Atravessando o muro do apartheid israelense para entrar na Palestina
Ir e vir é um direito inerente a todo ser humano, pelo menos é o que diz a Declaração Universal dos Direitos Humanos[1]. Há um ano estávamos em um sebo na cidade de Santos planejando com Jehad a nossa viagem para Palestina. Ontem, quando vimos pela primeira vez o muro do apartheid e cruzamos pelo nosso primeiro checkpoint[2], vimos um pouco do que Jehad enfrentou boa parte de sua vida.
Saindo de Jerusalém subimos em um transporte público em direção à Ramallah. Mesmo se optássemos por um táxi, seria uma dor de cabeça encontrar um que pudesse atravessar o checkpoint. Os motoristas e carros com placas de Israel preferem não circular pela Palestina, mesmo que o único impedimento para isso sejam enormes placas vermelhas indicando (em três idiomas) que os palestinos são uma ameaça às suas vidas; – Nem preciso dizer quem é a real ameaça aqui, né! Já os motoristas e carros com placas palestinas, a maioria, não pode trafegar pelas ruas do estado israelense. Sendo assim o ônibus foi a melhor opção.
Quando chegamos perto do muro vimos que aquela aberração não serve ao propósito de “segurança”, ele serve para oprimir e humilhar o povo palestino. Chegando ao primeiro checkpoint vimos soldados fortemente armados, uns escondidos atrás de barreiras de concreto, outros parando indiscriminadamente os motoristas; fossem homens, mulheres ou idosos. É desesperador ver um jovem soldado humilhando um senhor que bem poderia ser seu avô. É imensurável o número de casos de assassinatos e outras violações cometidas nesses muros e checkpoints. Às vezes os soldados costumam fechar um ou outro, uma forma de punição coletiva[3] que obriga os motoristas a esperarem horas na estrada ou mudar seu caminho para um destino mais longo. Gostaria de filmar e fotografar aquela cena vulgar, mas estávamos em um transporte público e acabei recuando com medo de prejudicar os palestinos que estavam no ônibus.
Foi assistindo aquela depravada composição que aprendemos que o lindo conceito iluminista de liberdade, igualdade e fraternidade só serve aos propósitos do colonizador. Isso serve para assimilar que aqui o direito de ir e vir não se aplicava ao Jehad como se aplica para nós, mesmo sendo ele filho dessa terra e nós, tão estrangeiros quanto aqueles soldados armados.
Este muro expõe de forma nua e crua a face de um regime racista e assassino. Vou tentar explicar sobre a construção deste muro de forma simples.
Imagine que você mora em um bairro muito próximo ao bairro onde moram seus pais, amigos, até mesmo o amor de sua vida. Seu pai possui um lote de terra que usa para plantação próximo à sua casa. Suas verduras ajudam a sustentar sua família. Você trabalha ou estuda bem perto, a 200m da sua casa. Um dia você acordou e encontrou um papel colado no poste, por estar em outro idioma, você não conseguiu ler o que estava escrito e, ainda pior, estava escrito em japonês, com caracteres que você nem conhece. Imagine agora que de uma hora para outra, o prefeito da sua cidade decide classificar o seu bairro como um perigo para o bairro onde mora sua família, seus amigos, e seu amor. No mesmo bairro que você e milhares de outras pessoas estudam ou trabalham. De repente você acorda um dia para trabalhar e encontra em frente à sua casa um muro de concreto com 8 metros de altura separando o seu bairro do restante do mundo. Para ir ao trabalho ou ver as pessoas que ama você precisa ir até uma passagem controlada pela polícia, não obstante, você ainda precisa ter uma autorização prévia emitida pelos militares para poder atravessar. Para agravar a situação, o posto policial mais próximo fica a 20 quilômetros da sua casa. Aqueles 200 metros até o trabalho, que antes você faria a pé, se tornou uma viagem de 40 km para ir e mais 40 km para voltar. Você descobre que aquele papel no poste era um comunicado oficial avisando sobre a construção do muro e dando sete dias para os moradores recorrerem da decisão na justiça. Outro detalhe, seu pai “já senhor”, deveria fazer o trajeto inverso ao seu, e nem poderia ir e vir para sua própria plantação, pois, para os agricultores o portão só é aberto duas vezes por dia, uma vez para entrarem e outra para saírem. Este cenário parece bizarro para você? Foi exatamente o que Israel fez nas aldeias de Chiyah, El-Azariyeh e Ras al-Amud em 2002, e que agora se estende por mais de 700 km por dentro da Palestina.
Em 2001 o Primeiro-ministro Ehud Barak (Partido Trabalhista) apresentou ao Knesset essa proposta de segurança para a população israelense.
Sua ideia consistia em uma barreira entre os territórios palestinos e israelenses, as obras foram iniciadas pelo sucessor Ariel Sharon (Likud). Ao sul do monte das Oliveiras, as vilas de Chiyah, El-Azariyeh e Ras al-Amud, perto de Jerusalém, foram os primeiros a presenciar a construção do que os palestinos batizariam não muito depois de “O Muro do Apartheid”.
– Sabe o que incomoda muito? – Todas às vezes que se fala de muros e violações ao direito de ir e vir, o muro de Berlim é evocado. Vez ou outra alguém diz na televisão que precisamos construir mais pontes e menos muros, e a imagem que aparece é sempre a da queda do muro de Berlim, uma visão quase romântica da tragédia alheia. – Por que nunca vemos falar de opressão usando as imagens de um Muro que está de pé? O muro de Berlim tinha 4,2m de altura e 155km de comprimento; já o muro israelense chega a 9m de altura e sua extensão é quase 7 vezes maior. – Não seria esse um ativismo dissimulado? – Por que não damos nomes as coisas como elas realmente são? Como o mundo comemora a queda do muro de Berlim enquanto permite que Israel continue construindo muros dentro do território palestino? – Por que não usamos o muro que está de pé para ilustrar o que significa a subjugação de um povo pelas mãos de um regime racista e opressor que também continua de pé?
Nosso amigo Jehad é um palestino cujos avós foram expulsos de suas casas durante a Nakba. Há alguns anos ele vive e trabalha no Brasil. Quando estávamos nos organizando a respeito desta viagem percebemos como é obsceno como o Estado de Israel viola o direito de ir e vir dos palestinos diante dos olhos da comunidade internacional, que assiste essas e outras violações de camarote.
“Sabemos muito bem que a nossa liberdade é incompleta sem a liberdade dos palestinos.” Nelson Mandela
Como brasileiros, não havia nada que nos impedisse de comprar um voo direto para Tel Aviv (território que Israel roubou da Palestina logo nos primeiros anos de ocupação sionista), assim o fizemos. Compramos uma passagem de Istambul direto à Tel Aviv. Já para o Jehad, que assim como seus pais e avós, nasceu na Palestina, a viagem não poderia ser feita dessa maneira. Como palestino, ele não tem liberdade para entrar no território que Israel roubou para sua capital, posto isto, seu acesso ao aeroporto Ben-Gurion não existe. Jehad, como todos os outros palestinos do mundo, para entrar em seu próprio país teria que pegar um voo até a Jordânia e de lá atravessar pela fronteira terrestre com a Palestina, que também é controlada pelo exército israelense.
– Por que Jehad não pega um avião direto para Palestina? – Porque o único aeroporto na Palestina, que ficava na Faixa de Gaza, foi bombardeado em 2014; qualquer outro aeroporto que os palestinos construíssem após, também seria bombardeado.
Graças a violação do Direito de ir e vir, não poderíamos entrar todos juntos na Palestina. Nosso amigo, mesmo sendo palestino, não tem autorização para circular nos territórios ocupados por Israel. No fim das contas, acho que pensando em toda a dificuldade e o gasto muito maior para se chegar até a casa de seus pais, ele decidiu ficar no Brasil.
Atualmente Jehad está em processo de conseguir a cidadania brasileira, o que não quer dizer que poderá entrar em Israel, mesmo que pudesse, Jehad é um palestino consciente da ocupação de seu país e jamais aceitaria qualquer favorecimento que indicasse sua aceitação ao Estado de Israel.
“Eu jamais aceitaria qualquer coisa de Israel, porque se eu aceitar, isso quer dizer que aceito a ocupação deles na minha terra, e isso eu me recuso. Mesmo que eu pudesse usar o aeroporto Ben-Gurion, não usaria, isso seria uma traição à memória dos palestinos como meus pais e meus avós.” Jehad Afaghani
Para o amigo Jehad!
[1] Art.13 1. Todo ser humano tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado. 2. Todo ser humano tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio e a esse regressar. (ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948)
[2] Postos de controle israelenses que controlam entradas e saídas de palestinos; são barreira físicas guardadas pelas Forças de Ocupação Israelense (IOF), fazem parte do sistema de bloqueio da Cisjordânia e Faixa de Gaza.
[3] Punição coletiva é a punição aplicada a todo um grupo de pessoas, em razão da conduta de um ou mais indivíduos desse grupo, com base na generalização da culpa (culpa coletiva), ou em razão das ações de um outro grupo, sobre o qual o grupo castigado não tem controle direto. Segundo a Convenção de Genebra (1949), relativa à proteção de civis em tempo de guerra, as punições coletivas são consideradas crimes de guerra; uma vez que não pode haver ‘responsabilidade vicária’, mesmo que por crimes alheios.