como o comando supremo da política, os bolcheviques, com sua fraseologia nacionalista oca sobre o "direito de autodeterminação até o ponto de separação", realizaram justamente o contrário e forneceram à burguesia de todos os estados fronteiriços o melhor, o mais desejável pretexto, o próprio estandarte dos esforços contrarrevolucionários. Em vez de advertir o proletariado nos países fronteiriços contra todas as formas de separatismo como meras armadilhas burguesas, eles não fizeram nada além de confundir as massas em todos os países fronteiriços com seu slogan e entregá-las à demagogia das classes burguesas. Com essa demanda nacionalista, provocaram a desintegração da própria Rússia, pressionando nas mãos do inimigo a faca que este deveria cravar no coração da Revolução Russa.

É certo que, sem a ajuda do imperialismo alemão, sem "os coronéis alemães nas mãos dos punhos alemães", como disse a Neue Zeit de Kautsky, os Lubinskys e outros pequenos canalhas da Ucrânia, os Erichs e Mannerheims da Finlândia e os barões bálticos nunca teriam vencido as massas socialistas dos trabalhadores em suas respectivas terras. Mas o separatismo nacional foi o cavalo de Troia dentro do qual os "camaradas" alemães, com baioneta em punho, fizeram sua entrada em todas aquelas terras. Os reais antagonismos de classe e as relações de força militar provocaram a intervenção alemã. Mas os bolcheviques forneceram a ideologia que mascarou essa campanha contrarrevolucionária; fortaleceram a posição da burguesia e enfraqueceram a do proletariado.

A melhor prova disso é a Ucrânia, que deveria desempenhar um papel tão terrível no destino da Revolução Russa. O nacionalismo ucraniano na Rússia era algo bem diferente do que, por exemplo, o nacionalismo checo, polonês ou finlandês, pois o primeiro era um mero capricho, uma tolice de algumas dezenas de intelectuais pequeno-burgueses sem as mínimas raízes nas relações econômicas, políticas ou psicológicas do país; não tinha nenhuma tradição histórica, já que a Ucrânia nunca formou uma nação ou governo, não possuía cultura nacional alguma, exceto pelos poemas reacionários-românticos de Shevschenko. É exatamente como se, num belo dia, as pessoas que vivem na Wasserkante[8] quisessem fundar uma nova nação e governo de baixo-alemão (Plattdeutsche)! E essa pose ridícula de alguns professores universitários e estudantes foi inflada em uma força política por Lenin e seus camaradas por meio de sua agitação doutrinária sobre o "direito de autodeterminação incluindo etc." O que inicialmente era uma mera farsa foi tratado com tamanha importância que a farsa se tornou uma questão de extrema seriedade – não como um movimento nacional sério para o qual, depois como antes, não existem raízes, mas como uma fachada e uma bandeira de contrarrevolução! Em Brest, desse ovo podre saíram as baionetas alemãs.

Há momentos em que tais frases têm um significado muito real na história das lutas de classes. É o destino infeliz do socialismo que, nesta Primeira Guerra Mundial, coube-lhe fornecer as telas ideológicas para a política contrarrevolucionária. Quando a guerra eclodiu, a Social-Democracia alemã apressou-se em adornar a expedição predatória do imperialismo alemão com um escudo ideológico tirado do quartinho de ferramentas do marxismo, declarando-a como uma expedição libertadora contra o czarismo russo, tal como nossos antigos mestres (Marx e Engels) haviam desejado. E aos bolcheviques, que eram os antipodas dos nossos socialistas governamentais, coube fornecer a matéria-prima para o moinho da contrarrevolução com suas frases sobre o direito de autodeterminação dos povos; e assim, fornecer não apenas a ideologia para o estrangulamento da própria Revolução Russa, mas até mesmo para os planos de resolver toda a crise que surgiu com a Primeira Guerra Mundial.

Temos boas razões para examinar muito cuidadosamente as políticas dos bolcheviques a esse respeito. O “direito de autodeterminação dos povos”, juntamente com a Liga das Nações e o desarmamento pela graça do Presidente Wilson, constitui o grito de batalha sob o qual o acerto de contas do socialismo internacional com a burguesia deverá ser resolvido. É óbvio que as frases sobre autodeterminação e todo o movimento nacionalista, que atualmente constituem o maior perigo para o socialismo internacional, sofreram um fortalecimento extraordinário com a Revolução Russa e as negociações de Brest. Ainda teremos que abordar essa plataforma de forma aprofundada. O trágico destino dessas frases na Revolução Russa, nos espinhos dos quais os próprios bolcheviques estavam destinados a se enredar e ser dolorosamente arranhados, deve servir para o proletariado internacional como um aviso e lição.

E disso seguiu a ditadura da Alemanha desde o momento do tratado de Brest até o momento do “tratado suplementar”. Os duzentos sacrifícios expiatórios em Moscou. Dessa situação surgiu o terror e a supressão da democracia.[9]


 

CAPÍTULO 4

A ASSEMBLEIA CONSTITUINTE

Vamos testar esse assunto mais a fundo, tomando alguns exemplos.

A dissolução bem conhecida da Assembleia Constituinte em novembro de 1917 teve um papel destacado na política dos bolcheviques. Essa medida foi decisiva para a sua posição futura; até certo ponto, representou um ponto de virada em sua tática.

É fato que Lenin e seus camaradas estavam exigindo de forma enfática a convocação de uma Assembleia Constituinte até o momento de sua vitória em outubro, e que a política de protelar essa questão por parte do governo de Kerensky constituiu um ponto de acusação contra esse governo pelos bolcheviques e foi a base de alguns de seus ataques mais violentos contra ele. De fato, Trotsky diz em seu interessante panfleto de Outubro a Brest-Litovsk que a Revolução de Outubro representou “a salvação da Assembleia Constituinte” assim como da revolução como um todo. “E quando dissemos,” ele continua, “que a entrada na Assembleia Constituinte não poderia ser alcançada através do Parlamento Preliminar de Zeretelli, mas apenas pela tomada do poder pelos Soviets, estávamos totalmente certos.”

E então, após essas declarações, o primeiro passo de Lenin após a Revolução de Outubro foi... a dissolução da mesma Assembleia Constituinte, à qual se supunha que ele deveria entrar. Quais razões poderiam ser decisivas para uma virada tão surpreendente? Trotsky, no panfleto acima mencionado, discute o assunto de forma aprofundada, e vamos registrar seu argumento aqui:

“Enquanto os meses que precederam a Revolução de Outubro foram um tempo de movimento à esquerda por parte das massas e de um fluxo elementar de trabalhadores, soldados e camponeses em direção aos bolcheviques, dentro do Partido Socialista-Revolucionário esse processo se expressava como um fortalecimento da ala esquerda à custa da direita. Mas dentro da lista de candidatos do partido Socialista-Revolucionário, os velhos nomes da ala direita ainda ocupavam três quartos dos lugares ...”

 

“Então, havia ainda a circunstância de que as eleições em si ocorreram nas primeiras semanas após a Revolução de Outubro. A notícia da mudança que havia ocorrido se espalhou de forma relativamente lenta em círculos concêntricos da capital para as províncias e das cidades para os vilarejos. As massas camponesas, em muitos lugares, tinham pouca noção do que se passava em Petrogrado e Moscou. Elas votaram por ‘Terra e Liberdade’ e elegeram como seus representantes nos comitês de terra aqueles que estavam sob a bandeira dos ‘Narodniks’. Com isso, no entanto, votaram por Kerensky e Avksentiev, que estavam dissolvendo esses comitês de terra e fazendo com que seus membros fossem presos ... Esse estado de coisas dá uma ideia clara da medida em que a Assembleia Constituinte estava atrasada em relação ao desenvolvimento da luta política e ao desenvolvimento das agrupações partidárias.”

 

Tudo isso é muito bom e bastante convincente. Mas não se pode deixar de se perguntar como pessoas tão inteligentes como Lenin e Trotsky não chegaram à conclusão que segue imediatamente dos fatos acima expostos. Como a Assembleia Constituinte foi eleita muito antes do ponto decisivo de virada, a Revolução de Outubro[10], e sua composição refletia a imagem do passado desaparecido e não do novo estado de coisas, segue-se automaticamente que a Assembleia Constituinte superada e, portanto, morta-nascida deveria ter sido anulada, e, sem demora, novas eleições para uma nova Assembleia Constituinte deveriam ter sido organizadas. Eles não queriam confiar, nem deveriam ter confiado, o destino da revolução a uma assembleia que refletia a Rússia de Kerensky de ontem, do período de oscilações e coalizão com a burguesia. Portanto, não havia mais nada a fazer, exceto convocar uma assembleia que surgisse da Rússia renovada que havia avançado ainda mais.

Em vez disso, a partir da inadequação especial da Assembleia Constituinte que se reuniu em outubro, Trotsky tira uma conclusão geral sobre a inadequação de qualquer representação popular que pudesse vir das eleições populares universais durante a revolução.

 

“Graças à luta aberta e direta pelo poder governamental,” ele escreve, “as massas trabalhadoras adquirem, em um curto espaço de tempo, uma acumulação de experiência política, e sobem rapidamente de degrau em degrau em seu desenvolvimento político. Quanto maior o país e mais rudimentar seu aparato técnico, menos o mecanismo pesado das instituições democráticas consegue acompanhar esse desenvolvimento.”

 

Aqui encontramos o "mecanismo das instituições democráticas," como tal, questionado. A isso devemos imediatamente objetar que, em tal avaliação das instituições representativas, há uma concepção um tanto rígida e esquemática que é expressamente contraditada pela experiência histórica de cada época revolucionária. De acordo com a teoria de Trotsky, toda assembleia eleita reflete, de uma vez por todas, apenas a composição mental, a maturidade política e o estado de espírito de seu eleitorado no momento em que este vai às urnas. Segundo isso, um corpo democrático é o reflexo das massas no final do período eleitoral, assim como os céus de Herschel sempre nos mostram os corpos celestes não como são quando os estamos observando, mas como eram no momento em que enviaram suas mensagens luminosas à Terra das imensuráveis distâncias do espaço. Qualquer conexão mental viva entre os representantes, uma vez eleitos, e o eleitorado, qualquer interação permanente entre um e outro, é aqui negada. 

E como toda a experiência histórica contradiz isso! A experiência demonstra exatamente o contrário: ou seja, que o fluido vivo do humor popular flui continuamente ao redor dos corpos representativos, penetra neles, os guia. Como seria possível testemunhar, como vemos às vezes em todo parlamento burguês, as divertidas travessuras dos "representantes do povo", que de repente se veem inspirados por um novo "espírito" e emitem sons totalmente inesperados; ou encontrar as múmias mais secas, de vez em quando, se comportando como jovens e os mais diversos pequenos Scheidemännchen[11] de repente encontrando tons revolucionários em seus peitos – sempre que há tumulto nas fábricas e oficinas na rua.

E essa influência sempre viva do humor e do grau de amadurecimento político das massas sobre os corpos eleitos deve ser renunciada em favor de um esquema rígido de emblemas de partido e cédulas no meio da revolução? Muito pelo contrário! É precisamente a revolução que cria, com seu calor ardente, aquela atmosfera política delicada, vibrante, sensível, na qual as ondas de sentimento popular, o pulso da vida popular, atuam momentaneamente sobre os corpos representativos de maneira das mais maravilhosas. É precisamente neste fato, sem dúvida, que dependem as cenas móveis bem conhecidas que invariavelmente se apresentam nas primeiras etapas de toda revolução, cenas nas quais antigos reacionários ou moderados extremos, que saíram de uma eleição parlamentar com voto restrito sob o antigo regime, de repente se tornam os heróicos e tempestuosos porta-vozes da insurreição. O exemplo clássico é fornecido pelo famoso "Long Parliament" na Inglaterra, que foi eleito e se reuniu em 1642 e permaneceu no cargo por sete longos anos, refletindo em sua vida interna todas as alterações e deslocamentos do sentimento popular, do amadurecimento político, da diferenciação de classes, do progresso da revolução até seu ponto mais alto, desde as primeiras escaramuças devotas com a Coroa sob um presidente que permanece de joelhos, até a abolição da Câmara dos Lordes, a execução de Carlos e a proclamação da república.

E não foi a mesma transformação maravilhosa repetida nos Estados Gerais franceses, no parlamento submetido à censura de Luís Filipe, e até – e este último, exemplo mais marcante, foi muito próximo de Trotsky – até na Quarta Duma Russa, que, eleita no Ano da Graça de 1909 sob a regra mais rígida da contrarrevolução, de repente sentiu o calor ardente da revolução iminente e se tornou o ponto de partida para a revolução?[12]

Tudo isso mostra que “o mecanismo pesado das instituições democráticas” possui um poderoso corretivo – ou seja, o movimento vivo das massas, sua pressão incessante. E quanto mais democráticas as instituições, mais vívida e forte é a pulsação da vida política das massas, mais direto e completo é seu impacto – apesar dos rígidos estandartes partidários, das cédulas ultrapassadas (listas eleitorais), etc. Certamente, toda instituição democrática tem seus limites e deficiências, coisas que ela sem dúvida compartilha com todas as outras instituições humanas. Mas o remédio que Trotsky e Lenin encontraram, a eliminação da democracia enquanto tal, é pior do que a doença que supostamente deveria curar; pois bloqueia a própria fonte viva da qual somente pode vir a correção de todas as deficiências inatas das instituições sociais. Essa fonte é a vida política ativa, sem restrições, energética, das massas mais amplas do povo.


 

CAPÍTULO 5 

A QUESTÃO DO SUFRÁGIO  

Vamos tomar outro exemplo marcante: o direito de sufrágio elaborado pelo governo soviético. Não está claro qual é o significado prático atribuído ao direito de sufrágio. A partir da crítica das instituições democráticas feita por Lenin e Trotsky, parece que a representação popular com base no sufrágio universal é rejeitada por eles, por princípio, e que eles desejam se basear apenas nos sovietes. Por que, então, um sistema geral de sufrágio foi elaborado, realmente não está claro. Também não sabemos se esse direito de sufrágio foi colocado em prática em algum lugar; nada se ouviu sobre quaisquer eleições para qualquer tipo de corpo representativo popular com base nele. Mais provavelmente, trata-se apenas de um produto teórico, por assim dizer, da diplomacia; mas, como está, constitui um produto notável da teoria bolchevique da ditadura.

Todo direito de sufrágio, como qualquer direito político em geral, não deve ser medido por uma espécie de esquema abstrato de “justiça” ou em termos de outras frases burguesas-democráticas, mas pelas relações sociais e econômicas para as quais é destinado. O direito de sufrágio elaborado pelo governo soviético é calculado para o período de transição do capitalismo burguês para a forma socialista de sociedade, isto é, é calculado para o período da ditadura do proletariado. Mas, de acordo com a interpretação dessa ditadura que Lenin e Trotsky representam, o direito de votar é concedido apenas àqueles que vivem de seu próprio trabalho e é negado a todos os outros. Agora está claro que tal direito de voto tem significado apenas em uma sociedade que está em posição de tornar possível para todos que desejam trabalhar uma vida civilizada adequada, com base no próprio trabalho. Isso é o caso na Rússia atualmente? Sob as enormes dificuldades que a Rússia tem de enfrentar, cortada como está do mercado mundial e de sua fonte mais importante de matérias-primas, e em circunstâncias que envolvem um grande desarraigamento da vida econômica e uma brusca reviravolta das relações de produção, como resultado da transformação das relações de propriedade na terra, na indústria e no comércio – sob tais circunstâncias, está claro que inúmeras existências são de repente desarraigadas, desmanteladas sem qualquer possibilidade objetiva de encontrar algum emprego para sua força de trabalho dentro do mecanismo econômico. Isso se aplica não apenas às massas capitalistas e proprietárias de terra, mas também à camada ampla da classe média, e até mesmo à própria classe trabalhadora. É fato conhecido que a construção da indústria resultou no retorno em massa do proletariado urbano ao campo em busca de um lugar na economia rural. Sob tais circunstâncias, um direito político de sufrágio com base em uma obrigação geral de trabalhar é uma medida bastante incompreensível. De acordo com a tendência principal, apenas os exploradores devem ser privados de seus direitos políticos. E, por outro lado, ao mesmo tempo em que as forças de trabalho produtivas estão sendo desarraigadas em larga escala, o governo soviético frequentemente se vê obrigado a entregar a indústria nacional a seus antigos proprietários, por meio de arrendamento, por assim dizer. Da mesma forma, o governo soviético foi forçado a concluir um compromisso com as cooperativas de consumidores burguesas também. Além disso, o uso de especialistas burgueses provou-se inevitável. Outra consequência da mesma situação é que seções crescentes do proletariado, para quem o mecanismo econômico não fornece meios para exercer a obrigação de trabalhar, são tornadas politicamente sem direitos.

Não faz sentido considerar o direito de sufrágio como um produto utópico da fantasia, solto da realidade social. E é por essa razão que não é um instrumento sério da ditadura do proletariado. É um anacronismo, uma antecipação da situação jurídica que é própria com base em uma economia socialista já completada, mas não está no período de transição da ditadura do proletariado. 

Como toda a classe média, a intelectualidade burguesa e pequeno-burguesa, boicotou o governo soviético por meses após a Revolução de Outubro e paralisou a ferrovia, o correio e o telégrafo, e o aparato educacional e administrativo, e, dessa forma, se opôs ao governo dos trabalhadores, naturalmente todas as medidas de pressão foram exercidas contra ele. Isso incluiu a privação dos direitos políticos, dos meios econômicos de existência, etc., para quebrar sua resistência com punho de ferro. Foi precisamente dessa forma que a ditadura socialista se expressou, pois não pode se furtar ao uso de qualquer força para garantir ou impedir determinadas medidas que envolvem os interesses de todos. Mas quando se trata de uma lei de sufrágio que prevê a desproibição geral de amplas seções da sociedade, que as coloca politicamente fora do quadro da sociedade e, ao mesmo tempo, não está em posição de fazer um lugar para elas, mesmo economicamente, dentro desse quadro, quando envolve uma privação de direitos não como medidas concretas para um propósito concreto, mas como uma regra geral de efeito prolongado, então, não é uma necessidade da ditadura, mas uma medida provisória, incapaz de ser realizada na vida. Isso se aplica igualmente aos sovietes como fundação, à Assembleia Constituinte e à lei de sufrágio geral.[13]

Mas a Assembleia Constituinte e a lei de sufrágio não esgotam a questão.

Não consideramos acima a destruição das garantias democráticas mais importantes para uma vida pública saudável e para a atividade política das massas trabalhadoras: a liberdade de imprensa, os direitos de associação e reunião, que foram banidos para todos os opositores do regime soviético. Para esses ataques (aos direitos democráticos), os argumentos de Trotsky citados acima, sobre a natureza complexa dos corpos eleitorais democráticos, estão longe de ser satisfatórios. Por outro lado, é um fato bem conhecido e indiscutível que, sem uma imprensa livre e sem restrições, sem o direito ilimitado de associação e reunião, o governo das amplas massas do povo é completamente impensável.


 

CAPÍTULO 6

O PROBLEMA DA DITADURA                                                                        

Lenin diz em “O Estado e a Revolução: A Transição do Capitalismo para o Comunismo” que o estado burguês é um instrumento de opressão da classe trabalhadora; o estado socialista, da burguesia. Até certo ponto, ele diz, é apenas o estado capitalista de cabeça para baixo. Essa visão simplificada perde o mais essencial: o domínio de classe burguês não precisa do treinamento político e da educação de toda a massa do povo, pelo menos não além de certos limites estreitos. Mas, para a ditadura proletária, isso é o elemento vital, o próprio ar sem o qual não é capaz de existir. 

“Ao graças à luta aberta e direta pelo poder governamental”, escreve Trotsky, “as massas trabalhadoras acumulam em um tempo muito curto uma quantidade considerável de experiência política e avançam rapidamente de um estágio para outro de seu desenvolvimento.” 

Aqui Trotsky se refuta e aos seus próprios amigos. Justamente porque isso é assim, eles bloquearam a fonte de experiência política e a origem desse desenvolvimento ascendente com a supressão da vida pública! Ou então teríamos que supor que a experiência e o desenvolvimento foram necessários até a tomada do poder pelos bolcheviques e que, depois de alcançarem seu ponto mais alto, se tornaram supérfluos dali em diante. (Discurso de Lenin: A Rússia está ganha para o socialismo!!!) 

Na realidade, o oposto é verdadeiro! São as próprias tarefas gigantescas que os bolcheviques assumiram com coragem e determinação que exigem o treinamento político mais intensivo das massas e a acumulação de experiência. 

Liberdade apenas para os apoiadores do governo, apenas para os membros de um partido – por mais numerosos que sejam – não é liberdade alguma. Liberdade é sempre e exclusivamente liberdade para aquele que pensa de forma diferente. Não por qualquer conceito fanático de “justiça”, mas porque tudo o que é instrutivo, saudável e purificador na liberdade política depende dessa característica essencial, e sua efetividade desaparece quando “liberdade” se torna um privilégio especial. 

Os próprios bolcheviques não vão querer, com a mão no coração, negar que, passo a passo, têm que sondar o terreno, tentar, experimentar, testar ora de uma maneira ora de outra, e que muitos de seus métodos não representam pérolas inestimáveis de sabedoria. Assim será com todos nós quando chegarmos ao mesmo ponto – mesmo que as mesmas circunstâncias difíceis não prevaleçam em todos os lugares. 

A suposição tácita subjacente à teoria da ditadura de Lenin-Trotsky é esta: que a transformação socialista é algo para o qual uma fórmula pronta está completada no bolso do partido revolucionário, que só precisa ser executada energeticamente na prática. Isso é, infelizmente – ou talvez felizmente – não o caso. Longe de ser uma soma de prescrições prontas que precisam apenas ser aplicadas, a realização prática do socialismo como um sistema econômico, social e jurídico é algo que está completamente oculto nas névoas do futuro. O que possuímos em nosso programa não é nada além de alguns sinais principais que indicam a direção geral na qual procurar as medidas necessárias, e as indicações são principalmente negativas nesse sentido. Assim, sabemos mais ou menos o que devemos eliminar desde o início para liberar o caminho para uma economia socialista. Mas, quando se trata da natureza das mil medidas concretas e práticas, grandes e pequenas, necessárias para introduzir princípios socialistas na economia, no direito e em todas as relações sociais, não há chave em qualquer programa ou manual socialista. Isso não é uma falha, mas sim o que faz o socialismo científico superior às variedades utópicas. 

O sistema socialista de sociedade deve ser apenas, e só pode ser, um produto histórico, nascido da escola de suas próprias experiências, nascido no curso de sua realização, como resultado dos desenvolvimentos da história viva, que – assim como a natureza orgânica da qual, no último caso, faz parte – tem o bom hábito de sempre produzir, junto com qualquer necessidade social real, os meios para sua satisfação, junto com a tarefa, simultaneamente a solução. No entanto, se esse for o caso, então está claro que o socialismo, por sua própria natureza, não pode ser decretado ou introduzido por um ukase. Ele tem como pré-requisito uma série de medidas de força – contra a propriedade, etc. O negativo, a destruição, pode ser decretado; o positivo, a construção, não pode. Novo território. Mil problemas. Só a experiência é capaz de corrigir e abrir novos caminhos. Só a vida irrestrita, efervescente, cai em mil novas formas e improvisações, traz à luz nova força criativa, corrige a si mesma todas as tentativas erradas. A vida pública de países com liberdade limitada é tão empobrecida, tão miserável, tão rígida, tão estéril, precisamente porque, ao excluir a democracia, ela corta as fontes vivas de todas as riquezas espirituais e progresso. (Prova: o ano de 1905 e os meses de fevereiro a outubro de 1917.) Ali era político de caráter; a mesma coisa se aplica à vida econômica e social também. Toda a massa do povo deve participar disso. Caso contrário, o socialismo será decretado de trás de algumas mesas oficiais por uma dúzia de intelectuais. 

O controle público é indispensavelmente necessário. Caso contrário, a troca de experiências permanece apenas com o círculo fechado dos oficiais do novo regime. A corrupção torna-se inevitável. (Palavras de Lenin, Boletim No.29) 

O socialismo na vida exige uma transformação espiritual completa nas massas degradadas por séculos de domínio burguês. Instintos sociais no lugar de egocêntricos, iniciativa popular no lugar de inércia, idealismo que conquista todo sofrimento etc... Ninguém sabe disso melhor, descreve isso mais penetrantemente; repete isso mais teimosamente do que Lenin. Mas ele está completamente errado nos meios que emprega. Decreto, força ditatorial do supervisor de fábrica, penas draconianas, governo pelo terror – todas essas coisas são apenas paliativas. O único caminho para um renascimento é a escola da própria vida pública, a democracia mais irrestrita, a mais ampla e a opinião pública. É o governo pelo terror que desmoraliza.

Quando tudo isso é eliminado, o que realmente resta? No lugar dos corpos representativos criados por eleições gerais e populares, Lenin e Trotsky estabeleceram os sovietes como a única verdadeira representação da vida política no país como um todo. A vida nos sovietes também deve se tornar cada vez mais atrofiada. Sem eleições gerais, sem liberdade irrestrita de imprensa e de reunião, sem uma luta livre de opiniões, a vida morre em cada instituição pública, tornando-se uma mera aparência de vida, na qual apenas a burocracia permanece como elemento ativo. A vida pública gradualmente adormece, umas poucas dezenas de líderes do partido, de energia inesgotável e experiência ilimitada, dirigem e governam. Entre eles, na realidade, apenas uma dúzia de cabeças se destacam na liderança e uma elite da classe trabalhadora é convidada, de tempos em tempos, para reuniões onde se espera que aplaudam os discursos dos líderes e aprovem, de forma unânime, as resoluções propostas – no fundo, então, trata-se de um assunto de uma clique – uma ditadura, com certeza, mas não a ditadura do proletariado, e sim apenas a ditadura de um punhado de políticos, ou seja, uma ditadura no sentido burguês, no sentido do governo dos jacobinos (o adiamento do Congresso dos Soviets de três em três meses para seis em seis meses!) Sim, podemos ir ainda mais longe: tais condições devem inevitavelmente causar uma brutalização da vida pública: tentativas de assassinato, fuzilamento de reféns, etc.


 

CAPÍTULO 7

A LUTA CONTRA A CORRUPÇÃO  

Um problema de grande importância em toda revolução é o da luta contra o Lumpenproletariado[14]. Nós, na Alemanha também, como em qualquer outro lugar, teremos que lidar com esse problema. O elemento lumpemproletário está profundamente enraizado na sociedade burguesa. Não é apenas uma seção especial, uma espécie de desperdício social que cresce enormemente quando as paredes da ordem social começam a cair, mas sim uma parte integrante do todo social. Os eventos na Alemanha – e mais ou menos em outros países – mostraram o quão facilmente todas as seções da sociedade burguesa estão sujeitas a tal degeneração. As gradações entre o lucro comercial, os negócios fictícios, a adulteração de alimentos, o engano, o desfalque oficial, o furto, o roubo e o assalto, se misturam de tal forma que a linha de fronteira entre o cidadão honrado e o presídio desapareceu. Aqui, o mesmo fenômeno se repete como na degeneração regular e rápida dos dignitários burgueses quando são transplantados para um solo social estrangeiro, em um contexto colonial ultramarino. Com a remoção das barreiras convencionais e apoios à moralidade e à lei, a própria sociedade burguesa se torna vítima de uma degeneração direta e ilimitada [Verlumpung], pois sua lei mais profunda de vida é a imoralidade mais profunda, ou seja, a exploração do homem pelo homem. A revolução proletária terá que lutar contra esse inimigo e instrumento de contrarrevolução por todos os lados. 

E, ainda assim, neste contexto, o terror é ineficaz, na verdade, uma espada de dois gumes. As medidas mais severas de lei marcial são impotentes contra surtos da doença lumpemproletária. Na verdade, qualquer regime persistente de lei marcial leva inevitavelmente à arbitrariedade, e toda forma de arbitrariedade tende a corromper a sociedade. A esse respeito também, os únicos meios eficazes nas mãos da revolução proletária são: medidas radicais de caráter político e social, a transformação mais rápida possível das garantias sociais da vida das massas – o despertar do idealismo revolucionário, que pode ser mantido por qualquer período de tempo apenas através da vida intensivamente ativa das massas sob condições de liberdade política ilimitada. 

Assim como a ação livre dos raios solares é o remédio purificador e curativo mais eficaz contra infecções e germes de doenças, a única cura e purificação é a própria revolução e seu princípio renovador, a vida espiritual, a atividade e a iniciativa das massas que ela chama à existência e que toma a forma da mais ampla liberdade política.[15] 



CAPÍTULO 8

DEMOCRACIA E DITADURA  

O erro básico da teoria de Lenin-Trotsky é que eles também, assim como Kautsky, opõem ditadura à democracia. "Ditadura ou democracia" é a forma como a questão é colocada pelos bolcheviques e por Kautsky da mesma maneira. Este último, naturalmente, decide a favor da "democracia", ou seja, da democracia burguesa, precisamente porque a opõe à alternativa da revolução socialista. Lenin e Trotsky, por outro lado, decidem a favor da ditadura em contraste com a democracia, e assim, a favor da ditadura de um punhado de pessoas, ou seja, a favor da ditadura no modelo burguês. Eles são dois polos opostos, ambos distantes de uma política socialista genuína. O proletariado, quando toma o poder, nunca pode seguir o bom conselho de Kautsky, dado sob o pretexto da "imaturidade do país", o conselho de renunciar à revolução socialista e se dedicar à democracia. Ele não pode seguir esse conselho sem trair a si mesmo, a Internacional e a revolução. O proletariado deve e deve imediatamente adotar medidas socialistas da forma mais enérgica, inflexível e sem hesitação, em outras palavras, exercer uma ditadura, mas uma ditadura da classe, não de um partido ou de uma clique – ditadura da classe, ou seja, da forma mais ampla possível, com base na mais ativa e ilimitada participação das massas, da democracia ilimitada. 

"Como marxistas", escreve Trotsky, "nunca fomos adoradores da democracia formal." Certamente, nunca fomos adoradores do socialismo ou do marxismo também. Isso implica que podemos jogar o socialismo no lixo, à la Cunow, Lensch e Parvus [ou seja, mover-se para a direita], se ele se tornar desconfortável para nós? Trotsky e Lenin são a refutação viva dessa resposta. 

"Nunca fomos adoradores da democracia formal." Tudo o que isso realmente significa é: Sempre distinguimos o núcleo social da forma política da democracia burguesa; sempre revelamos o núcleo duro da desigualdade social e da falta de liberdade escondido sob a doce casca da igualdade e liberdade formais – não para rejeitar estas, mas para incitar a classe trabalhadora a não se contentar com a casca, mas, conquistando o poder político, criar uma democracia socialista para substituir a democracia burguesa – não para eliminar a democracia completamente. 

Mas a democracia socialista não é algo que começa apenas na terra prometida, depois que as bases da economia socialista são criadas; ela não chega como algum tipo de presente de Natal para as pessoas dignas que, no intervalo, apoiaram lealmente um punhado de ditadores socialistas. A democracia socialista começa simultaneamente com o início da destruição do domínio de classe e da construção do socialismo. Começa no momento exato da tomada do poder pelo partido socialista. É a mesma coisa que a ditadura do proletariado. 

Sim, ditadura! Mas essa ditadura consiste na forma de aplicar a democracia, não em sua eliminação, mas em ataques enérgicos e resolutos aos direitos bem estabelecidos e às relações econômicas da sociedade burguesa, sem os quais uma transformação socialista não pode ser realizada. Mas essa ditadura deve ser obra da classe e não de uma pequena minoria dirigente em nome da classe – ou seja, deve proceder passo a passo da participação ativa das massas; deve estar sob sua influência direta, submetida ao controle da atividade pública completa; deve surgir do crescente treinamento político da massa do povo. 

Sem dúvida, os bolcheviques teriam procedido exatamente dessa forma se não tivessem sofrido sob a terrível compulsão da guerra mundial, a ocupação alemã e todas as dificuldades anormais relacionadas a isso, coisas que inevitavelmente distorceriam qualquer política socialista, por mais imbuída que fosse das melhores intenções e dos mais finos princípios. 

Uma prova crua disso é fornecida pelo uso do terror em tão grande escala pelo governo soviético, especialmente no período mais recente, pouco antes do colapso do imperialismo alemão e logo após a tentativa contra a vida do embaixador alemão. A banalidade de que revoluções não são chá das cinco é em si mesma bastante inadequada. 

Tudo o que acontece na Rússia é compreensível e representa uma cadeia inevitável de causas e efeitos, cujo ponto de partida e termo final são: o fracasso do proletariado alemão e a ocupação da Rússia pelo imperialismo alemão. Seria exigir algo sobre-humano de Lenin e seus camaradas se esperássemos que sob tais circunstâncias eles convocassem a melhor democracia, a mais exemplar ditadura do proletariado e uma economia socialista florescente. 

Pelo seu posicionamento revolucionário determinado, pela sua força exemplar em ação e pela sua lealdade inquebrantável ao socialismo internacional, eles contribuíram com tudo o que poderia ser contribuído sob tais condições terrivelmente difíceis. O perigo começa somente quando fazem uma virtude da necessidade e querem congelar em um sistema teórico completo todas as táticas forçadas sobre eles por essas circunstâncias fatais, e querem recomendá-las ao proletariado internacional como um modelo de táticas socialistas. Quando eles se iluminam dessa maneira e escondem seu genuíno e inquestionável serviço histórico sob o cesto dos passos falsos forçados pela necessidade, prestam um mau serviço ao socialismo internacional pelo qual lutaram e sofreram; pois querem colocar em seu armazém como novas descobertas todas as distorções prescritas na Rússia pela necessidade e compulsão – em última análise, apenas produtos da falência do socialismo internacional na guerra mundial presente. 

Deixe que os socialistas do governo alemão gritem que o domínio dos bolcheviques na Rússia é uma expressão distorcida da ditadura do proletariado. Se foi ou é assim, isso é apenas porque é um produto do comportamento do proletariado alemão, em si uma expressão distorcida da luta de classes socialista. Todos nós estamos sujeitos às leis da história, e é somente internacionalmente que a ordem socialista da sociedade pode ser realizada. Os bolcheviques mostraram que são capazes de tudo o que um partido revolucionário genuíno pode contribuir dentro dos limites das possibilidades históricas. Não se espera que realizem milagres. Para uma revolução proletária modelo e impecável em uma terra isolada, exaurida pela guerra mundial, estrangulada pelo imperialismo, traída pelo proletariado internacional, seria um milagre. 

O que se pede é distinguir o essencial do não essencial, o núcleo das excrescências acidentais na política dos bolcheviques. No período atual, quando enfrentamos lutas finais decisivas em todo o mundo, o problema mais importante do socialismo foi e é a questão candente do nosso tempo. Não se trata de uma ou outra questão secundária de táticas, mas da capacidade de ação do proletariado, da força para agir, da vontade de poder do socialismo como tal. Nisso, Lenin e Trotsky e seus amigos foram os primeiros, aqueles que avançaram como exemplo para o proletariado do mundo; eles ainda são os únicos até agora que podem clamar com Hutten: "Eu ouso!" 

Isso é o essencial e duradouro na política bolchevique. Nesse sentido, o serviço histórico imortal deles foi ter marchado à frente do proletariado internacional com a conquista do poder político e a colocação prática do problema da realização do socialismo, e de ter avançado poderosamente na resolução da conta entre capital e trabalho em todo o mundo. Na Rússia, o problema só pôde ser colocado. Não pôde ser resolvido na Rússia. E nesse sentido, o futuro pertence em todo lugar ao "bolchevismo".



Notas

[1] Durante a guerra, a Social-Democracia alemã dividiu-se em três facções: a liderança majoritária, que abertamente apoiou e integrou o governo imperial; a seção liderada por Kautsky, que recusou a responsabilidade pela condução da guerra, mas forneceu muitos dos argumentos teóricos para aqueles que aceitaram tal responsabilidade; e a seção liderada por Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, que se opôs abertamente à guerra, contrapondo-lhe a solidariedade internacional e a revolução proletária.

[2] Aqui, como em vários pontos do manuscrito, o trecho está ainda em forma de anotações preliminares que Rosa Luxemburgo pretendia completar posteriormente. Seu assassinato por agentes militares do governo de coalizão social-democrata impediu-a de concluir e revisar o trabalho. A expressão "a Internacional como instrumento de paz" refere-se às justificativas apresentadas por Kautsky para seu fracasso durante a guerra ("um instrumento de paz não é adequado em tempos de guerra"). Provavelmente, também se refere à teoria de que a Internacional, sendo pacífica, não é um instrumento para a luta revolucionária. Kautsky substituiu o discurso utópico de desarmamento (sem a remoção das causas e raízes da guerra!) por uma luta revolucionária contra a guerra. Ele apresentou apologias à Liga das Nações, que supostamente teria banido a guerra do mundo, e justificou socialistas que abandonaram o internacionalismo, apoiaram seus próprios governos e classes dominantes, tornando-se, na teoria e na prática, nacionalistas em vez de internacionalistas. Quando a luta pelo socialismo começou de fato, os Scheidemanns defenderam o capitalismo contra o socialismo na prática, enquanto Kautsky o fazia na teoria, explicando que a “democracia” capitalista era democracia em abstrato e que estavam defendendo a “democracia”. Assim, o terceiro ponto significa: a defesa da democracia em oposição ao socialismo. O trecho, em uma forma ligeiramente expandida, poderia ser lido como segue: (1) a Internacional como instrumento apenas para tempos de paz e para a manutenção da paz; (2) a defesa das doutrinas de desarmamento, apologias à Liga das Nações e ao nacionalismo contra o internacionalismo; (3) e a defesa da "democracia" em oposição ao socialismo.

[3] Um termo usado pela primeira vez por Marx para descrever os parlamentares que acreditam que toda a história é decidida por moções, votos e debates parlamentares.

[4] Os Niveladores (em inglês, Levellers) foram um partido político inglês que surgiu durante a Guerra Civil (1642–1651) e a Comunidade (1649–1660).

[5] Aqui, como em vários outros lugares, o manuscrito consiste apenas de notas esboçadas que Rosa Luxemburg pretendia expandir mais tarde. Como o significado dessas passagens é, em geral, claro, preferi traduzi-las literalmente, assim como a autora as deixou.

[6] Luxemburgo se refere aos governos de Miliukov e Kerensky, dois regimes que precederam o dos bolcheviques nos primeiros meses de 1917, após a queda do czar. Ambos os governos tentaram continuar a guerra pelos objetivos imperialistas do antigo Império Russo e negaram o direito das minorias nacionais de se separarem da Rússia. 

[7] O manuscrito fala de Karbowentzen, que tomo como uma germanização da palavra russa para “rublo de prata”, provavelmente referindo-se a uma moeda especial ucraniana, e dos “Universais”, o nome dado a certos manifestos ou declarações da Rada ucraniana (assembleia nacional).

[8] Uma região na Alemanha onde o dialeto alemão conhecido como Plattdeutsch é falado.

[9] Seis semanas após a assinatura do tratado de Brest-Litovsk, foi assinado um codicilo ou suplemento. Os “duzentos sacrifícios expiatórios” podem se referir à execução de pessoas acusadas de cumplicidade no assassinato do embaixador alemão na Rússia, o conde von Mirbach. Ele foi baleado por membros do Partido Socialista Revolucionário Russo, que haviam cooperado com os bolcheviques até a assinatura do tratado de Brest e, em seguida, entraram em oposição, tentando por vários meios impedir a assinatura do tratado. A partir desse momento, o governo russo se tornou um governo de partido único.

[10] Luxemburgo não está totalmente correta. As eleições para a Assembleia Constituinte foram em grande parte organizadas antes da Revolução de Outubro, mas as eleições ocorreram após Outubro. 

[11] “Pequenos Scheidemann”, um trocadilho com o nome do social-democrata pró-guerra do governo, Phillip Scheidemann. 

[12] Foi esta Quarta Duma que, após as manifestações populares de fevereiro de 1917, enviou dois emissários ao czar para pedir sua abdicação.

[13] O seguinte trecho foi encontrado riscado em uma folha solta e não numerada no manuscrito:

Os bolcheviques designaram os sovietes como reacionários porque sua maioria consistia em camponeses (delegados camponeses e soldados). Depois que os sovietes passaram para eles, tornaram-se representantes corretos da opinião pública. Mas essa mudança repentina esteve conectada apenas às questões de paz e terra.

[14] Rosa Luxemburgo utilizava o termo lumpenproletariado para se referir a um segmento da sociedade que se situava fora da classe trabalhadora organizada e da luta de classes no sentido marxista. O termo deriva de Karl Marx e Friedrich Engels, que o introduziram no Manifesto Comunista e em outros textos para descrever uma camada social marginalizada, composta por desempregados crônicos, criminosos, mendigos e outras pessoas vivendo à margem da sociedade.

[15] A seção seguinte, encontrada no manuscrito original em uma folha separada, repete substancialmente as mesmas ideias deste capítulo, mas de forma esquemática, aparentemente o esboço preliminar para este capítulo: No nosso caso, como em qualquer outro lugar, a anarquia será inevitável. O elemento lumpemproletário está profundamente embutido na sociedade burguesa e é inseparável dela. Provas:  Prússia Oriental, os “assaltos cosacos”.  O surto geral de roubos e furtos na Alemanha. (Especulação, pessoal dos correios e ferrovias, polícia, dissolução total das fronteiras entre a sociedade bem ordenada e o presídio.)  A rápida degeneração (Verlumpung) dos líderes sindicais. Contra isso, as medidas draconianas de terror são impotentes. Pelo contrário, elas causam ainda mais corrupção. O único antídoto: o idealismo e a atividade social das massas, liberdade ilimitada para a polícia.  Essa é uma lei objetiva esmagadora da qual nenhum partido pode ser isento.

LEIA ON-LINE GRATUITAMENTE OU ADQUIRA UMA DAS VERSÕES DA EDITORA CLANDESTINO.

Todos os arquivos estão disponíveis gratuitamente, porém, ao adquirir um de nossos arquivos, você contribui para a expansão de nosso trabalho clandestino.

ÚLTIMAS POSTAGENS

bottom of page