A arte de expressar a dor e a força das mães fedayins palestinas
- Siqka
- 2 de fev. de 2023
- 5 min de leitura
Cheguei na Palestina com uma imensa vontade de pintar, queria muito expressar tudo que estava sentindo. Pintar é a maneira que tenho para colocar todo sentimento para fora, mesmo os desenhos que fiz pelo caminho, não foram suficientes para suprir essa necessidade. Minha vontade era deixar aqui um pouco da minha arte, para mostrar como me importo com o que estava acontecendo. Mas, como nada é por acaso e um artista não escolhe o que sente ou quando sente, minhas ideias e meus sentimentos acabaram se transformando, tão rápido como mudam as dunas no deserto.
Parte das mudanças aconteceram por conta da alteração em nosso roteiro, já outra parte por conta do que vivemos nos últimos dias. Para começar, ficaríamos na casa do Jehad, além dele não poder vir, sua família ainda teve alguns problemas pessoais enquanto estávamos na Turquia. Acontece que a hospedagem em Israel é muito cara, a mais cara que já pagamos na vida, sem contar que ficamos em um hotel racista, qual o dono tinha até uma bandeira do batalhão Azov[1]. Na Palestina o hotel é um pouco mais barato, mesmo assim você precisa estar atento aos acontecimentos e onde as IOF estão atacando. No fundo, eu sabia que os planos para a segunda parte da viagem daria tudo errado. Já tinha até desistido de pintar e resolvi vestir o manto do “seja o que Deus quiser”. Acabamos sendo acolhidos pela Ruayda, Mohammad e Ayman, o “errado” não poderia ter dado mais certo, o que ascendeu novamente minha vontade de pintar, porém, eu ainda tinha outro problema para resolver, meu emocional.
Geralmente, gosto de pintar coisas bonitas que transmitam a felicidade ou “a cor da minha vida” como o Lucas costuma dizer, era isso que eu queria fazer na Palestina. Pintar essas mulheres lindas com seus hijabs, lenços e vestidos bordados, tão lindas quanto elas merecem. Quando vimos pela Al-Jazeera, a felicidade das mulheres – mãe, irmãs, sobrinhas, filha e avó – abraçando e recebendo calorosamente seu filho que voltava para casa depois de 15 anos de cativeiro sionista, pensei ser aquela felicidade que queria passar para tela. Aquele sentimento de “a dor foi superada”, não esquecida, mais superada. Eu não sabia, mas o sentimento que assistimos no jornal, na noite seguinte se transformou em outro completamente diferente. A alegria foi tomada pela tristeza e a dor das mães de Jenin que perderam seus filhos em mais um ataque israelense. Eu vi as cenas de mães em completo desespero velando seus filhos. Eu sou mãe, não consigo imaginar uma dor maior que carregar o caixão de um filho; geralmente são os filhos que carregam os caixões de suas mães, não o contrário, mas a ocupação consegue inverter até mesmo a ordem natural da vida; e só aqui essa desumanidade acontece com tanta frequência. Não há a menor possibilidade de qualquer mãe assistir à perda de outra sem se deixar abalar. Desde que chegamos aqui, eu tenho acompanhado e sentido o sofrimento dessas mães, esposas e filhas. Mulheres que lutam diariamente contra a ocupação com qualquer outro fedayin, e ainda por cima carregam o peso dos caixões dos próprios filhos.
Quando estivemos em Hebron, conversei com a mãe do W., enquanto falávamos pelo tradutor, fiquei pensando no sofrimento que aquela mulher sentiu ao ver o filho ser espancado pelo exército colonizador. Eu tenho um filho da mesma idade que o W. Como mãe, me coloquei no lugar daquela mulher diante de mim, fiquei pensando em quantas orações aquela mulher já pediu para que Allah protegesse seu filho para não ser preso ou assassinado; ou mesmo quantas vezes agradeceu a Deus por trazer seu filho vivo para casa. Benção que as mães de Jenin não tiveram; benção que a mãe de Jerusalém que teve o filho queimado vivo não teve; benção que, outras incontáveis mães palestinas não tiveram.
No tempo que estamos na aqui, pude assistir um pouco do sofrimento daquelas mulheres. Fiquei com a imagem de cada um de seus rostos em minha cabeça. Ainda pior era sentir a dor de cada uma delas, uma dor que só cresce em terras palestinas.
A raiva de saber que o mundo se cala perante a dor dessas mães, me fez repensar, eu não me permitiria ficar só como telespectadora como o resto da comunidade internacional que vem aqui, tiram suas fotos e vão embora. Eu gritaria junto com as mães palestinas e colocaria através do que faço de melhor toda minha solidariedade, mesmo que isso custasse minha própria sanidade. A ideia de pintar lindas palestinas ainda existe, mas saber que tantas mães, irmãs, tias e avós sofrem diariamente com a ocupação da Palestina, não pode nem deve esperar, eu não esperaria mais. Essas mulheres precisam saber que não estão sozinhas, precisam saber que nos importamos e dividimos a sua dor!
Quando disse que tudo de “errado” acabou dando certo, me referia a família que nos acolheu de última hora e sem nenhum plano específico. Com a Ruayda, vi que a mulher palestina é forjada em sofrimento, mas permanece de pé, não por conta desse sofrimento, mas apesar dele; assim como por conta do amor; seu amor pela vida, pela família, pela terra, e pela Palestina.
Entendo que as mulheres são os pilares de qualquer sociedade, mas, na Palestina seu papel é de protagonista. Essas mulheres não se curvam a submissão, seja a imposta pela força de ocupação ou mesmo por sua própria sociedade. É certo que ainda existem muitos costumes patriarcais e outros que devem ser tratados na Palestina – como em todas as outras sociedades –, no entanto a emancipação com maior urgência aqui é, obviamente, a luta contra a ocupação israelense, é essa que prende, tortura e mata os filhos e filhas dessa terra.
Como mulheres, enquanto suportamos ou mesmo superamos caladas as desigualdades que nos são impostas, sofreremos. Enquanto nos calarmos por tantas outras que sofrem os horrores mais inimagináveis, seremos coniventes. Eu sei que se um dia nos unirmos e lutarmos contra todas as injustiças cometidas contra outras mulheres, sem distinção de cor, nacionalidade ou religião, o mundo vai poder evoluir de verdade.
Com ajuda de Mohammad e Ayman, consegui comprar um pouco de material de pintura e hoje estou aqui, com uma tela em branco e uma ideia: retratar as mães fedayins. Tentar mostrar através da arte que faço, um pouco da força daquelas que compõem metade das linhas de resistência, e que ao mesmo tempo, deram a vida a outra metade!
[1] Os ucranianos passaram a considerar o batalhão Azov como heróis na guerra contra a Rússia. Fundado por Andriy Biletsky e outros paramilitares voluntários neonazistas. Em novembro de 2014, o Batalhão de Azov foi integrado como parte formal da Guarda Nacional da Ucrânia. Além da adoção de símbolos nazistas em bandeiras e uniformes oficiais do batalhão, após o cerco da Mariupol (2022) e a rendição das forças ucranianas, os soldados do batalhão foram filmados sem camisa para exposição das tatuagens em homenagem a Adolf Hitler, Mussolini e outros líderes nazifascistas.