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Fedai Aydin, o Flautista de Sivas

Há uma antiga lenda turca que diz que, ao viajar de trem, você deve provar um pouco da comida de todos os outros passageiros. Na prática, isso parece mais uma regra do que uma simples lenda. Poucas horas após o início de nossa longa jornada de 27 horas cruzando o país, um senhor sentado ao nosso lado nos ofereceu um kebab. Recusamos educadamente, mas com aquela expressão que claramente dizia: “Isso deve estar delicioso”. E estava. Foi assim que começou uma conversa que atravessou a madrugada no vagão.


Fedai Aydin, um músico de 65 anos com mais de quatro décadas de experiência e 30 anos dedicados ao ensino musical, estava ao nosso lado. Conversávamos com a ajuda de um tradutor de celular, mas muitas coisas eram ditas sem palavras. Gestos, sorrisos e olhares preenchiam as lacunas da linguagem.


Durante o papo, fui buscar chá no vagão restaurante, um tanto desajeitado no caminho de volta — metade do líquido escapou entre os balanços do trem. Quando cheguei, Aydin e minha companheira, Di, estavam desfrutando de uma generosa salada de frutas, compartilhando risadas que dispensavam tradução.


Aydin nos explicou que a música não é uma máquina nem apenas matemática; ela é uma linguagem. Para ele, ensinar música significa ensinar uma linguagem universal. Essa perspectiva me marcou profundamente. Desde que começamos a viajar pelo mondo, percebi que, de fato, existem formas de comunicação que transcendem palavras. Não sou linguista como Noam Chomsky, que também defende a ideia de estruturas universais, mas tento compreender isso à minha maneira.


Quando Aydin nos ofereceu o kebab, ele não estava apenas compartilhando um lanche, mas estendendo hospitalidade e curiosidade sobre quem éramos e o que nos levava a uma região pouco explorada da Turquia. O gesto de buscar chá foi meu pequeno retribuir, um símbolo de que também estávamos abertos a conhecer mais sobre ele.


Embora as palavras fossem traduzidas pelo celular, o verdadeiro diálogo acontecia no esforço mútuo de comunicação: apontar objetos, criar mímicas, ensinar e aprender palavras em nossas línguas nativas. Quando Aydin falou sobre a música como uma linguagem, senti que o compreendia plenamente. Não porque sou músico de sua categoria — longe disso —, mas porque, no passado, toquei em algumas bandas. Se tivesse um violão ali, poderíamos nos comunicar ainda mais profundamente por meio de melodias.


A música, como qualquer linguagem, é uma ponte. Em nossos tempos, no entanto, fico preocupado ao ver como tecnologias que deveriam facilitar a comunicação muitas vezes nos deixam cegos, surdos e mudos às conexões mais humanas.


Aydin também me disse que, para aprender música, são necessárias duas coisas: perseverança e curiosidade. Perseverança ele tem de sobra. O flautista de Sivas toca com apenas o braço direito. Ele mesmo fabrica suas flautas e adaptou os instrumentos às suas necessidades. Com orgulho, abriu sua mochila e nos mostrou 32 flautas feitas à mão, todas afinadas perfeitamente com a ajuda de um diapasão curdo. Não sei como perdeu o braço, e não perguntei, mas ficou claro que ele não deixou isso limitar sua jornada musical.


Quanto à curiosidade, acredito que todos que se entregam ao mundo — músicos, viajantes, comunicadores ou artistas — precisam dela. Podemos conhecer todas as notas, viajar o mundo inteiro ou dominar as cores, mas sem curiosidade jamais ouviremos as melodias que o mundo tem a oferecer.


Naquela noite, cruzando a Turquia em um trem, tive a honra de compartilhar uma conversa inesquecível com Fedai Aydin, o flautista de Sivas. Uma prova viva de que as linguagens universais — como a música e a hospitalidade — têm o poder de nos conectar de formas que vão além das palavras.

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