Observando a realidade da ocupação e a resistência palestina em Nablus
Pegamos uma van para Nablus. Durante o caminho, a Ruayda nos mostrou os mais variados estágios de construção de assentamentos ilegais na Cisjordânia[1]. Os israelenses começam a construção pelo topo das colinas onde colocam pilhas de contêineres para dar início à ocupação. Geralmente, muros de contenção são construídos para dar “segurança” aos invasores. Seguindo o processo, casas são levantadas para dar lugar aos colonos. Conforme a ocupação avança, as construções descem as colinas para ocupar cada vez mais as terras palestinas. Pela janela da van, acompanhamos todos os processos da ocupação.
O caminho até Nablus levaria pouco mais de uma hora, mas, se locomover pela Palestina é uma missão que demanda paciência. Já estávamos há trinta minutos presos em um engarrafamento. Quando isso acontece, provavelmente é porque os soldados israelenses fecharam alguma rota. A todo momento os motoristas se comunicam entre si pelo celular, antes e durante cada viagem, se orientando para saber qual rota está liberada. Cansado de esperar e após ouvir uma bronca da Ruayda, o motorista resolveu voltar e seguir por outra estrada.
Após duas horas chegamos a Nablus, cidade localizada entre o Monte Ebal e o Monte Gerizim; é possível que você a conheça pelo nome bíblico de Siquem.
Veio uma mulher de Samaria tirar água. Disse–lhe Jesus: Dá–me de beber. Porque os seus discípulos tinham ido à cidade comprar comida. Disse–lhe, pois, a mulher samaritana: Como, sendo tu judeu, me pedes de beber a mim, que sou mulher samaritana? (porque os judeus não se comunicam com os samaritanos). Jesus respondeu, e disse–lhe: Se tu conheceras o dom de Deus, e quem é o que te diz: Dá–me de beber, tu lhe pedirias, e ele te daria água viva. Disse–lhe a mulher: Senhor, tu não tens com que a tirar, e o poço é fundo; onde, pois, tens a água viva? És tu maior do que o nosso pai Jacó, que nos deu o poço, bebendo ele próprio dele, e os seus filhos, e o seu gado? Jesus respondeu, e disse–lhe: Qualquer que beber desta água tornará a ter sede;Mas aquele que beber da água que eu lhe der nunca terá sede, porque a água que eu lhe der se fará nele uma fonte de água que salte para a vida eterna. João 4:7–14
As citações bíblicas referentes a esta cidade, como todas as outras, servem como justificativa, ou melhor, “desculpa” para a ocupação israelense. Diariamente canais como o RamallahMix e o Eye.on.Palestine divulgam a violência dos soldados contra os moradores palestinos. Nablus é uma das cidades mais agredidas pela ocupação. Com toda a ocupação servindo como combustível, cresce no seio dessa comunidade também o apoio incondicional à resistência.
A “justificativa” para a invasão se faz, principalmente, apoiada na reivindicação pela Tumba de José[2]. Santuário de importância para o monoteísmo, próximo ao Poço de Jacó. Por se tratar de um patriarca a tumba foi ao longo dos anos local de veneração dos judeus, cristãos e muçulmanos.
Não há nenhuma evidência arqueológica que estabeleça a tumba como legítima, até mesmo Rabin quando Primeiro-ministro israelense afirmou isso. Os estudiosos modernos afirmam que não existem fontes (judaicas ou cristãs) anteriores ao século V que determinam a veracidade da tumba.
Depois que Israel capturou a Cisjordânia em 1967, os muçulmanos foram proibidos de adorar no santuário e ele foi gradualmente transformado em uma sala de oração judaica. A ocupação trouxe muitos assentamentos israelenses para a cidade, estes que já mencionamos são vistos como ilegais pela ONU e a maioria da comunidade internacional, com ressalva, claro, dos Estados Unidos da América.
As reivindicações concorrentes de judeus e muçulmanos sobre a tumba tornaram-se frequentes. Embora tenha caído sob a jurisdição da Autoridade Nacional Palestina (ANP) após a assinatura dos Acordos de Oslo, permaneceu sob guarda das IOF. Na década de 1980 os israelenses edificaram um posto militar avançado – semelhante ao que existe em Hebron. Em 1997, os rolos da Torá foram trazidos, o nicho de oração voltado para Meca foi coberto e o local foi declarado uma sinagoga.
Nos últimos 20 anos, a Tumba de José serviu como palanque para reivindicação sionista. Atualmente, a cidade está sob jurisdição da Autoridade Palestina, mas a Tumba de José permanece sob controle das IOF, servindo como posto avançado para soldados e colonos lançarem suas incursões contra a cidade e os moradores de Nablus.
Andando pelas ruas do mercado da Cidade Velha, também marcado como um dos mais antigos do mundo, pudemos ver que o símbolo de resistência palestina permanece ativo entre os moradores que exibem faixas e homenagens aos mártires palestinos de várias épocas, incluindo os atuais como Ibrahim al-Nablusi; um combatente da resistência martirizado pelo exército aos 18 anos, tornando-se símbolo para a nova geração.
No ano passado, seu enterro foi acompanhado por milhares de pessoas. Na semana da morte de Nablusi, milhares de contas em redes sociais de jornalistas palestinos e ativistas internacionais foram bloqueadas por noticiar sobre o assassinado ou prestar homenagens ao mártir.
“Eu nem quero dar a eles minhas lágrimas. Ibrahim é um mártir, al-hamdulilah.” Mãe de Ibrahim.
Ibrahim Nablusi se tornou combatente da resistência tão cedo quanto sua própria morte. Seu assassinato foi divulgado como uma vitória para Israel contra o terrorismo. Te faço a pergunta: – Se Nablusi que lutava armado contra os soldados de uma ocupação colonial é considerado “terrorista”, por que os jovens que lutam contra os soldados na ocupação da Ucrânia são considerados heróis? Remontando ao passado, George Washington, Dom Pedro I, também lutaram por independência e nunca foram chamados de terroristas, mas sim de patriotas. O mesmo com Mahatma Gandhi e Nelson Mandela. Ah, quase me esqueci, como não eram brancos, eles também foram chamados de “terroristas”; assim como Nablusi.
Nablusi significa “da cidade ‘de Nablus’”. Ibrahim Nablusi nasceu em Nablus durante a Segunda Intifada, um dos períodos mais sangrentos na história palestina. Nablusi tinha o mesmo direito de se defender de qualquer um que lute contra uma ocupação estrangeira. Segundo Jhon Locke:
“À doutrina da legitimidade de resistência ao exercício ilegal do poder reconhece ao povo, quando este não tem outro recurso ou a quem apelar para sua proteção, o direito de recorrer à força para a deposição do governo rebelde aos interesses que lhe deram origem. O direito do povo à resistência é legitimo tanto para defender-se da opressão de um governo tirânico como para libertar-se de domínio de uma nação estrangeira.” Jhon Locke
Mas não nos baseamos apenas em um dos maiores filósofos da humanidade. O direito internacional reconhece o direito à autodefesa de uma nação contra uma ocupação estrangeira como parte do direito à legítima defesa. Este princípio está consagrado na Carta das Nações Unidas, que afirma o direito inerente de todos os Estados à autodefesa individual ou coletiva contra um ataque armado. Segundo o Artigo 51 da Carta das Nações Unidas estabelece o direito à legítima defesa está sujeito a certas limitações e requisitos, como a necessidade de que a resposta seja proporcional ao ataque inicial e que seja notificado imediatamente ao Conselho de Segurança da ONU. Além disso, o direito internacional reconhece o direito dos povos à autodeterminação, que inclui o direito à resistência contra ocupações estrangeiras.
Amparado pelo direito internacional de autodefesa, Nablus exporta heróis e uma rica cultura de grande importância para a cultura árabe. Todas suas contribuições podem ser encontradas no mercado da Cidade Velha, como a culinária, o vestuário típico, o artesanato e o famoso sabão “Nablusi”, feito com azeite de oliva virgem, exportado para o mundo todo como artigo de luxo.
Fomos até o hipódromo enquanto Ruayda fazia a aula do seu curso de doces. Sentamo-nos um pouco no parque próximo ao centro fervoroso da cidade. Assistindo as famílias passeando, crianças brincando em meio aos vendedores de milho e pipocas; a vida quase parece não ser afetada pela ocupação! De certa forma viver o mais normal possível é bem uma maneira de resistir à ocupação. É incrível que em Israel nos sentimos em um clima de tensão o tempo todo. A impressão é que as pessoas estão o tempo inteiro se preparando para “ataques terroristas”, parece que os israelenses não descansam nunca. Já para os palestinos vandalizados diariamente o clima é exatamente outro. Aqui as pessoas sorriem sem se importar com as dificuldades da vida, como se não tivessem medo da incursão que o exército israelense com certeza fará essa noite. Sorrir é resistir!
Ficamos pouco no parque, logo a Ruayda nos ligou para retornar e conhecer o chefe de cozinha especialista em doces palestinos. Ela disse que o chefe convidou suas alunas para um almoço e estendeu o convite para nós também. Levantamos e “picamos a mula” sem pensar, nem nos importamos de já ter comido nas barracas do mercado. Quando chegamos o chefe preparou um café “nablusi” e nos mostrou um pouco das massas finas que estava preparando para os doces. O café estava ótimo, mas e o “rango?” Perguntei para Ruayda. Como as mulheres que fazem o curso moram longe e todas precisam pegar a estrada para ir embora “elas cancelaram o almoço”, disse ela.
Saímos de Nablus com água na boca, principalmente porque esperávamos uns docinhos feitos pelo chefe. Por sorte, a Ruayda levou a massa para casa e preparou alguns para nós. Já poderíamos ir dormir dizendo que o dia hoje foi completo.
Para encerrar o dia em grande estilo, antes de dormir presenciamos a festa da libertação de um prisioneiro palestino de Kobar. Carros escoltaram o ex-prisioneiro, finalmente em liberdade após 15 anos de cárcere. A questão é que os prisioneiros palestinos não são prisioneiros comuns, a grande maioria é encarcerada por resistir contra a ocupação; e quando digo resistir, não estou me referindo a fuzil e luta armada, esses, como Nablusi são mortos à tiros e geralmente seus corpos são retidos pelos israelenses e a casa de seus pais é demolida. Me refiro a participar de alguma organização de defesa dos direitos humanos, ser jornalista, ou mesmo uma criança que atira pedras[3].
Todo palestino detido por Israel é julgado por um tribunal militar, o que deveria ser feito somente em casos excepcionais, mas é o protocolo de segurança desde à ocupação da Cisjordânia em 1967. Na qual ficou estabelecido a Proclamação Militar nº 2, concedendo ao comandante militar da área plenos poderes legislativos, executivos e judiciais sobre os prisioneiros.
Existe a chamada “Detenção Administrativa”, na qual, qualquer “suspeito” pode ser colocado em prisão por tempo indeterminado, mesmo sem ter passado pelo devido processo legal. O Estado de Israel alega que as detenções administrativas são estipuladas com base em “provas secretas” que garantem a “segurança nacional”.
O sistema de “justiça” de Israel, por si só, viola várias leis internacionais. Seria uma piada se não roubasse longos anos de palestinos que passam vidas inteiras atrás das grades da ocupação. Por isso toda vez que um prisioneiro é solto, a alegria toma conta das ruas. Em Kobar a recepção foi comovente, embora tivéssemos passado um dia calmo e tranquilo em Nablus, fomos dormir com a sensação de que o Estado de Israel não permitiria aquela festa a troco de nada, sabíamos que algo de ruim estava para acontecer.
[1] Na guerra de 1967, Israel tomou e ocupou territórios na Palestina, no Egito, no Líbano e na Síria, desde então, promoveu a colonização da área com colônias judaicas; consideradas ilegais por organizações internacionais e pela ONU sob o direito internacional.
[2] A Tumba refere-se José filho de Jacó. Não é sobre o pai de Jesus.
[3] Atirar pedras é um crime específico da Ordem Militar 1651 na Lei da Juventude (Cuidados e Supervisão), em que impõem, detenção e multa aos pais do menor.