Por que ler livros israelenses como “Jerusalém, a cidade dos espelhos” de Amos Elon?
- Siqka
- 9 de ago. de 2024
- 4 min de leitura
Alguns defensores da causa palestina argumentam que devemos focar exclusivamente na literatura e historiografia palestinas. No entanto, isso é um equívoco. Olhar apenas em uma direção nos transforma em "cavalos com cabresto", limitando nossa compreensão e perspectiva sobre a situação geral. Acredito que é essencial ter contato com obras como a de Amos Elon para compreender melhor os argumentos utilizados e, assim, enriquecer nossos debates.

No livro “Jerusalém, a cidade dos espelhos”, Amos Elon traça um panorama abrangente da cidade mais disputada do mundo, cobrindo desde antes da Pax Romana até o final da década de 1980. Período que Jerusalém foi palco de 23 cercos, invadida 52 vezes e conquistada por figuras e impérios diversos, como o rei Davi, os babilônios, romanos, o califa Umar, cruzados, Saladino, otomanos e, por fim, o Império Britânico, que a entregou aos imigrantes judeus europeus. O autor passa também pelo pós 1947, qual a ONU propôs que a cidade fosse administrada internacionalmente por dez anos, respeitando os aspectos religiosos e garantindo liberdade de culto. Contudo, os imigrantes judeus, representando 32,95% da população, ocuparam mais território do que o previsto, incluindo boa parte de Jerusalém. O autor inclui também uma crítica ao período após a Guerra dos Seis Dias (1967), qual Israel ocupou Jerusalém Oriental, estabelecendo sua administração sobre toda a cidade.
No contexto da historiografia da Cidade Santa, Elon obviamente reivindica o direito religioso "judaico" sobre a cidade acima das reivindicações de cristãos e muçulmanos. No entanto, apesar de tentar fundamentar esse argumento na religiosidade, ele não encontra uma base substancial e, por isso, busca descredibilizar as reivindicações dos muçulmanos e cristãos. Um ponto interessante do livro é que, mesmo apoiando a alegação do direito divino sionista, o autor admite que, de acordo com os preceitos judaicos da Torá, os judeus não deveriam retornar à Cidade de Jerusalém, muito menos reconstruir o Templo de Salomão, até a chegada do Messias.
Por outro lado, do ponto de vista político, o autor adota uma abordagem mais realista, humana e conciliadora da história. Mas, para compreendê-lo melhor, vale a pena conhecer um pouco mais sobre o homem por trás da obra.
Amos Elon, nascido na Áustria, emigrou para Israel ainda criança, em 1933, durante o Mandato Britânico na Palestina. Tendo possivelmente testemunhado os pogroms que devastaram a Europa, e mais tarde, já em sua nova terra – a Palestina – viu com seus próprios olhos as atrocidades cometidas contra os europeus de fé judaica durante o Holocausto nazista, o que explica seu sentimento “nacionalista”.
No entanto, não devemos julgar o autor apenas por uma única obra. Em sua carreira jornalística, iniciada em 1950 no Haaretz, jornal do qual se aposentou, Elon escreveu artigos e livros que irritaram os sionistas mais fervorosos, especialmente após se posicionar como um dos primeiros defensores da criação de um estado palestino e da retirada dos territórios ocupados por Israel em 1967. A trajetória de vida de Amos Elon passa de um jovem sionista imaturo, por um período de ceticismo, até se tornar um crítico desse regime político, como no caso de sua obra "The Israelis: Founders and Sons". O jornalista e editor do New York Times, Ethan Bronner, descreveu o livro como "um retrato afetuoso, mas implacável, dos primeiros sionistas", afirmando em seu artigo:
“Os fundadores de Israel, argumentou Elon, falharam em reconhecer adequadamente as pessoas que viviam na terra que os sionistas vieram reivindicar. Eles embarcaram em ‘um renascimento nacional e social em sua antiga terra natal’, mas ‘estavam cegos à possibilidade de que os árabes da Palestina pudessem ter esperanças semelhantes para si mesmos’.” (Bronner, 2009)
Compreendendo a história de vida do autor, é possível entender suas alegações, críticas e defesas, o que nos permite formar nossas próprias opiniões críticas e argumentos.
“Jerusalém, a cidade dos espelhos” é um livro que merece atenção, especialmente daqueles já engajados na defesa da emancipação palestina. Embora seja um tanto caótico em sua tentativa de equilibrar nacionalismo "israelense", fé judaica e seus próprios valores éticos e morais, o autor encerra o livro com uma reflexão que coloca acima de qualquer alegação nacionalista ou religiosa, uma devoção humanista:
“Yehuda Amichai, o grande poeta da atual cidade, estava certa vez sentado nos degraus, diante do mesmo portão, com duas cestas cheias de frutas, e ouviu um guia turístico dizendo: ‘Vocês estão vendo aquele homem com as cestas? Logo à direita da cabeça dele está um arco do período romano. Logo à direita da cabeça dele’. ‘Eu disse cá comigo’, escreve Amichai, ‘que a redenção só virá se o guia disser-lhes: 'Estão vendo aquele arco do período romano? Ele não é importante. Mas ao lado dele, à esquerda e um pouco mais abaixo, está sentado um homem que comprou frutas e verduras para sua família.'" (Elon, 1992)
Referências
Bronner, E. (2009). Amos Elon, Israeli Author, Dies at 82. New York: The New York Times. Fonte: https://www.nytimes.com/2009/05/26/world/middleeast/26elon.html
Elon, Á. (1992). Jerusalém a cidade dos espelhos. São Paulo: Saraiva.