De Ramallah a Jerusalém: o desafio diário dos checkpoints e zumbis de Israel
Jesus disse: “Mas, quando virdes Jerusalém cercada de exércitos, sabei então que é chegada a sua desolação.” Lucas 21:20
Soldados circulam por todos os lados, meninos e meninas cheios de si, como se fossem os últimos defensores da pátria. Eles passam por nós desconfiados, se distanciam, mas os cães os trazem de volta, deve ser por causa dos pacotes de zatar[1] e sálvia[2] que estamos carregando, ou quem sabe nos acham parecidos com os palestinos. Enquanto aguardamos o horário de embarcar de volta para casa sentados aqui no aeroporto, escrevo sobre surreal dia que enfrentamos. É melhor escrever agora, deixar para depois minimizaria a raiva que estamos sentindo.
Sendo nosso voo às 4h, saímos de Ramallah com 12 horas de antecedência. É doentio ter que sair todo esse tempo com antecedência para atravessar menos de 70 km. Para chegar ao aeroporto teríamos que ir para Ramallah e pegar um ônibus com destino a Jerusalém e de lá um trem para Tel Aviv. Passando pela capital administrativa palestina, compramos mais uma mala para colocar as encomendas do Jehad. Viajar no frio é bom, mas carregar 4 malas, uma bolsa e duas mochilas é um “saco”. Nossa família adotiva nos levou até o estacionamento das vans. Abu Khaled saiu perguntando sobre o transporte para Jerusalém; um dos motoristas disse que não teria mais carros e teríamos que ir até Qalandiya e atravessar pelo checkpoint até o lado israelense. Sem problemas, tínhamos tempo e estamos acostumados com essas mudanças de planos; só não estávamos a fim de ficar cara a cara com os soldados sionistas, mas tudo bem.
Toda vez que nos despedimos de alguém que gostamos sabendo que não nos veremos mais, ao menos não tão cedo, é mesmo complicado. Nos últimos dias essa família nos acolheu e fez de tudo por nós, nos sentimos realmente como membros de um clã palestino, dificultando ainda mais o momento de dar tchau. Nos abraçamos, trocamos as últimas palavras. Ayman, gentil como sempre, me passou a última lição de português/árabe ali mesmo. Abu Khaled e Ruayda aproveitaram para fazer as últimas recomendações quanto ao trajeto e nos despedimos à maneira típica palestina, curto e grosso, porém transbordando carinho. Nunca, “nunca esqueceremos de tudo que fizeram por nós”, foram nossas últimas palavras antes de subir no táxi.
Em Qalandiya o motorista nos apontou para o checkpoint, descarregamos as malas, iria começar o inferno. Pelo lado de fora, a barreira sionista parece com um abatedouro de gado, de fato é! Estava vazio, caminhamos pelos corredores externos. Sabe aquelas filas intermináveis de aeroporto que você fica andando em zig-zag por entre fitas? Usando sua imaginação, substitua as fitas por paredes de ferro com grade como cobertura. Ainda para ser mais cruel, aqueles intermináveis corredores que milhares de palestinos precisam passar ao menos duas vezes por dia, ficam do lado externo. A engenharia sionista é tão cruel que não bastava construir aquela monstruosidade, eles colocaram grades na parte do teto, assim, enquanto esperam nas filas do abate, os palestinos enfrentam o frio, a chuva, ou o intenso sol de verão do Oriente Médio.
Ao tratar os palestinos como animais, os próprios sionistas se transformam na pior, mais cruel e selvagem de todas as espécies.
Na parte interna passamos pela primeira verificação com os soldados. Fui colocando as malas no raio X enquanto a Di passava pelo detector de metais. Pi pi pi. Aquela merda apitou, foi então que a primeira besta selvagem começou a bater no vidro e gritar em hebraico. Se não falamos nem inglês, quem dirá hebraico. Começamos a responder em português. Uma observação: costumamos aprender pelo menos as palavras correspondentes à boa educação em cada país que visitamos; obrigado, com licença e por aí vai; mas como ali os soldados são tão estrangeiros como nós, não existia a necessidade de aprender nada. A soldada, uns vinte anos de puro ódio, ficou irritadíssima. Outro rapaz, também de uns vinte e poucos anos, apareceu para dar apoio para menina. Ele falava em inglês, mas como nós não falamos bem e não estávamos nem um pouco dispostos a sermos simpáticos, bati o passaporte no vidro e respondi um alto e claro “no speak english”. A fila foi se formando atrás de nós, a essa altura uns 5 palestinos tentavam nos ajudar com as malas pelo raio X e o inferno daquele detector de metais que não parava de apitar.
Com muito custo, depois de umas trezentas tentativas, a Di conseguiu passar. Na minha vez eu já tinha tirado tudo dos bolsos, os casacos, a bota, a touca, tudo que podia; passei sem apitar.
Em um corredor longo, chegamos às portas giratórias. Passamos por umas três. A Di ia à frente e uma a uma eu passava as malas e mochilas. Profundamente irritado, minha vontade era de largar aquele monte de mala ali mesmo. Essas portas não são como as dos bancos, elas são roletas de ferro do chão ao teto, e também muito espremidas. Soldados em outra guarita a frente se divertiam em nos ver passando pela última catraca, o que me irritava ainda mais. Quando íamos girar a última roleta entre nós e Jerusalém, outra israelense, ainda mais insana que a primeira começou a gritar com a Di. Estressada com a abordagem, a Di seguiu o plano de só falar português. A menina espumava pela boca enquanto socava o vidro. Por um buraco na cabine passamos os passaportes. Enquanto a menina gritava em hebraico como se o volume da voz fosse nos fazer compreender o idioma, a Di comentou que parecia o zumbi que tenta quebrar o vidro com a cabeça no filme “Eu sou a lenda”, realmente parecia. Como na guarita anterior, saiu outro soldado com um fuzil na mão, ele me perguntou em inglês o que estávamos fazendo em Qalandiya. Não vou nem comentar o que pensei em responder, disse em português “no Qalandiya, Jerusalém, Je–ru–sa–lém”. Enquanto a zumbi continuava a bater a cabeça no vidro, com outras amigas que se juntaram a ela para assistir o circo, o soldado fez perguntas, as quais algumas eu não entendi e outras ignorei, só respondia, e em português, “i´m Brazil, no speak english, you speak portuguese?” Ele insistiu e perguntou se conhecíamos alguém na Palestina. Eu queria muito responder que sim, conhecíamos pessoas, seres humanos maravilhosos, educados, amáveis, carinhosos e gentis, tudo que os israelenses não são, mas não podia. Se passássemos por uma revista, encontrariam em nossas malas muitas coisas árabes e turcas, e de alguma maneira poderiam chegar a Ruayda e Abu Khaled; se abrissem minha lista de contatos no whatsapp seria ainda pior; portanto, obviamente, neguei conhecer pessoas na Palestina!
Com muita dificuldade passamos. Por estarmos na Palestina, aqueles jovens queriam tentar de alguma maneira nos atrasar, eles sabiam que se estávamos ali, naquele checkpoint é porque somos simpáticos a luta de emancipação palestina. Liberados pela roleta saímos sem olhar para trás, só ouvíamos ao longe os gritos dos zumbis. De certa forma os soldados são mesmo zumbis, e o sistema de educação israelense faz de tudo para que isso se torne possível. Nurit Peled-Elhanan, professora de língua e educação na Universidade Hebraica de Jerusalém, após ter a filha assassinada em um atentado suicida, iniciou uma pesquisa científica sobre a ideologia e a propaganda usada nos livros didáticos israelenses. O resultado da pesquisa apontou que a educação e os materiais didáticos são ferramentas utilizadas para alienar os jovens que em poucos anos estarão fardados e com um fuzil apontado para os palestinos.
Nas escolas israelenses as crianças passam por todos os anos escolares sem ver uma única fotografia de uma pessoa palestina nos livros que estudam. Geralmente quando retratados, os palestinos são representados por ilustrações infantis de árabes do século XIX, como se todo palestino fizesse parte de uma comunidade internacional árabe que compartilha dos mesmos hábitos e culturas; essa estratégia visa o argumento de que os palestinos podem se mudar para qualquer país árabe. Outras vezes, ao se falar dos Territórios Palestinos Ocupados, as áreas da Cisjordânia, como Hebron, permanecem vazias e sem informações sobre quem habita ou o que há no local, um “espaço em branco pronto para ser habitado”.
Essas “categorias de discurso racista” tentam apagar a existência das pessoas nativas, transformando-as no “problema palestino”. Os livros didáticos israelenses objetivam desumanizar os palestinos, deturpar as incursões de limpeza étnica, glorificar os heróis da causa sionista e, acima de tudo, criar zumbis alienados e cheios de sede de sangue.
Andando pelo último corredor, dessa vez muito escuro, mal iluminado, sem nenhuma sinalização e as moscas, chegamos a uma bifurcação. “Fudeu”! – e agora? Como não tinha um único palestino para seguir, escolhemos o caminho da direita. Caminhamos um pouco e quando vimos, estávamos na frente do matadouro novamente, agora pior, não tinha como voltar. Teríamos que fazer o trajeto da morte tudo de novo. No fundo eu sabia que a direita sempre é o caminho de merda que nos faz andar para trás.
Com mais fúria, e agora com muito mais motivos, passamos novamente pelos percursos: labirinto externo de ferro; porta giratória; porta giratória; porta giratória; raio X; detector de metais; soldados furiosos; porta giratória; porta giratória; porta giratória; guarita dos zumbis. Quando a zumbi viu a Di novamente ali, ela ficou ensandecida – eu nem sabia que era possível um zumbi passar de nível, agora sei. A menina só faltava enfiar a cabeça pelo buraco da guarita para morder. Estávamos realmente muito irados, e tínhamos motivos para isso, era exatamente o que a menina queria ver. Falei para Di, vamos rir e mostrar que não temos medo, embora tivéssemos, afinal, eram jovens sem nenhum bom senso e com um fuzil enorme. Começamos a rir e passar as malas, como dois turistas burros ao estilo “Debi & Loide”. Passando do nível “hard”, a menina se levantou para bater no vidro e olhar para Di, ainda mais provocante, além de rir, a Di não olhou para ela uma única vez, como se ela não estivesse ali dando aquele show. O soldado novamente nos deixou passar, embora a menina discordasse, com os cabelos já bagunçados ela gritava e espumava com o soldado. Passamos, quando olhei para trás, “puta que pariu, esquecemos uma mala”. “Caralho, merda”, recitando todos os palavrões que conhecia, pensei “vou ter que dar a volta tudo de novo”, mais que “porra!”.
A fim de se livrar logo de nós, e fazer aquela menina calar a boca e parar de gritar, o soldado saiu da guarita e foi buscar a última mala. Dessa vez, o ódio da zumbi se voltou para seu companheiro, ela tentou agarrar seu braço no intuito de impedi-lo de ir buscar a mala. Ela queria um motivo para nos dar um tiro, e uma mala para trás pode ser justificado como “sinal de bomba”, aí eles atiram mesmo, já fizeram antes, e se não fosse gringos, teriam feito novamente. O soldado pegou a mala, me entregou e apontou para a esquerda, por uma passarela escura.
Agora falta pouco para chegar em casa, porém, como você mesmo “leitor” já se cansou de nos ver escrever aqui, andar pela Palestina demanda da vontade dos soldados israelenses, por isso saímos quase 12 horas antes, para atravessar um caminho de 60 km de puro ódio. Os soldados tentaram de todas as maneiras nos atrasar, embora uns ou outros tentassem nos morder eu espalhar nossos miolos pelo chão com um tiro. No fim das contas, cá estamos, já fizemos o check-in e agora aguardamos para voltar para casa. Mas parece que essa odisseia não acaba. Aqui mesmo no aeroporto, já respondemos mais algumas perguntas idiotas, como: foram vocês que arrumaram as próprias malas? Estão juntos? Quanto tempo vocês estão casados? Possuem algum explosivo? – Fico com a língua coçando com todas essas baboseiras. Agora é hora de voltar para nossas vidas e continuar lutando contra esse sistema que oprime por um lado e por outro cria zumbis e os alimenta com o mais puro ódio; o resultado disso, são massacres como o do campo de refugiados de Jenin.
Naturalmente os soldados israelenses, assim como o jovem que cometeu o atentado em Jerusalém foram jogados para essa situação ocasionada por um regime de apartheid que propaga cada vez mais o racismo. Assim como nem todos os palestinos acreditam na luta por meio de armas, alguns soldados israelenses também não estão dispostos a agredir e violar os direitos palestinos. Em Israel alguns ex-soldados das forças de ocupação entenderam como e o que é o sionismo. Após o serviço militar obrigatório, arrependidos de suas próprias contribuições, os jovens fundaram a organização Breaking the Silence, a qual se dedica a palestrar nos territórios ocupados para outros jovens soldados, e também participam de manifestações a favor da Palestina.
Como essa organização é israelense, judaica e de ex-militares, estava moldando a opinião pública e denunciando os crimes e violações, o Estado de Israel resolveu classificá-los também como organização terrorista. Claro, para qualquer regime autoritário, “se você não está conosco, está contra nós!”
Apesar das tentativas de silenciamento e repressão por parte do Estado de Israel, organizações como a Breaking the Silence continuam a desafiar a narrativa oficial e a lutar pelos direitos humanos e pela justiça na Palestina. Esses veteranos, ao reconhecerem os horrores da ocupação e do sionismo, estão contribuindo significativamente para conscientizar outros jovens israelenses sobre a realidade da vida na Palestina e os abusos cometidos pelo Estado de Israel.
A trajetória desses militares que se tornaram ativistas é um exemplo poderoso de como é possível questionar e desafiar sistemas de opressão, mesmo quando se faz parte deles. Suas vozes são essenciais na luta contra a desumanização dos palestinos e na promoção de uma paz verdadeira e duradoura na região.
À medida que mais pessoas em Israel e ao redor do mundo se conscientizam sobre a situação na Palestina e se engajam em ações de solidariedade e defesa dos direitos humanos, há esperança de que um dia a injustiça e a opressão sejam superadas e que todas as pessoas na região possam viver em paz e dignidade.
[1] Mistura de especiarias usada como condimento e originária do Oriente Médio, marcante na culinária levantina-árabe.
[2] Nativa da região Mediterrânica e cultivada como erva aromática e medicinal ou como planta ornamental. Também utilizada para chá.