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Foto do escritorSiqka

A complexidade da comunicação e os desafios à liberdade de imprensa na Palestina

Todo ser vivo desem­penha o papel de emissor e receptor de mensagens. Todos, sem exceção, precisamos trocar mensagens para sobreviver. As plantas utilizam sinais químicos e físicos para enviar mensagens aos insetos responsáveis por sua polinização. As baleias cachalotes, utilizam uma vocalização conhecida como clique para emitir mensagens que chegam a centenas de quilôme­tros, permitindo a comunicação entre indivíduos separados durante a migração. Por sua vez, os pássaros utilizam o canto para encon­trar parceiros para o aca­sala­mento, avisar outros indivíduos do grupo sobre um determinado perigo ou convocar outros para defender o território. Sem o envio e recepção de mensagem, não há possibilidades para manutenção da vida.

Nós, seres humanos, aperfeiçoamos nossas técni­cas de comunica­ção para além da busca de alimentos ou parceiros sexuais, embora muitos ainda só a utilizem para isso. Evoluímos nossa forma de enviar e receber mensagens, ampliando-as para expressar ideias, opiniões e sentimentos, além de compar­ti­lhar o conheci­mento com outros indivíduos para dis­tân­cias muito superiores aos cliques das cachalotes. Nossa maneira de emitir mensagens se desenvolveram de tal forma que atualmente podemos compreender que cada desenho representa uma letra, que cada letra é necessária para compor uma frase repleta de ideias complexas, e que cada ideia pode ser refutada, afirmada ou aperfeiçoada e novamente emitida, fazendo-as assim, trans­cender o tempo e o espaço. 

A complexidade da comunicação fez com que nós, Homo sapiens, desenvolvêssemos duas maneiras distintas para nos comunicar. Na forma verbal, as mensagens são emitidas por palavras, podendo ser escritas ou faladas. Já na forma não verbal, as mensagens são emitidas através de signos visuais, como fotografias, desenhos e pinturas, além de outras mensagens de difícil compreensão, como “dê a descarga após o uso”.

Seja qual for a maneira escolhida, verbal ou não verbal, não há comunicação se não houver uma mensagem para ser emitida. No jor­nalismo, as men­sagens são emitidas por meio de uma variedade de formatos, abrangendo tanto as formas verbais, como os textos, rádios, podcasts e telejornais, quanto elementos não verbais como fotografias, vídeos, caricaturas e recursos visuais diversos. A combinação dessas técnicas é empregada para potenci­a­lizar o impacto e a compreensão das informa­ções. Essa união de elementos constitui a essência do que chamamos de notícia. Entretanto, para o jornalismo, nem todas as mensagens possuem o que é necessário para se tornar uma notícia.

Há um ditado que diz “quando um cachorro morde uma pessoa, isto não é notícia, mas quando uma pessoa morde um cachorro, isto é notícia.” De acordo com o ditado, para a mensagem se converter em notícia ela deve conter relevância sobre os eventos, pessoas, lugares ou questões que são de interesse público, como por exemplo um processo de genocídio televisionado que o mundo insiste em ignorar. Usando um exemplo prático, os israelenses mordem os palestinos há 76 anos, por isso já não se tornam notícias, agora quando um palestino morde um israelense, a mídia internacional transforma tudo isso em um estardalhaço.

 Como já mencionado, todos os seres vivos desempenham o papel de emissor e receptor de mensagens, no contexto do jorna­lismo, os emissores são definidos pelo Sindicato dos Jornalistas Palestinos (PJS) como “aqueles que têm o jornalismo como profissão principal e fonte principal de renda, e que trabalham em instituições ou departamentos de mídia”. As instituições de mídia abrangem “jornais, revistas, estações de rádio ou televisão, agências de notícias, escritórios de imprensa, empresas de produ­ção de mídia, sites de notícias e departamentos especializados. Essa definição engloba uma variedade de profissi­onais, como editores, repórteres, fotojornalistas, cartunistas, revisores, locutores, apre­sentadores e produtores de diversos programas de televisão e rádio, além de diretores”. [7]

Portanto, a partir deste momento, sempre que mencionar o termo “jornalista” neste livro, me refiro aos pro­fissionais que se enquadram nas especificações definidas pelo PJS.

Aos jornalistas, cabe a responsabilidade de informar, contextu­alizar e fornecer uma visão abrangente sobre assuntos de interesse público, apresentando os fatos de maneira clara e concisa para que os leitores possam se manter informados e formar suas próprias opiniões baseados no conhecimento adquirido. Só que, para que as “mensagens” cheguem aos receptores ela precisa ser codificada. Embora complexa, as codificações jor­nalísticas não são do tipo a dar dores de cabeça em Alan Turing. Por exemplo:  Se você lesse a manchete “Davi contra Golias em Jerusalém”, provavelmente pensaria se tratar de alguma reflexão sobre o texto bíblico. Sem mais informa­ções, mesmo que não explicitas, a manchete poderia se referir a uma infinidade de assuntos. Ao mesmo tempo, se visse uma imagem de um garoto atirando pedras contra um tanque de guerra, sem nenhuma informação verbal, não seria capaz de determinar o contexto da situação. Codificando essas duas informações temos a imagem mais repre­sentativa da Primeira Intifada, período conhecido como insurreição das pedras, e aqui nem é preciso fornecer mais detalhes.

Após a codificação, para que a men­sagem seja entregue, ela necessita de um “canal” para ser transportada. Esses canais são chama­dos de instituições de imprensa ou mídia, ao qual são especificamente definidos pelo PJS como “o corpo jurídico profissional existente que se preocupa com a produção ou reprodução de informações e notícias em forma escrita, visual ou de áudio, periódica ou não periodicamente, para que sejam distribuídas, vendidas ou transmitidas para o público por meio de transmissão ou publicação na forma de um material impresso ou digital. Isso se aplica a jornais, revistas, televisão, esta­ções de rádio, agências de notícias e sites de mídia. Esta defi­nição não inclui a entidade que emita jornal, revista ou boletim oficial, profissional, escolar ou universitá­rio, ou que seja editado por clubes, associa­ções e organismos comunitá­rios, locais e in­ternacionais, diplomáticos ou similares”.  [7]

Apresentado os componentes do processo de comu­nicação (mensagem, emissor, código, canal e receptor), falemos agora em seu boicote. A falha ou a interferência de agentes externos em qualquer fase do processo de comunicação, pode gerar o que chamamos de ruídos. Esses ruídos impedem que as mensagens sejam entregues aos receptores, ou ainda pior, que chegue adulterado e com um contexto completamente diferente do emitido inicialmente. Quando esses ruídos são provocados proposital­mente, podemos interpretar como uma violação ao direito de liberdade de imprensa, um direito inerente assegurado pelo Artigo.19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos e outras leis internacionais.

Em qualquer estado democrático, a liberdade de imprensa é um princípio fundamental e um direito de todo cidadão. Sua funcio­nalidade permite a proteção de outros direitos, como por exemplo o direito de não ser submetido à escravidão[1] ou o direito de todos ao acesso à saúde[2]. A liberdade de imprensa também proporciona a transparência entre a sociedade e aqueles que a governam, o acesso à informação e o fomento do debate público.

Reconhecida como um direito humano em diversas constitui­ções, declarações, convenções e proto­co­los internacionais, a liberdade de imprensa enfrenta desafios em muitos lugares, como na Palestina, onde o contexto complexo torna-se terreno fértil para censura, intimidação, restri­ções gover­namentais, pressões econô­micas, violência e execução sumária de jornalistas. Estas são apenas algumas das ameaças apresentadas pelo PJS durante a Conferência de Apresentação do Relatório Anual de Violações aos Direitos e Liberdades dos Jornalistas Palestinos, em janeiro de 2023. Como um todo, o Sindicato anunciou mais de 900 episódios de crimes, violações e represá­lias praticados pelo regime de ocu­pação como forma de impedir a liberdade de imprensa palestina.

Na conferência anual, outros dados foram apresentados, como o fato de 52 jornalistas terem sido deliberadamente alvejados por soldados das Forças de Ocupação Israelenses (IOF) com munição real, balas de borracha e até mesmo estilhaços de mísseis. Além disso, outros 95 profissionais foram feridos em campo por meio de bombas de gás lacrimogêneo, granadas de efeito moral e canhões de água. Alguns jornalistas receberam primeiros socorros no local, mas em 74 casos foram necessários encaminhar as vítimas para tratamento hospitalar.

Dentre as violações notificadas pelo Sindicato, o que mais chamou a atenção foi o aumento exponencial de prisões seguidas de detenções administrativas e o impedimento do trabalho, na qual, referente apenas ao ano de 2022, totalizaram 316 ocorrências. Dos casos de detenção administrativa, 58 jornalistas foram submetidos a tribunais militares, prisões e multas, e 17 colegas, homens e mulheres, permaneceram em prisões israelenses, pelo menos até a data de outubro de 2023.

Como agravante, o Sindicato também registrou agressões físicas, como golpes com paus, escudos, coronhadas, socos e chutes, praticadas pelos soldados da ocupação contra 117 profissionais. Entendemos que esse número possa ser ainda maior, pois muitos profissionais não relataram as ocorrências, uma vez que essas agressões são tão comuns quanto “quando um cachorro morde uma pessoa”.

Os crimes e violações notificados contra os jornalistas, não foram praticados somente pelos soldados da ocupação. Os militares também garantiram a segurança para que colonos cometessem as mesmas ou piores violações. Somente no ano de 2022, devido ao aumento de colonos ilegais nos Territórios Palestinos Ocupados, o PJS registrou 99 crimes e violações, a maioria ocorrendo sob a proteção e o controle das IOF.

Além dos crimes cometidos contra os profissionais, foram registrados também violações contra instituições e centros de mídia, nas quais incluem invasão a escritórios, destruição e confisco de equipamentos de trabalho, proibição de viagens e deslocamentos, intimação para investigação, bem como incitação por parte de políticos, departamentos governamentais e da mídia.

Os números exorbitantes registrados e notificados pelos Sindicato de Jornalistas Palestinos, representam uma prática sistemática e contínua de limpeza étnica e apartheid. Os crimes e violações contra jornalistas e instituições de mídia não apenas interromperam a comunicação, mas também causaram danos graves, muitos deles, irreversíveis, como os assassinatos sumários dos jornalistas Yasser Murtaja, Shireen Abu Akleh, correspondente da Al-Jazeera, e da jornalista recém-formada, Ghufran Al-Warasneh, assassinada num posto de controlo perto do campo de refugiados de Al-Arroub enquanto se deslocava para o trabalho.



 

[1] Artigo 4 “Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas.”

[2] Artigo 25 “1. Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde, bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis e direito à segurança em caso de desemprego, doença invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle. 2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção.”

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