Você sabe o que é antissemitismo e como surgiu esse termo? Entenda a disputa de narrativas por trás da manipulação
Quem ousa apoiar publicamente o direito à autodeterminação dos palestinos inevitavelmente se depara, em algum momento, com uma batalha de narrativas e manipulação discursiva. Mesmo que a história entre o Estado de Israel e os palestinos seja, em sua essência, compreensível, a realidade muitas vezes é distorcida quando vista da perspectiva ocidental. Nesse contexto, o sionismo e a máquina de desinformação a serviço do imperialismo estadu¬ni¬dense se valem da disputa narrativa para obscurecer o evidente e confundir os espectadores, isolando eventos e distorcendo os códigos pelos quais as mensagens são transmitidas.
Ao concentrarmos nossa atenção na manipulação do discurso, é possível fazer observações mais detalhadas sobre como informa¬ções são omitidas ou empregadas de maneira desonesta.
A violação do Código, que envolve a codificação de mensagens em formas verbais e não verbais, é estabelecida por meio de duas variáveis, baseadas em silogismos e estereótipos preconceituosos. No primeiro caso, a primeira premissa parte do pressuposto de que todo israelense é judeu. Na segunda premissa, estabelece-se que “o judeu é um povo escolhido por Deus”. Logo, conclui-se que todo israelense, mesmo que não seja um judeu praticante, faz parte de um povo “escolhido por Deus” para habitar a Terra Santa. Essa ideia pressupõe a teoria de uma promessa e um cartório divino eterno. Mas, e se uma suposta nova divindade cristã afirmasse que aquela terra pertence aos seguidores de uma nova religião? Vamos evitar aprofundar-nos em questões religiosas, mas fica uma dica para reflexão, lembran¬do que Jesus Cristo foi um renovador da fé judaica e que o judaísmo o rejeita como profeta, se não o rejeitasse, não estariam ainda esperando pelo Messias.
No segundo silogismo, a primeira premissa parte da ideia de que “todo árabe é muçulmano”, o que sabemos não ser verdade. Na segunda premissa, surge a afirmação de que “todo muçulmano é terrorista”, algo ainda mais absurdo. Portanto, chega-se à conclu-são de que “todo palestino é um árabe terrorista”.
Ambas as variantes apresentadas contaram, ao longo do tempo, com o domínio da indústria cultural e, mais recentemente, com a Indústria da Desinformação para serem difundidas.
A distorção intencional dos significados das palavras resultou na criação de um senso comum que associa equivocadamente qualquer crítica ao sionismo como equivalente a um ataque ao judaísmo, rotulando-a como antissemita. Da mesma forma, há uma generalização prejudicial que retrata todos os árabes como terroris¬tas, sugerindo que é aceitável bombardeá-los, preferenci¬almente antes mesmo de atingirem a idade adulta. É crucial reconhecer como esses códigos distorcidos são disseminados durante uma disputa de narrativas. Como observa a pesquisadora Esther Medina Ribeiro, "a representação do árabe como comerci¬ante ou nômade foi gradualmente substituída por uma imagem potencialmente ameaçadora, despertando a preocupação dos países centrais devido a uma posição considerada antissionista, machista, extremista e opressora".[85]
Para esclarecer alguns conceitos, apresento descrições simplificadas dos termos mais frequentemente utilizados nesta disputa de narrativas e significados distorcidos. O objetivo é proporcionar ao leitor uma compreensão definitiva do que cada termo expressa verdadeiramente.
Sionismo é uma palavra derivada de Sião, nome bíblico de uma colina localizada em Jerusalém. O Sionismo foi um termo criado por Nathan Birnbaum no século XIX para servir como apelo religioso afim de unir os professantes do judaísmo entorno de uma identidade nacional e, assim fundar um Estado judeu. Stuart Hall refutou a ideia de identidade nacional “simbolicamente baseada na ideia de um povo folk puro original. Mas, nas realidades do desenvolvimento nacional, é raramente esse povo ‘folk’ primordial que persiste ou que exercita o poder”. [86]
Houve um tempo em que muçulmanos, judeus e cristãos coexistiam pacificamente na Palestina. Em 1880, dos quase 500 mil habitantes sob o domínio do Império Otomano, 5% eram seguidores do judaísmo, 10% do cristianismo, enquanto a maioria, representando 85%, praticava a fé muçulmana. Nesse período, os judeus que residiam em Jerusalém recorriam à oração no Muro das Lamentações utilizando o idioma árabe. Enquanto isso, no outro lado do mundo, o regime do Czar Alexandre II (1855-1881) enfrentava movimentos anti-czaristas que surgiram em resposta à fome e à pobreza na Rússia.
Para conter as revoltas e os movimentos revolucionários, o Império culpava os judeus por todos os problemas. Incitada pelo governo, a população civil voltou-se contra os judeus, marcando o início da era dos pogroms (1). Essas perseguições levaram centenas de milhares a emigrarem da Rússia. Como resultado, se antes na Palestina havia 12 mil judeus, os pogroms aumentaram esse número para 35 mil em 1882.
A palavra sionismo de Birnbaum foi disseminado entre a comunidade europeia por Theodor Herzl durante o Primeiro Congresso Sionista realizado em Basiléia, Suíça, em 1897. Durante o congresso, os primeiros sionistas destacaram os pogroms no leste europeu para fundamentar a necessidade de criar uma nação judaica independente. Segundo Stuart Hall, eventos históricos como os pogroms enfrentados pelos judeus na Europa são considerados na pós-modernidade como ferramentas essenciais na formação da identidade cultural. Em suas palavras, esses fenômenos transformam a "desordem em 'comunidades'".
“Embora o anseio dos judeus por sua própria terra não fosse consequência direta dos pogroms (a ideia da recolonização judaica da Palestina havia sido exposta por judeus e mesmo alguns não-judeus muito antes da palavra pogrom entrar no vocabulário do judaísmo europeu), os pogroms russos da minha infância deram premência à ideia, especialmente quando se tornou claro aos judeus que o próprio governo russo (czarista) os usava como bodes expiatórios na luta para reprimir o movimento revolucionário.” Golda Meir, 1976. [24]
No primeiro congresso realizado pelos sionistas, eles decidiram que sua comunidade deveria ser constituída fora do território europeu. Cogitaram os territórios nos EUA, Argentina, Sibéria, Uganda e Madagascar, mas, por fim, foi aprovado que o lar judaico seria instalado na Palestina, uma terra que “Deus teria prometido a Abraão” há mais de quatro mil anos. O simples fato de os euro-judeus cogitarem outros territórios para estabelecer o Estado Nação por si só, justifica que o “retorno” para a Terra Santa é um mito.
“Dois países devem ser levados em consideração: Palestina e Argentina. Em ambos os países foram feitos notáveis tentativas de colonização, baseadas no princípio equivocado da infiltração paulatina dos judeus. A infiltração tem que acabar mal, pois chega inevitavelmente o instante em que o governo, sob a pressão exercida pela população que se sente ameaçada, proíbe a imigração de judeus. Por conseguinte, a emigração só tem sentido quando sua base for nossa soberania garantida.” Theodor Herzl [87]
“A Argentina é, por natureza, um dos países mais ricos da Terra, de imensa superfície, população escassa e clima temperado. A República Argentina teria o maior interesse em ceder-nos uma porção de terra. A atual infiltração dos judeus provocou descontentamento: seria necessário explicar à Argentina a diferença radical entre àquela e a nova imigração judaica.” Herzl [87]
Judaísmo é a religião que tem como livro sagrado a Torah, também conhecida como Pentateuco. Este conjunto representa os cinco primeiros livros da bíblia hebraica e cristã. Moisés é considerado o principal autor desses livros, com uma contribuição menor atribuída a Josué.
Assim como em outras religiões, o judaísmo não pode ser cientificamente classificado como etnia. O termo torna-se confuso devido à diversidade étnica, que inclui os ashkenazi, originários da Europa Central e Oriental; sefarditas, provenientes da Península Ibérica e do Oriente Médio; mizrahim, representando judeus do Oriente Médio e Norte da África, entre outros grupos. Dessa forma, ser judeu não se limita a uma etnia, mas a uma identidade compartilhada que abrange vários aspectos culturais.
A relação entre religião e a “etnia” judaica fica ainda mais confuso quando judeus se declaram ateus, pois se o judaísmo é uma religião e não etnia, como podem existir judeus ateus? Quando alguns judeus se declaram ateus, estão destacando que não seguem as crenças e práticas religiosas associadas ao judaísmo. Eles ainda podem se identificar cultural, historicamente e socialmente como judeus. A identidade judaica pode ser vista como uma combinação complexa de elementos religiosos e culturais, essa diversidade reflete a amplitude da experiência judaica ao longo do tempo e em diferen¬tes comunidades. Portanto, a existência de judeus ateus não nega a natureza religiosa do judaísmo, mas destaca a riqueza e a complexidade da identidade judaica além da prática religiosa.
Fica mais fácil compreender se levar em conta que Theodor Adorno e Max Horkheimer, ambos mencionados anteriormente, nasceram em famílias judaicas na Alemanha. Como muitos outros, eles não seguiam práticas religiosas judaicas e mesmo assim mantinham uma identificação cultural como judeus, motivo que os obrigou a fugir da Alemanha nazista.
Theodor Herzl (considerado fundador do sionismo) é um notável exemplo de judeu não praticante. Mesmo em sua obra "O Estado Judeu", ele imaginou um território secular para um povo que se identificava por sua herança cultural judaica. Essa consciência levou o jornalista austro-húngaro, apesar de sua abordagem secular, a adotar estrategicamente estruturas que também respeitassem as raízes culturais judaicas, como a promoção do uso do idioma hebraico.
Semita é uma palavra derivada da expressão bíblica contida em Gênesis e referia-se a linhagem de descendentes de Sem, filho de Noé. O termo tem como principal característica o conjunto linguístico compartilhado por povos antigos originárias na sua maioria do Oriente Médio, que inclui o acádio, o amárico, o árabe, o aramaico, o assírio, o hebraico, o maltês e o tigrínia, que compartilham as mesmas origens culturais.
Os sionistas provinham de nações modernas de culturas híbridas, dessa maneira falavam os idiomas de suas nacionalidades (russo, alemão, francês, ucraniano etc.) e compartilhavam no máximo o uso do iídiche, um idioma não semita. Adotar o hebraico como idioma nacional foi a fórmula encontrada pelos sionistas para reivindicar sua “origem” semita.
“Talvez alguém opine que haverá um grande inconveniente em que não tenhamos ainda um idioma comum. Haveremos de falar hebraico? Quem, entre nós, sabe hebraico suficiente para pedir um bilhete de trem? Não há quem saiba fazê-lo." Theodor Herzl. [87]
A Primeira-ministra Golda Meir, confessou em sua autobiografia que, o sionismo adotou a tática do hebraico após a proclamação do Estado de Israel como forma de construir uma etnia, uma identidade nacional [24]. Com finalidade de compreender o conceito de identidade nacional, já que consideramos a descrição fornecida pela ex-primeira-ministra Golda Meir, podemos ter de exemplo sua própria origem. Como todos os outros primeiros-ministros anteriores, Meir sequer nasceu na Palestina, ela era ucraniana nascida em Kiev e migrou para os EUA onde passou boa parte da sua juventude em Milwaukee e mesmo assim sua identidade nacional era fiel ao Estado de Israel, muito mais novo que ela própria.
“As identidades nacionais continuam a ser representadas como unificadas. Uma forma de unificá-las tem sido a de representá-las como a expressão da cultura subjacente de ‘um único povo’. A etnia é o termo que utilizamos para nos referirmos às características culturais – língua, religião, costume, tradições, sentimento de ‘lugar’ – que são partilhadas por um povo. É tentador, portanto, tentar usar a etnia dessa forma ‘fundacional’. Mas essa crença acaba, no mundo moderno, por ser um mito. A Europa Ocidental não tem qualquer nação que seja composta de apenas um único povo, uma única cultura ou etnia. As nações modernas são, todas, híbridas culturais.” Stuart Hall. [86]
Após considerar as definições de etnia expostas por Golda Meir e Stuart Hall, observemos a origem do termo antissemitismo. A palavra antissemita surgiu pela primeira vez no século XIX, cunhada pelo jornalista alemão Wilhelm Marr como um eufemismo para o Judenhass (ódio aos judeus). Desde então, o termo passou a ser amplamente associado ao ódio aos seguidores do judaísmo. O sionismo aproveitou essa ambiguidade linguística para rotular os críticos de sua ideologia como “terroristas antissemitas”. Noam Chomsky, também um linguista, explica que a palavra “terrorista” pode ser facilmente alternada para “defensor da liberdade” e de volta para “terrorista” com base na intenção de quem a utiliza. Segundo ele:
“o termo ‘terrorismo’ é usado atos terroristas cometido por inimigos contra nós americanos ou nossos aliados israelenses. Este uso para propaganda é praticamente universal”. Noam Chomsky [88]
Sionismo, judaísmo e semitismo, não são sinônimos um do outro. Devemos considerar que os palestinos falam o idioma árabe, portanto, são mais do que qualquer outro, um povo semita.
Este texto é uma adaptação do livro "Artigo 19: Violação da Liberdade de Opinião e Expressão na Palestina" de Lucas Siqueira. Para acessar o livro completo online, clique em Saiba mais.
Notas de rodapé
(1) Pogrom é uma palavra russa que significa “causar estragos, destruir violentamente”. Historicamente, o termo refere-se aos violentos ataques físicos da população principalmente contra judeus, tanto no império russo como em outros países da Europa.
Bibliografia
[1] E. M. Ribeiro, “O ORIENTE MÉDIO E O ISLÃ SOB O VIÉS DA MÍDIA,” Rio de Janeiro, 2010.
[2] S. Hall, “A identidade cultural na pós-modernidade,” DP&A, Rio de Janeiro, 2006.
[3] G. Meir, “Minha Vida,” Bloch, Jerusalém, 1976.
[4] T. Herzl, O Estado Judeu, Consulado Geral de Israel em São Paulo ed., São Paulo: Porteiro Editor Digital, 1997.
[5] N. Chomsky, “11 de setembro,” Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 2002.
[6] PJS, “Fredoms Report 2022,” Ramallah, 2023.
[7] D. Emidio e L. Siqueira, À procura da Terra Santa, Guarujá, São Paulo: Clube de Autores, 2023.