Meu constrangimento por ser um ocidental preconceituoso
- Siqka
- 29 de abr. de 2024
- 4 min de leitura
Depois de um refrigerante gelado, ao atravessar a rua em direção ao Indira Gandhi Memorial, passei por uma das situações mais constrangedoras da minha vida, a qual me fez ter raiva de mim mesmo. Há certos dias que nos sentimos ridículos por nossos próprios preconceitos. Às vezes, preconceitos que nem sabemos que possuímos, e isso acontece com certa frequência quando decidimos furar as nossas bolhas e sair para viver que o mundo real tem para oferecer.
Logo Paharganj encontramos um motorista de tuc-tuc que nos guiaria em mais um dia de aventuras por Nova Deli. Como de costume, sabíamos que, antes de chegarmos ao nosso destino, teríamos que passar por uma infinidade de lojas de pashmina “original good quality”, tapete, sári, chá, artesanato e um monte de outras coisas que não queremos, mas como esses motoristas de tuk-tuk ganham comissão por cada turista que levam para essas lojas, eles comprem ou não, decidimos seguir o fluxo. Assim foi. Entramos em pelo menos cinco lojas diferentes, e cada uma que entramos elogiamos o motorista para o dono do estabelecimento.
Depois de várias lojas, finalmente começamos nosso tour programado. Passamos por muitos templos hindus, o templo de Lótus da fé Bahá'í até que ao final da tarde chegamos ao memorial de Indira Gandhi, um local de grande importância histórica e emocional para nós. Antes de explorarmos o memorial, decidimos fazer uma pausa para nos refrescarmos.
Aquele memorial para nós tinha muito simbolismo, principalmente por termos recentemente lido o Sári Vermelho de Javier Moro, o qual conta a história desde um dos líderes da independência indiana, Jawaharlal Nehru, até sua filha Indira Gandhi e seu neto Rajiv Gandhi, todos primeiros-ministros da Índia. Como sabíamos que Indira foi assassinada por dezenas de tiros naquela casa, sabíamos que seria uma visita pesada, sendo assim, paramos para tomar um refresco antes de encarar.
Convidamos o motorista do tuk-tuk para comer algo e tomar um refrigerante conosco. Ele rejeitou o convite com veemência, a Di disse para eu comprar algo para ele assim mesmo e assim fiz. Paramos em uma barraca e eu pedi três latas geladas de refrigerante e alguns salgados para nós. Entreguei os da Di e entreguei o do motorista. Parecia que eu estava dando uma nota de um milhão de rúpias para ele, o homem agradeceu, bateu a lata e o salgado na cabeça erguida ao céu como em prece, agradeceu e agradeceu.
Olhei para Di e ela ficou tão impressionada quanto eu, mas aquilo nos deixou tristes, pois mostrava a verdadeira situação daquele homem, mas também mostrava a verdadeira face do tipo de turistas que aqui frequentam. O que não era nada de mais para nós, e continua não sendo, para ele era uma demonstração de humildade ou sei lá o que. Essa não foi a primeira vez que passamos por algo desse tipo na Índia e não seria a última.
Depois daquele refrigerante que desceu como desinfetante pela garganta, era hora de ver o memorial. Quando fomos atravessar a rua, o motorista do tuk-tuk segurou minha mão, como fazem com frequência os homens, amigos ou parentes pelas ruas em diversos países no oriente. Estávamos há quase um mês na Índia, viajamos mais de três mil quilômetros por cinco estados diferentes e todo esse tempo, a fim de respeitar a cultura local nem nos tocamos em público, o que aqui é desrespeito do casal, inclusive andar de mãos dadas, e agora eu estava ali, em uma avenida super movimentada no centro de Nova Delhi andando de mãos dadas com um indiano.
Não diria que sou uma pessoa tímida, mas tenho certas dificuldades com espaços públicos e demonstrações de afeto, às vezes até meio frio. Também não sou homofóbico, mas aquela situação me colocou em conflito moral. Eu olhava para Di e ela sorria, sabia que eu não estava trocando-a por um indiano e, mesmo não sendo nenhum pouco homofóbico, aquela situação para mim era constrangedora. Como boa companheira que é, ela aproveitou a situação para me deixar ainda mais desconfortável.
Eu estava realmente incomodado naquele momento que parecia interminável. Atravessamos a avenida e pensei, agora ele irá soltar a minha mão. Não soltou. Eu poderia retirar a minha mão e encontrar um conforto para ela e para mim no bolso, talvez o homem compreendesse o fato de eu ser estrangeiro e aquela situação não ser natural para mim, mas e se ele não entendesse? Eu não queria ser só mais um gringo branquelo que vem ao oriente explorar as riquezas e a cultura local, teria horror ao ser confundido com esse tipo "turista". Então, enterrei meu orgulho, com meu desconforto e fiz o possível para ser o mais natural possível.
A Di pensou em tirar uma foto, até comentou, mas eu disse que se fizesse isso iríamos brigar feio, principalmente se contasse essa história para alguém. Hoje, muito tempo depois, estou aqui contando para pessoas que nem conheço sobre um dos meus maiores constrangimentos. Mas meu constrangimento de hoje não é por um dia ter passeado de mãos dadas com um estranho pelas ruas de New Delhi, mas por ter me sentido desconfortável com aquela situação. Claro, a cultura da sociedade que crescemos para nós é o natural, ou o certo, como uma língua materna, mas nem por isso, isso nos faz pensar que a cultura alheia é errada ou estranha. Da mesma maneira, o que para nós é natural, como passear de mãos dados com sua esposa, para um indiano isso é estranho e errado.
Um ser humano demonstrou por mim sua amizade e respeito – mesmo sendo estranhos um ao outro – e ao invés de ter me expressado da mesma forma, me senti constrangido, achando que pagar um lanche seria a forma correta de demonstrar meu respeito por ele.