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Foto do escritorSiqka

Vidas palestinas não devem ser contabilizados como número

No Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, em 3 de maio de 2023, o Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, fez um pronunciamento destacando sua preocupação com a situação atual dos profissionais de comunicação em todo o mundo.

 

“Durante três décadas, no Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, a comunidade internacional comemorou o trabalho dos jornalistas e trabalhadores da mídia. Este dia destaca uma verdade universal: a liberdade de todos depende da liberdade de imprensa. A liberdade de imprensa é a base da democracia e da justiça. Graças a ela dispomos de todos os dados que necessitamos para formar uma opinião e interpretar o poder com a verdade. E tal como nos lembra o tema deste ano, a liberdade de imprensa representa a própria essência dos Direitos Humanos. No entanto, em todos os cantos do mundo, a liberdade de imprensa está sob ataque. A verdade é ameaçada pela desinformação e o discurso de ódio, que procuram confundir os limites entre fatos e ficção, entre ciência e conspiração. A crescente concentração da indústria nos meios de comunicação nas mãos de poucos, o colapso financeiro de dezenas de organizações de notícias independentes e um aumento de leis e de regulamentos nacionais que sufocam os jornalistas estão a aumentar ainda mais a censura e a ameaçar a liberdade de expressão. Enquanto isso, jornalistas e trabalhadores dos meios de comunicação são diretamente visados on-line e off-line enquanto realizam seu trabalho fundamental. São frequentemente ameaça­dos, intimidados, detidos e presos. Pelo menos 67 trabalhadores dos meios de comunicação foram assassinados em 2022 – um aumento inconcebível de 50% em relação ao ano anterior. Quase três quartos das mulheres jornalistas sofreram violência on-line, e uma a cada quatro foram ameaçadas fisicamente. Há dez anos, as Nações Unidas estabeleceram um Plano de Ação para Segurança dos Jornalistas, para proteger os trabalhadores dos meios de comuni­cação e acabar com a impunidade por crimes cometidos contra eles. Neste e, em todos os Dias Mundiais da Liberdade de Imprensa, o mundo deve falar a uma só voz: – Acabar com as ameaças e ataques. – Acabar com as detenções de jornalistas por fazerem seu trabalho. – Acabar com as mentiras e desinformação. – Acabar com os ataques contra a verdade e a quem a proclama. Quando os jornalistas defendem a verdade, o mundo está ao seu lado.” António Guterres. [8]

 

O discurso do Secretário Geral da ONU, embora articulado e detalhado, expõe uma triste realidade. Apesar do conhecimento da Organização das Nações Unidas sobre a calamidade enfrentada pelos jornalistas em todo o mundo, especialmente aqueles de origem palestina, destaca também a incapacidade ou a omissão da comunidade internacional de pro­teger os direitos desses profissio­nais. Para pormenorizar essa dinâmica preocupante, apresentarei alguns dados que podem ter passado despercebidos pelos olhos das Nações Unidas e da comunidade internacional.

Os dados compilados e fornecidos pelo Centro Palestino de Direitos Humanos (PCHR) em parceria com o Sindicato de Jornalistas Palestinos (PJS), revelam a gravidade das ameaças que esses profissionais enfrentam em seu trabalho diário. Só no ano de 2020, foram registradas 40 lesões e ferimentos infligidos a jornalistas palestinos. 26 jornalistas foram presos e detidos de forma arbitrária. Dos 40 feridos enquanto exerciam a profissão, 5 foram alvejados com balas reais, 30 por balas de borracha e 5 foram atingidos diretamente com bombas de gás lacri­mogêneo. Treze foram alvejados na cabeça e na parte superior do corpo, enquanto outros 27 foram atingidos nos membros inferiores. Além disso, os jornalistas Muath Amarneh, na Cisjordânia, e Attiya Darwish, na Faixa de Gaza, perderam a visão depois que as IOF abriram fogo diretamente contra eles.

A liberdade de imprensa também foi prejudicada, com 14 casos de impedimentos de cobertura seguidos por agressão física. É especialmente alarmante notar que uma residência de jornalista foi atacada, além de dois escritórios de mídia terem sido bombardea­dos. Esses eventos, afetaram a capacidade da mídia de informar o público sobre outros crimes cometidos em simultâneo, servindo como uma cortina de fumaça para a mídia e a comunidade internacional. O total de 97 violações registradas em 2020 é uma clara indicação do ambiente hostil em que os jornalistas palestinos operam, enfrentando inúmeras ameaças à sua segurança e liberdade de imprensa. [9]

O ano seguinte, 2021, impôs um desafio adicional ao Sindicato e a outras organizações na tarefa de monitorar as violações devido à pandemia do coronavírus. O isolamento social diminuiu a frequência das manifestações populares, resultando na redução de notificações, o que não quer dizer que elas não aconteceram. O fechamento das fronteiras para estrangeiros também tor­naram complicado o monitoramento da situação nos Territórios Palestinos Ocupados por parte das organizações internacionais. As dificulda­des logísti­cas e a limitação de movimentos contribuíram para um cenário desafiador na manutenção do controle e na documentação das violações.

Para agravar ainda os desafios, no mesmo ano, o governo israelense designou pelo menos uma dezena de organizações não governamen­tais de defesa dos direitos humanos, incluindo o PCHR, como grupos terroristas, impactando significa­tivamente o trabalho desta pesquisa, como detalhado no capítulo “Canal”.

No que diz respeito às estatísticas das violações relatadas em 2021, é evidente que, apesar dos desafios enfrentados, a situação permaneceu alarmante. Um aumento no total de 877 violações foi registrado, dentre elas, destacam-se os ataques perpetrados contra escritórios e agências de imprensa ocorridos nos dias 11, 13 e 15 de maio.

Outros números incluem: 56 jornalistas que sofreram ferimen­tos causados por bombas de gás; 40 profissionais da mídia foram presos. A detenção preventiva afetou 222 jornalistas, indicando uma repressão contínua. A inalação de gás impactou 106 jornalis­tas. Houveram 52 casos de transferência para tribunais, evidenciando a judicialização das questões relacionadas à impren­sa. 41 jornalistas foram convocados, enfrentando o peso da intimação. 117 jornalistas foram vítimas de agressão física, sendo que 35 foram especificamente alvos de ataques. Os equipamentos de 62 jornalistas foram destruídos, enquanto outros 27 tiveram materiais e equipamentos confiscados. 81 jornalistas sofreram ferimentos causados por balas de metal, destacando a violência nos confrontos. Dezesseis jornalistas foram alvo de ameaças, e treze jornalistas sofreram ferimentos por estilhaços de mísseis. No caso mais grave, um jornalista foi martirizado em razão de seu trabalho.

O ano de 2022 testemunhou um cenário ainda mais calamito­so, como evidenciado pelos números. Um total de 902 violações foi relatado, destacando a persistente ameaça à integridade e à liberdade da imprensa na região. No contexto judicial, registrou-se a apresentação de 36 casos aos tribunais, a imposição de multas financeiras em um total de 20 ocorrências.

Ataques específicos foram direcionados contra 28 escritórios e residências de jornalistas, com o claro propósito de intimidação.

Outra preocupação grave foi o confisco e dano de equipamen­tos, com 51 registros.

As restrições no direito de ir e vir resultaram em 362 prisões e detenções. Também houve proibição de viagens para fora do terri­tório, afetando 5 profissionais, comprometendo sua capacidade de relatar eventos em âmbito internacional.

Novamente os ataques não se limitaram aos agentes da Forças de Ocupação de Israel, mas também incluíram ataques de colonos, resultando no aumento de 79 casos notificados.

Quanto ao uso de armas e munição letal contra a integridade física dos jornalistas, 117 profissionais foram afetados. No total, foram registrados 76 lesões e ferimentos; desses, 51 sofreram ferimentos causados por munição real, e dois incidentes resultaram em lesões por estilhaços de mísseis.

Esses dados destacam a importância de proteger a integridade e a liberdade dos jornalistas em meio a desafios significativos. Os últimos números e outras informações foram apresentados em uma conferência realizada em 29 de janeiro de 2023, na sede do Crescente Vermelho Palestino, localizada em Ramallah.

Os números apresentados logo no início deste livro revelam que, embora representem uma realidade, podem também ser mani­pulados e distorcidos para atender aos interesses do narrador. Um exemplo esclarecedor disso é fornecido pelo pesquisador Felipe Pena em “A Teoria do Jornalismo no Brasil – após 1950”. Pena cita o historiador Alessandro Portelli, que, por meio de fontes docu­mentais e análise estatística, concluiu que, em média, pessoas escravizadas de um determinado país eram submetidas a 0,7 açoitamentos por ano. Portelli levanta uma pergunta intrigante, “seria possível alguém ser açoitado 0,7 vezes?” [10]. Da mesma forma, ao comparar a situação dos jornalistas palestinos, conforme citado no relatório da Unesco “Tendências Mundiais em Liberdade de Expressão e Desenvolvimento da Comunicação Social, 2021/2022”, notamos que a América Latina e o Caribe testemunha­ram mais da metade dos assassinatos mundiais, totalizando 44 homicídios no último ano.  [11]

A comparação entre um continente inteiro e um território tão pequeno quanto a Palestina é desigual em diversos aspectos. A área territorial da Palestina abrange apenas 6.020 km², o que é quase quatro vezes menor do que o menor estado do Brasil, Sergipe, que possui 21.910 km². No entanto, mesmo essa comparação seria igualmente desleal, já que a Palestina possuí uma média de mais de 5 milhões de habitantes, enquanto Sergipe, referente ao último censo, conta com 2,2 milhões.

Assim, a tentativa de equiparar essas estatísticas pode não apenas distorcer a realidade, mas também minimizar o sofrimento e as consequências reais. Tratar vidas como simples números é uma abordagem desumana, basta perguntar ao escravizado açoitado ou a mãe do jornalista assassinado. Portanto, a pesquisa para este livro concentrou-se mais em abordar as violações ao Artigo.19 de forma mais qualitativa do que quantitativa, em contraste com os métodos adotados pela ONU e Unesco.


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