Operação Verdade: Prensa Latina, uma herança de Fidel, Che e Masseti
Há muito tempo, um jovem jornalista se embrenhou na mata úmida com um único objetivo: entrevistar o líder da revolução. Destemido, ele não sabia ainda, mas subia a Sierra Maestra para nunca mais voltar.
Como evitar que o diário de hoje se torne um livro dentro de um livro? Hoje é o dia de visitar o Prensa Latina, um meio de comunicação tão antigo e resistente quanto a própria revolução. Este veículo, genuinamente latino e alheio a todas as formas de manipulação das corporações que norteiam o que deve e como deve ser dada cada notícia, guarda uma história impressionante. Além disso, é o foco principal de um trabalho ao qual tenho me dedicado por anos: a liberdade de opinião e expressão, protegida pelo Artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
No bairro Chino, subimos em um ônibus em direção ao Vedado. O dia está mais agradável, apesar do frio, hoje não chove. Descemos no Monumento a José Miguel Gomes e caminhamos pela avenida até nos depararmos com o monumento dedicado ao eterno presidente chileno e ícone comunista Salvador Allende[1]. Continuamos, é claro, sempre virando à esquerda, até chegarmos à Prensa Latina.
Meu envolvimento com a Prensa Latina começou quando ofereci ao jornal a publicação dos diários de amigo jornalista palestino que documentou em tempo real o genocídio no que restou da Faixa de Gaza após o dia 7 de outubro de 2023. O Prensa, diferente de muitos canais “progressistas” no Brasil aos quais também ofereci os diários, prontamente respondeu ao chamado e publicou todos os textos, denunciando desde o primeiro dia o banho de sangue. Enquanto a grande imprensa internacional, que eu chamo de "indústria de desinformação", estava ocupada replicando o discurso sionista, mídias independentes comprometidas com a verdade e não com os lucros, tal como a Prensa, se dedicaram a amplificar as vozes dos palestinos que estavam sendo impactados pelas bombas e fome. Não poderia ser diferente com uma mídia que foi fundada por Che Guevara e pelo jovem jornalista argentino que havia subido a Maestra para entrevistar Fidel Castro; seu nome era Jorge Ricardo. Masseti.
Em 1958, Masseti chegou a Cuba como enviado da estação da rádio El Mundo, de Buenos Aires, com a missão de entrevistar os líderes da revolução. Masseti subiu como jovem jornalista, mas quando desceu, já não era capaz de responder à demanda editorial de uma empresa. Percebendo que o jornalismo deveria ser usado como uma arma na defesa da justiça social, se converteu em guerrilheiro, cuja primeira missão se daria logo nos primeiros dias após o triunfo da revolução.
Não há uma única revolução que não tenha começado sua história pela linha editorial de um jornal clandestino. A informação e a comunicação são de suma importância para qualquer ruptura ditatorial ou evolução social. Foi assim com os iluministas na França, os bolcheviques para derrubar o czar na Rússia, os chineses, os vietnamitas e todas as outras histórias revolucionárias. Até mesmo Karl Marx, como autor revolucionário de um jornal clandestino, defendeu a liberdade de imprensa. No entanto, esse papel desempenhado pelos jornalistas em todo o mundo não é percebido apenas pelos revolucionários. Infelizmente, os donos dos meios de produção – principalmente dos meios de produção de notícias – compreenderam que para seus golpes também precisavam controlar a informação e a comunicação que chegava ao povo.
Com o triunfo da revolução, o aparato propagandístico capitalista, principalmente agências como a Associated Press, UPI, revistas como Life, Newsweek, US News and World Report e seus principais jornais, organizaram uma campanha internacional acusando Fidel Castro e os guerrilheiros de transformar o país em um "banho de sangue" com os julgamentos de tribunais militares e sentenças de execução a alguns dos criminosos de guerra mais destacados do regime de Batista [1]. A difamação da indústria da desinformação foi tão intensa que obrigou Fidel a convocar jornalistas dos EUA, América Latina e Europa para se reunirem em Havana e testemunharem pessoalmente as calúnias disseminadas pelos grandes meios de corrupção – ops, comunicação. Como descreve Fernando Morais: “A proclamação do caráter socialista da revolução cubana foi o momento de ruptura. Menos de uma semana depois, todos os jornais, estações de rádio e de televisão tinham sido abandonados por seus proprietários, que não eram tantos – os meios de comunicação em Cuba pertenciam a algumas poucas famílias ligadas à indústria açucareira. Muitos dos donos de jornais chegaram a declarar, antes de partir, que pretendiam voltar logo ao país, imaginando que os Estados Unidos àquela altura, já em choque total com Cuba, fossem derrubar Fidel Castro em pouco tempo” [2]. Com isso, os jornalistas eram essenciais não apenas como defensores da verdade, mas também como cães de guarda da justiça e da própria revolução. Se por um lado a vitória foi conquistada pela força das armas, para se manter viva precisaria da força das palavras.
Fidel deu início a mais uma etapa de um processo complexo. Iniciou a Operação Verdade, no segundo dia reunido com mais de 400 jornalistas. Fidel Castro disse: "A imprensa latino-americana deveria ter os meios para conhecer a verdade e não ser vítima de mentiras" [3].
“Vocês, jornalistas, querem ajudar o povo? Pois bem, vocês têm uma arma formidável nas mãos: a opinião pública continental. Use-a e você verá como ajuda a redimir os povos e salvar muitas vidas.” - Fidel Castro, 21 de janeiro de 1959 [1].
Da Operação Verdade, surgiu a necessidade de narrar a revolução sem recorrer a mentiras usadas como estratégias de marketing para vender ilusões. Assim, decidiram fundar uma agência de notícias própria, que não apenas cobrisse os eventos nacionais, mas também os divulgasse para o resto do mundo. Entre os visionários fundadores deste novo meio de comunicação estavam o uruguaio Carlos María Gutiérrez e o jovem argentino Jorge Ricardo Masetti.
"São exemplos que devem ilustrar a todos nossos jornalistas. A verdade em nossos tempos navega por mares tempestuosos, onde a mídia está nas mãos dos que ameaçam a sobrevivência humana com seus imensos recursos econômicos, tecnológicos e militares. Esse é o desafio dos jornalistas cubanos!" - A história real e o desafio dos jornalistas cubanos, Fidel Castro, 3 de julho de 2008. [1]
Fundado por Che Guevara, o Prensa Latina teve Masetti como o primeiro diretor-geral. Sob a direção de Jorge Masseti, a Prensa surgiu com a missão de ser o primeiro meio de comunicação a ressoar as histórias sobre a revolução e suas conquistas contadas por ela própria, para confrontar os meios de propaganda “imparciais” que diariamente difamavam as conquistas revolucionárias. A Prensa Latina cresceu e se tornou o principal meio de comunicação dos esquerdistas da América Latina; em pouco tempo, seus correspondentes já atuavam no México, Venezuela, Argentina, Colômbia, Peru, Chile, Panamá, Paraguai, Bolívia, Brasil e Equador. Como correspondente em Bogotá e Nova York, atuava Gabriel García Márquez, um jornalista a passos de se tornar um dos maiores romancistas latino-americanos de todos os tempos.
Caso você argumente que não há maior censura do que um jornal controlado pelo governo e que a obrigação do jornalismo é ser imparcial, eu te convidaria a ler livros como “História do Jornalismo” de José Marques de Melo, “Padrões de Manipulação na Grande Imprensa” de Perseu Abramo, ou “Artigo 19, Violação da Liberdade de Opinião e Expressão na Palestina” de minha autoria. Se ainda assim a dúvida persistir, recorra a “Liberdade de Imprensa” de Karl Marx. Mas, para simplificar, vou te explicar resumidamente. Não existe imprensa imparcial quando por trás há anunciantes, assim como não existe um jornalista cobrindo uma guerra em seu país que seja imparcial, ou um apresentador de telejornal que não repita em horário nobre as instruções recebidas do dono da emissora.
– Mas se não existe imparcialidade, como saberemos a verdade? Devemos considerar de que lado a mídia está na história: se ela apoia atos golpistas ou se faz críticas construtivas que permitem ao consumidor tirar suas próprias conclusões, como no caso do Prensa Latina e outras mídias inspiradas por ela.
Masseti foi o percursor da linha editorial do Prensa e por consequência de muitos outros jornais independentes e ideologicamente posicionados a favor dos oprimidos e na defesa de seus direitos – confesso que mesmo eu fiquei cheio de ideias para colocar em prática quando voltar –, mas sua missão não estava concluída. Em 1962, depois de engatar a marcha inicial a qual a Prensa seguiria ao longo de sua história, ele deixou Cuba para levar a revolução também para seu país; as selvas de Salta tornaram-se a sua Maestra. Infelizmente, não houve triunfo em Salta. Masseti foi perseguido pelo exército argentino e desapareceu em 21 de abril de 1964. Oficialmente, a morte foi registrada como suicídio, mas sabemos bem que silenciar jornalistas e execuções sumárias de guerrilheiros nunca saí de moda.
Ouvi toda a história de Fidel, Che e Masseti contada pela editora Luisa María, que me guiou em uma visita pelo Prensa Latina. Durante a visita, embora a história fosse impressionante, duas coisas me chamaram mais a atenção. A primeira foi a humildade e, de certo modo, a precariedade dos equipamentos disponíveis para os profissionais. Mesmo com essas limitações, eles conseguem realizar um trabalho fantástico, reproduzido por todo o continente americano. A segunda foi a forma como os trabalhadores interagem entre si, sem divisões hierárquicas; nenhum se sentia mais digno que os outros, e ninguém se considerava merecedor de um pedestal para o próprio ego. Mesmo com tudo isso que presenciei com meus próprios olhos, o Prensa Latina ainda sofre ataques da mídia hegemônica internacional, inclusive a brasileira, que nunca, jamais pensou em pisar em suas dependências para reportar as histórias contadas de dentro do sistema antes de publicar um monte de bobagem; – isso é a sua liberdade de expressão?
É surpreendente que o mundo acuse o governo revolucionário de violar a liberdade de opinião e expressão dos cubanos, especialmente dos jornalistas. Isso porque foi o governo dos EUA, especialmente a administração de Nixon, com a ajuda de Henry Kissinger e Helms, que promoveu um período de ataques contra a imprensa cubana. Eles bloquearam os sinais das transmissões de rádio de Havana, transmitiram sinais de estações piratas da Flórida para dentro da ilha, divulgaram informações falsas e incitaram a população à contrarrevolução [4], mas quando a violação da liberdade de imprensa ou de opinião e expressão é cometida pelos americanos, tudo bem.
Os ataques contra o Prensa Latina não cessaram, mas, diferente dos prognósticos, o jornal resistiu e permanece ativo, demonstrando que com a verdade como munição, é possível combater a narrativa dominante. Aqueles que ainda hoje acusam o governo cubano de tais violações são os mesmos que perseguiram Julian Assange e Edward Snowden. Assange, fundador do WikiLeaks, é alvo de uma complexa disputa jurídica e busca de extradição por parte dos Estados Unidos, após divulgar documentos confidenciais – mais conhecidos como crimes de guerra[2]. Snowden, por sua vez, expôs programas de vigilância em massa realizados pela NSA e vive no exílio devido às ameaças de processos judiciais. Sem contar que também são os mesmos que financiam e perpetram o genocídio na Palestina, incluindo os jornalistas (122 até o momento)[3]. No Brasil, aqueles que fazem as mesmas acusações são os que acham que liberdade de opinião e expressão é participar de manifestações públicas e atacar poderes democráticos legítimos; o resultado desse ato foi a tentativa de golpe que vimos acontecer no Brasil em 8 de janeiro de 2023.
Conhecendo a história do Prensa Latina e compactuando com seu método de fazer jornalismo, estava realmente muito feliz e honrado de estar ali. Enquanto conversava com Luisa, repassava a única pergunta que realmente tinha para fazer. Queria refazer a mesma pergunta que Morais havia feito a um jornalista cubano:
“Quando perguntei a um influente jornalista cubano se lá existe liberdade de imprensa, ele deu uma gargalhada e respondeu: ‘Claro que não’. E completou, com naturalidade: ‘Liberdade de imprensa é apenas um eufemismo burguês. Só um idiota não é capaz de ver que a imprensa está sempre a serviço de quem detém o poder. E aqui em Cuba quem detém o poder é o proletariado. Estamos todos os jornalistas cubanos, portanto, a serviço do proletariado.’” - Fernando Morais [2].
Antes de ir embora, mesmo correndo o risco de tomar outra lapada como Moraes tomou, perguntei: – Existe liberdade de opinião e expressão, um direito humano defendido pelo Artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos em Cuba? Ela só me respondeu: – Estamos conversando, não estamos?
Notas
[1] Salvador Allende (1908-1973) foi um político chileno e o primeiro presidente socialista democraticamente eleito no Chile. Ele nasceu em Valparaíso, Chile, e estudou medicina antes de ingressar na política. Allende tornou-se membro do Senado chileno e foi eleito presidente em 1970 como candidato da coalizão de esquerda conhecida como a Unidade Popular. O governo de Allende implementou reformas significativas, incluindo a nacionalização de indústrias-chave e a redistribuição de terras. No entanto, essas mudanças encontraram forte oposição interna e externa, especialmente dos Estados Unidos. Em 11 de setembro de 1973, o governo de Allende foi derrubado por um golpe militar liderado pelo general Augusto Pinochet. Allende morreu durante o golpe, e as circunstâncias de sua morte permanecem objeto de controvérsia. O regime de Pinochet instaurou uma ditadura militar no Chile, que durou até 1990. Salvador Allende é lembrado como uma figura emblemática da política chilena e latino-americana, sendo considerado um mártir por alguns e criticado por outros.
[2] Assange, fundador do WikiLeaks foi libertado de uma prisão em Londres após um acordo que encerrou 14 anos de batalha legal com o Departamento de Justiça dos EUA. Solto em 25 de junho de 2014, Assange voltou para Austrália, seu país de origem.
[3] Até o momento da publicação deste livro, a contagem já supera 150 jornalistas assassinados.
Referências
1. González, Juan Marrero. Enero de 1959: Fidel y la Operación Verdad. Fidel, Soldado de las Ideas. Havana : s.n., 2019.
2. Moraes, Fernando. A Ilha.
3. Representaciones Diplomáticas de Cuba en el Exterior. ¿Qué fue y qué es Prensa Latina a sus 60 años? Ciudad de Guatemala : s.n., 2019.
4. Acosta, Tomás Díes. Un intento de revancha: Estados Unidos vc Cuba (1969-1974). Havana : Instituto Cubano del Libro, 2017.