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Saúde e bem-estar, um direito inerente que Israel insiste em violar

Gravemente ferido, Adham Al-Hajjar foi levado às pressas para o hospital. Após a limpeza e o curativo da ferida, os médicos infor­maram que não possuíam os recursos necessários para tratá-lo devido à gravidade da situação.

No setor de saúde, os impactos foram profundos. À medida que as semanas avançavam, os hospitais em Gaza enfrentaram o colapso de várias unidades de saúde, sobrecarregados pelos aten­di­mentos de urgência e emergência que inundavam suas portas a cada sexta-feira. Mais de 6.000 indivíduos foram atingidos por munição real, muitos deles necessitando de internação para amputações de membros, gerando questionamentos sobre o uso de munição ex­pansiva. Esse influxo massivo de feridos sobrecarregou todos os demais tratamentos eletivos, resultando naquilo que a organização Médicos Sem Fronteiras chamou de “emergência de assistência médica em câmera lenta”.

Outra tática de crueldade empregada para agravar a crise no sistema de saúde foi o direcionamento de tiros contra socorristas. Musa Abu Hassainen, de 35 anos, vestia um colete paramédico com faixas refletivas quando foi atingido. Ele prestava assistência aos manifestantes feridos à 300 metros da linha verde. Socorrido por seus colegas, ele não resistiu ao ferimento e faleceu a caminho do hospital. Uma história semelhante ocorreu com Abed Abdullah Qotati, de 22 anos, também paramédico, que estava carregando uma maleta de primeiros socorros quando foi fatalmente atingido por munição real.

O ataque deliberado contra socorristas foi confirmado por um relatório da ONU em 2019, uma vez que todas as vítimas estavam identificadas como socorristas e não como participantes das manifestações. Nas palavras do Comissário Zeid, “enquanto exerciam seu direito de protestar, eles se aproximaram de uma cerca ou de alguma forma chamaram a atenção”.

Na Grande Marcha do Retorno, ao que tudo indica, os atiradores tinham como alvo os coletes azuis que identificavam os jornalistas e os vermelhos que indicavam os paramédicos. Para os jornalistas, o perigo estava em documentar os crimes ocorridos e divulgá-los ao mundo, enquanto para os socorristas, a ameaça residia na sua capacidade de salvar vidas que os soldados tentavam abater.

 

“Eu sou jornalista, eu tinha o direito de estar lá e trabalhar. Todo jornalista está protegido por leis internacionais. A distância não importa, tanto nós jornalistas como os paramédicos que estavam lá e também foram baleados, estávamos trabalhando quando fomos atingidos. Quem impõe a fronteira na Palestina são os israelenses. Israel sempre encontra desculpas para justificar o porquê atira em jornalistas e paramédicos.”  Adham, 2022. [30]

 

 

O sistema de saúde em Gaza, agonizava como os próprios pacientes. Adham foi deitado em uma maca, com a esperança de que uma equipe médica francesa chegasse em breve para tratar sua perna ferida. As 22 clínicas da UNRWA, responsáveis pelos servi­ços de saúde primária para cerca de 1,4 milhão de pessoas, tiveram que interromper os procedimentos eletivos para priorizar os primeiros socorros aos baleados durantes as manifestações. Essa decisão teve um impacto prolongado e prejudicial em todos os ser­viços de saúde e tratamentos médicos de outras pessoas, incluindo aquelas em tra­tamentos delicados, como câncer e hemodiálise. Incapacitadas, as clínicas não dispunham dos recursos necessá­rios para lidar com procedimentos cirúrgicos para lesões causadas por munição real, e a escassez de suprimentos médicos devido ao bloqueio israelense agravou ainda mais a situação. Após ser deitado na maca, o jornalista esperou por três longos dias até a chegada da equipe médica que lhe foi prometida.

A primeira cirurgia foi uma verdadeira maratona, com duração de oito longas horas. O jornalista passou os três meses seguintes no hospital, com sua perna imobilizada em uma posição dobrada, uma medida necessária para permitir que seus ossos colassem.

Os médicos que realizaram a cirurgia, reconheceram suas limitações, observando que nenhum hospital em Gaza dispunha dos recursos terapêuticos adequados. Após três meses, uma nova equipe assumiu o caso, argumentando que a imobilização da perna estava equivocada e que uma nova intervenção seria necessária.

Nos 45 dias seguintes, Adham permaneceu confinado à cama, com sua perna sendo gradualmente esticada por pesos suspensos para fora da maca. Essa foi uma situação angustiante e extrema­mente dolorosa.

Cada indivíduo possui o direito inalienável a um padrão de vida que assegure a saúde e o bem-estar, tanto para si quanto para sua família, direito sistematicamente violado devido ao bloqueio imposto por Israel. Além dos ataques diretos à população palestina, que levaram o já precário sistema de saúde ao colapso, Israel fre­quentemente interrompe o fornecimento de energia na região, forçando hospitais e outras infraestruturas a dependerem de gera­dores movidos a diesel importado, cuja entrada também depende da vontade do estado israelense.

Como resultado das restrições à energia e ao combustível, procedimentos cirúrgicos tiveram que ser realizados literalmente no escuro, com apagões que duravam até 12 horas por dia, impactando na capacidade dos hospitais de proporcionar cuidados de saúde adequados e essenciais.

Os inúmeros procedimentos dolorosos poderiam ter sido evitados ou ao menos aliviados se o governo israelense tivesse permitido a saída para tratamento fora do território da Faixa de Gaza de um jornalista que eles mesmos feriram. A assistência médica é um direito humanitá­rio que a força ocupante deve garantir, algo que, não ocorreu.

Em uma estratégia de punição coletiva, além de prejudicar o sistema de saúde, atacar socorristas, cortar o fornecimento de energia dos hospitais e embargar o combustível necessário para os geradores, Israel estava também impedindo que os feridos buscassem trata­mento médico em qualquer lugar que não estivesse sob seu controle.

Adham foi um entre os milhares de palestinos cujas vidas foram drasticamente alteradas pelas balas israelenses. Um caso adicional é o do fotógrafo e estudante de jornalismo Yousef Al-Kronz (19 anos), baleado nas duas pernas enquanto cobria a manifestação em 30 de março. Surpreendentemente, mesmo após o primeiro disparo que o derrubou, alguém decidiu atirar na outra perna. Yousef estava claramente identificado como um profissio­nal de imprensa, usando capacete e colete à prova de balas azul.

As organizações Adalah e Al Mezan apresentaram pedidos ao Ministério da Defesa de Israel, buscando autorização para trans­ferir Yousef para tratamento na Cisjordânia. O pedido foi negado. Após várias solicitações, a demora nas deliberações do Ministério de Israel e a piora do estado de saúde de Yousef levaram à amputação de uma de suas pernas. Somente após pressão de organizações internacionais de defesa dos direitos humanos, dois meses após a amputação, três juízes da Suprema Corte decidiram que o jornalista deveria ser autorizado a deixar Gaza para tratar sua outra perna na Cisjordânia. Yousef foi transferido para um hospital em Ramallah, onde passou por uma cirurgia que permitiu preservar sua outra perna.

 

“Eu represento apenas um caso de uma pessoa  ferida em Gaza. Ainda há muitos feridos e doentes em Gaza que necessitam de atenção médica urgente. Eu tive a sorte de sair, mas outros ainda estão lutando para chegar a hospitais que poderiam salvar suas vidas. Peço a todas as pessoas de consciência que não fiquem caladas diante do que está acontecendo em Gaza.” Yousef al-Kronz acrescentou: “Este não é apenas o meu sofrimento, é o sofrimento de todos os habitantes de Gaza que estão sendo negados seus direitos humanos básicos viver com dignidade.” Yousef al-Kronz, 2018.

Após vários meses de incansáveis esforços de organizações humanitárias e do Sindicato de Jornalistas para assegurar a transfe­rência para um tratamento médico fora de Gaza, Adham finalmente recebeu a autorização israelense. O jornalista passou por mais um pro­cedimento cirúrgico no Egito, com o plano de continuar o acompa­nhamento na Alemanha. Uma ONG internacional assumiu os custos hospitalares e os honorários, enquanto o jornalista e sua família arcaram com as despesas pessoais.

No Cairo, os ortopedistas retiraram uma parte do fêmur e o enxertaram com platina abaixo do joelho. Ao longo dos 18 meses de tratamento médico, a vítima buscou assistência financeira para o tratamento na Europa. A embaixada alemã no Egito condicionou a concessão do visto à comprovação de recursos para a estadia. Ferido e impossibilitado de trabalhar para angariar os euros neces­sários, o jornalista regressou à Faixa de Gaza sem perspectivas. Para agravar a situação, dores surgiram nas áreas da perna submetidas às intervenções.

A Autoridade Palestina, em colaboração com o Sindicato de Jornalistas, conseguiu autorização para um novo tratamento na Jordânia. No entanto, nessa fase, a movimentação de sua perna estava severamente restringida, e os esforços incansáveis de trata­mento provocaram uma deterioração óssea. A fragilidade de seus ossos chegou ao ponto de mal conseguirem sustentar seu próprio peso. Mesmo após diversas intervenções médicas, nenhuma terapia conseguiu restaurar a funcionalidade da perna ou aliviar suas dores.

Em Gaza, Adham encontrou com um jornalista britânico do The Times que compartilhara a mesma cobertura das manifestações da GMR do dia 6 de abril. O britânico questionou como um jornalista palestino poderia ter sido atacado enquanto os jornalistas estran­geiros saíram ilesos. Adham não precisou pensar muito para responder ao britânico, “você tem um governo que protege seus direitos como ser humano e como profissional de imprensa, enquanto nós sequer temos um governo para garantir nossos direitos mais básicos.” O jornalista fora atingido dentro das fronteiras definidas por Israel, enquanto documentava manifesta­ções legítimas do povo palestino. Ele não representava ameaça a nenhum israelense, a não ser por registrar e transmitir as violações de seus próprios direitos. Qualquer jornalista ferido durante execução do trabalho, especialmente quando identificado, estaria protegido por leis internacionais, infelizmente, por ser um palestino, Adham Al-Hajjar não teve essa proteção.

 

“Minha vida é Gaza. É quando eu pego minha xícara de café e me sento para olhar o mar. Esse é o único momento em que a dor diminui um pouco. Durante o tempo que passei fora, me senti como uma cobaia em experiências médicas. Cheguei a discutir com os médicos, dizendo várias vezes: 'Se vocês não podem me ajudar, pelo menos me deixem voltar para casa.’”Adham, 2022. [30]

 

Estamos agora em 2023, e a agonia da espera persiste. Independentemente da sua origem palestina, religião ou qualquer outra característica, Adham é, acima de tudo, um ser humano dotado de direitos inalienáveis e indivisíveis. Consequentemente, é merecedor do respeito e proteção desses direitos, sem a necessidade de suplicar por eles, inclusive no que diz respeito ao acesso a serviços sociais essenciais.

Ao impedir a divulgação das mensagens registradas por esse jornalista, o governo sionista transgrediu vários dos seus direitos mais fundamentais. Essa violação persiste toda vez que lhe é negado o direito à saúde, uma prerrogativa mínima que o Estado de Israel, como força ocupante, deve assegurar aos palestinos em Gaza para garantir um padrão de vida digno. O sofrimento de Adham é emblemático da contínua negação de direitos básicos a toda uma comunidade, perpetuando uma realidade dolorosa e injusta que perdura no tempo.

 

“Nós, palestinos, lutamos pelo mínimo dos nossos direitos. Sabemos que é impossível conquistar todos, então lutamos pelo mínimo possível.” Adham, 2022. [30]


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