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Foto do escritorLuiz Fernando Padulla

Todo dia é dia de Halloween

Estamos no final de outubro. Em alguns países no dia 31 comemora-se o Dia das Bruxas ou Halloween. Tradição de origem pagã, com os celtas, há mais de 3000 anos, que remete ao festival Samhain (o Ano Novo deles), dedicado a colheita e aos mortos.

Neste dia, os celtas (cuja existência se deu principalmente na Europa Central e Ocidental, chegando até a Irlanda e Grã-Bretanha), acreditavam que havia uma aproximação entre o mundo dos vivos e dos mortos que retornariam a Terra e, para afastar os maus espíritos, realizavam rituais que incluíam acender fogueiras e usar máscaras para que tais espíritos malignos não os reconhecessem. Além disso, os celtas esculpiam nabos com rostos macabros para afastar os maus espíritos.

Com a ascensão do cristianismo pela Europa, a Igreja Católica utiliza de estratégia de usurpar a cultura pagã a fim de torná-la cristã – e não foi a única vez. Assim, já no período medieval, acredita-se que o próprio nome Halloween tenha derivado da contração da expressão "All Hallows' Eve" (cuja tradução é “véspera do Dia de Todos os Santos", data adotada pelos católicos para honrar seus santos e mártires). E assim a estelionatária e sanguinária igreja, que sempre condenou, perseguiu e assassinou “bruxas”, “feiticeiras” e “hereges” durante a Inquisição, incorpora tradições pagãs para conquistar a atenção e novos adeptos.

Nos Estados Unidos, o Halloween chega por volta de 1840, trazido por imigrantes irlandeses e escoceses, popularizando-se a cada novo ano a ponto de ser hoje o maior feriado não cristão. Assim, apropriam-se da tradição celta, trocando as doações que os celtas passavam recolhendo para a festa pagã por doces industrializados; roupas, fantasias e decorações das casas comercializadas e que concorrem a premiações, e até mesmo os nabos que foram substituídos por abóboras. Em se tratando do antro do capitalismo, nos Estados Unidos, esse dia só perde em lucro para o dia de Natal.

No Brasil, infelizmente, esquecemos de nossa rica cultura do Folclore, pouco lembrada e comemorada no dia 22 de agosto e importamos o Halloween, já com a deturpação anglo-saxônica, principalmente pela popularização dos filmes de terror hollywoodianos.

Apesar de gostar da história e não aprovar e esse tipo de apagamento cultural que fazemos ao ignorar nossas datas e nossas raízes, não é isso que quero trazer neste breve artigo. Quero falar sobre o medo. Mais especificamente, sobre a atração pelo medo que temos, o que inclui esse tipo de celebração.

Recentemente a pesquisadora e psicóloga Sarah Kollat escreveu um artigo para o portal “The Conversation” abordando questões da neurociência que explicariam a atração que as pessoas pelo medo. Afinal, qual a motivação pela busca de entretenimento por monstros, assassinatos em série, tiroteios em escolas, guerras e tantas atrocidades? Além disso, por que escolher esse tipo de diversão fabricada quando o mundo oferece doses diárias e cruéis de terror real?

Para a psicóloga, a explicação estaria na teoria de que as emoções evoluíram como uma experiência universal entre os humanos, pois nos ajudam a sobreviver. Criar o medo em vidas que, de outra forma, são seguras pode ser agradável – e é uma maneira de as pessoas praticarem e se prepararem para perigos reais.

Lendo seu artigo, me atrevi a ir além e cheguei a algumas considerações. Talvez por isso que há hoje uma banalização da crueldade do que se passa no genocídio em curso na Palestina ou ainda a insensibilidade das milhares de mortes que ocorrem no Sudão e na República Democrática do Congo (nestes casos, poucos sequer sabem o que está acontecendo lá).

Corpos desmembrados, mutilados, mortes pela fome e assassinatos diários que aumentam a cada dia os números que parecem pouco importam. Mas não são apenas números. Cada nova morte era uma pessoa... assim como você e eu. Uma mãe, um pai, um filho, uma filha, um avô, uma avó... alguém que poderia ser essa pessoa ao seu lado.


Mahmoud Hamda. Gaza, Palestina


Só na Palestina já são mais de 42 mil pessoas que tiveram suas vidas exterminadas pelas bombas estadunidenses, alemãs e britânicas lançadas por “Israel”, e destas, cerca de 20 mil eram crianças.

E no Sudão nem se fala nada, apesar de já ter forçado a saída de mais de 11 milhões de pessoas de suas casas, a maior crise de deslocamento forçado do mundo. Mortes de crianças sudanesas nem ao menos são computadas. Por que não importam? E o que se sabe das vítimas do imperialismo colonialista também atuante na República Democrática do Congo?

Nesses lugares o medo é diário.

Diz a neurociência que o medo pode ser prazeroso, justamente porque esse tipo de medo-entretenimento é controlado: você pode desligar o filme ou fechar seu livro a qualquer momento e aquela sensação física se esvai sem risco real.

Biologicamente, a resposta ao terror é explicada pela liberação de neurotransmissores e hormônios que alteram sua fisiologia preparando seu corpo para a defesa: acelera o coração, dilata-se a pupila, eleva-se a pressão arterial. Mas depois, tudo passa e voltamos a normalidade que nossa casa permite. O perigo não era real. E premiando essa experiência, vem uma dose de prazer e alívio desencadeada por outro hormônio chamado dopamina.

Para a ciência, após experiência de medo controlado, o corpo reage para acalmá-lo. Paralelamente, passar por experiências intensas de medo com outras pessoas fortalece os laços entre os indivíduos, criando conexões socioemocionais desencadeadas por outro hormônio chamado ocitocina.

O que lamento é que seja na Palestina, seja no Sudão, no Congo ou em tantos outros lugares em que o medo não é controlado, dificilmente as pessoas poderão ter um minuto de calmaria. Menos ainda terão a oportunidade de fortalecer laços entre seus entes queridos, assassinados de forma real e cruel. E mesmo que consigam sobreviver, nem sempre esses hormônios serão produzidos de forma correta, pois dependem de condições mínimas como alimentação adequada – e a fome, imposta pelos regimes criminosos, é fato igualmente real.

Pesquisadores do Laboratório de Medo Recreativo da Universidade de Aarhus, na Dinamarca, demonstraram em um estudo que pessoas que consumiam regularmente mídia de terror eram mais resilientes psicologicamente durante os anos da pandemia da Covi-19 quando comparados aos que não eram fãs de terror.

Resiliência é a capacidade de se recobrar facilmente ou se adaptar à má sorte ou às mudanças. Ou ainda, vencer problemas com mais tranquilidade, passando por eles com leveza e sabedNoria. Confesso ter certo ranço desta palavra que caiu no gosto de canalhas e sua filosofia de coaching. Mas talvez seja esse o segredo e a força sobre-humana que palestinos, sudaneses, congoleses e tantos outros povos oprimidos e marginalizados encontram para seguir existindo... e resistindo. Mas, ao contrário da definição, sem qualquer tipo de leveza ou tranquilidade.


© UNICEFJospin Benekire A young boy sits in a displaced persons site in Goma, North Kivu province, DR Congo.


Nesses locais, o Halloween não foi importado e não é uma fantasia. Ele foi imposto. Ele é real e diário. Ele mata direta e indiretamente. O medo não é uma opção que pode ser desligado a qualquer momento. O sangue que escorre das vítimas é real.

O nosso desejo e nossa luta é para que isso acabe, e que tenham suas famílias e casas para poderem usufruir de eternas doses de dopamina e ocitocina. E, tal como na maioria do Ocidente, que as doses de adrenalina e cortisol, sejam liberadas de forma controlada apenas para sua diversão.

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