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Foto do escritorClandestino

O velho e o mar

Finca Vigia, Havana


Há muito tempo, um homem do norte chegou nesta ilha. Ele não era mais o mesmo e não viveria as “Aventuras de um jovem” novamente. Não sentiria mais o sal das “Ilhas no Stream”, o calor do “Green Hills da África”, muito menos deixaria “As Neves do Kilimanjaro” tocar a sua face, mas estava pronto para outro tipo de jornada. Encantou-se tão profundamente com a ilha, que percebeu que suas raízes, antes soltas no ar, agora poderiam aterrar-se a este solo.


Este homem era um dos escritores mais renomados de sua época, e grande parte de suas narrativas, contos e histórias foram digitadas em uma velha Olivetti Plomo, que ainda reside em uma sala vazia, olhando “Do outro lado do rio entre as árvores” através das janelas de vidro, esperando que seu velho companheiro volte para sentir o peso de seus dedos sobre suas teclas. Seus uniformes militares e suas botas ainda jazem em seu armário, pois encontrou a paz que tanto procurou em outras terras. “A quinta coluna e as primeiras quarenta e nove histórias” ficaram para trás, enfim, ele deu “Adeus às Armas” definitivamente; não havia mais serventia para elas. Agora, costuma passar pelas belas flores rosadas de seu “Jardim do Éden”, mesmo durante “As torrentes de primavera”, subindo a escadaria de um anexo para presenciar que “O Sol também Nasce” e escrever sobre aquilo que lhe era mais caro: a simplicidade da vida dos comuns.


O escritor que há muito tempo partiu, encontrou em Cuba sua inspiração para escrever, em uma única tarde foram “Três histórias e dez poemas”. Nos cubanos, aquele “homem sem mulher” entendeu a verdade entre “ter e não ter”. Ao conviver com os pescadores, ele descobriu a cumplicidade entre um homem do mar e os peixes que leva para casa. Tal segredo tornou-se uma das histórias mais lidas e aclamadas do mundo.


Foi pelas pessoas e, com elas, que o escritor dividia conversas e charutos. Entre um trago e outro em La Floridita ou em uma partida de xadrez com um jovem comandante, ele decidiu mais uma vez se apaixonar. Se apaixonou pelas pessoas que cruzava pelas curvas da estrada até San Miguel del Padrón, onde chamava de lar. Foi aqui também que esse escritor, que já conhecia a guerra de outras passagens, testemunhou a paixão e a ternura que sustentam o peso da revolução em uma linha tênue que separa a vida da morte. Paixão que motiva camponeses, pescadores, estudantes e todos os trabalhadores humildes a se levantarem contra a tirania. Seus olhos viram e seu coração sentiu a pulsão da revolução. Ele falou sobre ela, escreveu sobre ela, defendeu-a como sua.


Mas a temporada dos furacões chega para todos, mesmo para aqueles que já não marejam mais ao balanço do mar. Em “O verão perigoso”, não foram os cubanos nem os revolucionários, mas o governo do país de onde ele havia vindo, os Estados Unidos da América. Em meio a uma guerra psicológica entre capitalistas e comunistas em todo o mundo, o escritor, que só havia nascido naquele território ao qual se sentia estranho, foi rotulado como traidor devido às suas estreitas relações com os líderes do governo revolucionário e com o povo cubano, do qual ele próprio se tornara parte.


Após inúmeras ameaças, inclusive à sua própria vida, o escritor deixou a ilha, abandonando tudo o que um dia fora seu: seus milhares de livros, sua casa, anotações, o barco em que navegou e no qual escreveu parte de sua novela sobre o peixe, e a velha Olivetti Plomo que o ajudou a ser agraciado com o Prêmio Nobel. Ele partiu, deixando para Cuba tudo o que tinha e tudo o que já foi. Partiu, mas já não era ele.


Pouco tempo depois de se estabelecer naquela que os outros diziam ser sua verdadeira pátria, ele percebeu que o sentimento não correspondia ao que pulsava em seu coração. Sentou-se em sua cama, em uma casa nova que comprou, mas que não sentia como sua, enquanto as visitas conversavam na sala. Então, passou as mãos sobre o metal frio, correu pela extensão da arma e retirou-a da parede. Num momento de sanidade, ele puxou o gatilho, mesmo sabendo que o “Vencedor não leva nada”. Explodindo nas paredes e no teto toda a fonte de onde brotaram aquelas belas palavras que o mundo leu. Seu nome estava estampado no dia seguinte nos obituários de todo o mundo. Aquela "Morte à Tarde" era agora, “Em nosso tempo”, uma lenda “Por quem os sinos dobram”. Seu nome era Ernest Hemingway.

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