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Por que não estamos falando sobre a República Democrática do Congo?

A República Democrática do Congo (RDC) é um dos países mais ricos em recursos naturais do planeta, mas não se deixe enganar pela palavra “riqueza”. Na lógica perversa do capitalismo global, essa riqueza é um fardo que transforma suas terras em cemitérios e seus habitantes em corpos descartáveis. São décadas de guerras sem fim, ditadas por interesses de corporações e potências estrangeiras. Mais de 5 milhões de deslocados, fome que dilacera, doenças curáveis que continuam fazendo vítimas fatais, e uma brutalidade aterradora: duas mulheres ou garotas são vítimas de violência sexual a cada hora (MÉDECINS SANS FRONTIÈRES, 2024).

 

Apesar dos inúmeros motivos que justificam a atenção ao que ocorre na RDC, o que mais chama a atenção é o silêncio global sobre uma tragédia que atravessa séculos—ignorada por quem sabe ou desconhecida por quem prefere não saber. A pergunta que deveríamos nos fazer é: por que não estamos falando sobre a RDC?



O Caos Fabricado

 

O silêncio em torno da RDC está, em parte, relacionado à complexidade do conflito. Desde o final dos anos 1990, o país é palco de uma guerra que envolve dezenas de grupos armados, a interferência de países vizinhos e interesses econômicos globais. – Parece complicado entender? – Vamos simplificar e dar nomes a alguns bois.

 

Como mencionado, a RDC é uma potência em recursos naturais como coltan e cobalto, minerais estratégicos para a indústria tecnológica e energética, essenciais para a produção de dispositivos eletrônicos e baterias, incluindo os chamados "produtos verdes" que, na verdade, carregam o vermelho do sangue congolês derramado em sua exploração. Mas não se limita a isso: a RDC também é rica em ouro e nos malditos “Diamantes de Sangue” que primeiras-damas ostentam por aí — caso não esteja familiarizado, recomendo o filme de mesmo nome. O país possui ainda uma reserva de Urânio-235, usado tanto para energias “limpas” quanto para a produção de armas nucleares. E se você acha que estou exagerando, saiba que até o urânio que os EUA usaram para fabricar as bombas de Hiroshima e Nagasaki veio do então “Congo Belga”.

 

O que está em jogo aqui é um projeto de caos fabricado, uma estratégia que mantém a RDC em chamas para que as mãos sujas das potências globais possam continuar pilhando seus recursos. As multinacionais — sobretudo dos EUA e da Europa — mantêm o Congo de joelhos. Com a mesma arrogância colonial de séculos atrás, saqueiam as riquezas, alimentam milícias e financiam a matança. França, por exemplo, além de roubar as riquezas naturais de lá e de outros países africanos, tem o costume asqueroso de despejar resíduos nucleares nesses mesmos territórios (MONITOR DO ORIENTE, 2020).

 

Obviamente, os congoleses se organizam para resistir a essa exploração, e de fato resistem. Mas, quando isso ameaça a extração ilegal e predatória, milícias armadas de países vizinhos, financiadas pelos interesses ocidentais, entram em cena para semear o caos e a violência. E voltamos à nossa pergunta: por que não estamos falando sobre a RDC?

 

O silêncio pode estar relacionado ao fato de que muitos desses recursos são vitais para as economias desenvolvidas. Abordar a questão congolesa implicaria em expor a conexão entre o consumo global de tecnologia e a instabilidade no país. É simples e mais conveniente manter o Congo em silêncio. Falar sobre o que acontece exigiria expor a podridão do sistema que consome vidas para nos suprir com nossos brinquedinhos "verdes" e baterias que duram cada vez mais. Então, caro leitor, me diga: está disposto a olhar para o seu próprio consumo e reconhecer o sangue que ele carrega?

 



A Farsa da Imprensa

 

Além disso, um dos grandes problemas identificados pelo Dr. Placide Okalema Pashi em sua tese de doutorado, intitulada "Poderes patrimonialistas e Tecnologias da Informação e da Comunicação na República Democrática do Congo (2018-2020): uma perspectiva ecológica," é a falha da imprensa (PASHI, 2023). Em 2023, a RDC ocupou a 124ª posição no ranking de liberdade de imprensa da organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF), que declarou:

 

“O pluralismo dos meios de comunicação é real no país, mas na província de Kivu do Norte o setor é fortemente afetado pelo conflito entre as Forças Armadas da República Democrática do Congo (FARDC) e os rebeldes do M23.” (RSF, 2024)

 

Estamos acostumados a ver notícias sobre o genocídio na Palestina e no Líbano de forma direta, mas isso não se aplica à RDC, onde as forças em conflito não são tão claramente definidas. Enquanto no Oriente Médio as empresas de comunicação podem se posicionar contra a ocupação, já que a força colonial é externa, no Congo é diferente por dois motivos: primeiro, porque os atores em conflito não são tão explícitos, e segundo, porque jornalistas locais podem se ver entre vizinhos que são membros das FARDC ou rebeldes do M23. Esse cenário nebuloso contribui para uma percepção ocidental distorcida ou indiferente sobre o que ocorre no país.

 

 

 

Hipocrisia Global

 

O mundo derrama lágrimas de crocodilo quando fala sobre direitos humanos e justiça, mas quando o assunto é a RDC, todos viram o rosto. O conflito na RDC já resultou em milhões de deslocados internos e uma das piores crises de violência sexual do mundo. Estima-se que mais de 5 milhões de pessoas morreram direta ou indiretamente devido à guerra. No entanto, a magnitude dessa tragédia humana é frequentemente ofuscada por outras crises que atraem mais atenção internacional, como as guerras no Oriente Médio ou desastres naturais em outras regiões, que recebem maior cobertura midiática. Isso nos leva a uma realidade: a indiferença global em relação às crises que ocorrem em países africanos.

 

Há uma espécie de "cansaço da compaixão" quando se trata da África, como se as tragédias do continente fossem vistas como uma condição inerente. As crises africanas, especialmente em regiões complexas como a RDC, tendem a receber atenção apenas em momentos de violência extrema ou quando afetam diretamente os interesses das potências ocidentais.

 

Esse desinteresse também se reflete no engajamento em torno dos conflitos africanos. Em 'Clandestino', por exemplo, publicações sobre a RDC, Sudão e outras nações africanas não atingem 10% do engajamento que temas internacionais costumam obter. Parece que a solidariedade é seletiva, e, pior, racista.

 

A realidade: A dor do Congo não vira manchete porque não rende likes.

 



Precisamos Falar Sobre o Congo!

 

O que está acontecendo na RDC é um crime contra a humanidade, mas ninguém vai te dizer isso nos grandes jornais. É preciso gritar, romper o silêncio, colocar os nomes dos cúmplices na roda. Multinacionais, políticos, consumidores — todos nós fazemos parte disso. O sangue congolês está em nossas mãos, provavelmente na tela do dispositivo eletrônico que você está lendo essas palavras nesse exato minuto, tanto quanto no dispositivo que foi usado para escrevê-las; se apenas compreendemos essa história agora, não podemos mais dizer “eu não sabia”?

 

É fundamental que o público global compreenda como suas escolhas de consumo — especialmente em produtos eletrônicos — estão diretamente ligadas à exploração e violência no Congo. A conscientização pode pressionar as empresas a investir em cadeias de fornecimento mais transparentes e éticas.

 

E, por fim, deixo um apelo à autorreflexão: agora que você conhece um pouco mais sobre o que acontece no Congo, sua solidariedade é de fato seletiva? Se acredita que não, vai continuar calado ou vai romper o silêncio?


 

Referências

 

MÉDECINS SANS FRONTIÈRES. “WE ARE CALLING FOR HELP” Care for victims of sexual violence in the Democratic Republic of Congo. Genebra. 2024.

MONITOR DO ORIENTE. França é cobrada a revelar lugares da Argélia onde despejou seu lixo nuclear. São Paulo. 2020.

PASHI, P. O. Poderes patrimonialistas e Tecnologias da Informação e da Comunicação na República Democrática do Congo (2018-2020): uma perspectiva ecológica. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. 2023.

RSF. Classement. Paris. 2024.

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