Éfeso, um jardim para todas as mulheres na Turquia
A mãe de Jesus é a mulher mais venerada da história da humanidade, e não só para o cristianismo. Assim como os cristãos, os muçulmanos também acreditam em Jesus; e claro, em sua mãe Maria, principalmente considerando que o Alcorão fala mais sobre Maria do que a Bíblia cristã. No Alcorão, a posição elevada de Maria se deve ao fato de ter sido a única pessoa que recebeu a revelação do anjo Jibril (Gabriel) sem ter sido profeta. Tanto o livro sagrado do Islamismo, quanto o próprio profeta Muhammad ensinam que a mãe de Jesus foi um exemplo de vida e é digna do respeito e da admiração de todos os muçulmanos.
Sendo cristãos ou muçulmanos, muito sabemos sobre a história de Maria, mas você já parou para pensar o que aconteceu com ela depois da crucificação de seu filho? Você sabia que em Éfeso, aqui na Turquia, está a casa onde acompanhada do apóstolo João, ela – segundo a versão de alguns historiadores e teólogos – passou os seus últimos dias e que aqui foi fundada uma igreja em seu nome?
“Ó Maria, Allah te anuncia o Seu Verbo, cujo nome será o Messias, Jesus, filho de Maria, nobre neste mundo e no outro, e que se contará entre os próximos de Allah.” (Alcorão 3:45)
“Ó Maria, Allah te elegeu e te purificou, e te preferiu a todas as mulheres da humanidade!” (Alcorão 3:42)
Antes das 8 horas da manhã já estávamos na estação de trem em Basmane – próximo ao Konak Saray Hotel – para embarcar para Selçuk; de lá, caminharíamos até Éfeso, uma das cidades mais importantes da antiguidade.
Éfeso, tem uma história muito extensa. Estudos levam a crer que a cidade foi construída há 12 mil anos, prosperando durante a era grega clássica (século V à IV a.C.) tornando-se potência durante o período romano (entre 27 a.C. e 395 d.C.). É impossível resumir a história e a importância dessa cidade. Portanto, decidimos nos concentrar em duas personalidades centrais.
A cidade de Éfeso começou a ficar famosa por conta do templo dedicado à deusa Ártemis, construído por volta de 550 a.C., deusa da caça, da fertilidade, dos animais, da lua e da maternidade, conhecida pelos romanos como Diana – coincidência? Segundo a mitologia grega, Ártemis, gêmea de Apolo, nasceu primeiro e ajudou sua mãe com o parto do irmão. Seu culto se tornou tão popular que em certos lugares passou a ser mais importante do que outros deuses olímpicos. Na Ilíada, a guerra de Tróia narrada pelo poeta Homero, a deusa é retratada como defensora da cidade. Embora Tróia seja considerada mitológica, a arqueologia apontou diversos indícios de sua existência no território contemporâneo da Turquia. Em Éfeso o culto à deusa Ártemis ajudou a cidade a prosperar economicamente. Ártemis – ou Diana – é uma deusa também ligada à pureza e autonomia, pois pediu a seu pai Zeus que a mantivesse eternamente virgem. Neste contexto a castidade representa o empoderamento feminino e a insubmissão ao sexo masculino; tanto que quando um caçador tentou abusar de sua pureza, ela o transformou em cervo para que pudesse ser caçado por seus amigos.
Outra personalidade que marcou a história de Éfeso é, como eu disse antes, Maria. A mãe de Jesus viveu a nove quilômetros do principal templo dedicado a Ártemis. Estávamos muito ansiosos para ver a Casa de Maria com nossos próprios olhos. Segundo o cristianismo oriental, após a crucificação de Jesus, Maria veio morar em Éfeso. A casa que João construiu para a mãe de Jesus se tornou uma lenda, até que no início do século XIX a freira agostiniana alemã Ana Catarina Emmerich, alegou ter visões e epifanias sobre a história de Jesus e sua mãe.
Em 1881 o abade francês Julien Gouyet descobriu um pequeno edifício em uma montanha com vista para o mar Egeu e para as ruínas de Éfeso. Gouyet acreditava ser a casa descrita pela irmã Emmerich. O Vaticano nunca se pronunciou sobre a autenticidade da Casa de Maria; todavia, o Papa Leão XIII, em 1896, fez uma primeira peregrinação ao local, seguido pelo Papa Pio XII que elevou a casa ao status de local sagrado. Ao longo dos anos, outros papas visitaram a Casa de Maria, dentre eles, João Paulo II em 1979 e Bento XVI em 2006.
Infelizmente, devido à distância entre um ponto e outro, e ao tamanho do complexo de Éfeso, não conseguimos chegar até a Casa de Maria a tempo; tivemos que nos contentar com a visita ao Meryem Kilisesi, uma igreja do século II d.C. construída para servir aos concílios – célebres reuniões decisórias do alto clero cristão. No Concílio de Éfeso duzentos abades discutiram a respeito da natureza divina de Jesus e a castidade de Maria. Ao final da reunião foi afirmado que Jesus era filho de Deus e a Virgem Maria receberia o título de Teótoco, isto é, mãe de Deus.
O concílio de Éfeso nomeou Maria como “Mãe de Deus”, mas, o islã preservou uma narrativa um pouco diferente. Conta-se que quando a mãe de Jesus começou a sentir as dores do parto, se retirou para um lugar isolado, se agarrando em uma tamareira ela orou para que Deus a aliviasse da dor. Allah a consolou, colocando um riacho sobre seus pés e fazendo cair tâmaras frescas para que ela pudesse beber e comer. Quando voltou ao povoado, já com o bebê nos braços, foi questionada sobre o pai da criança. Maria respondeu que eles deveriam perguntar ao bebê. Foi então que o primeiro milagre de Jesus foi protagonizado e Deus permitiu que ele falasse:
“Ele lhes disse: Sou o servo de Allah, o qual me concedeu o Livro e me designou como profeta.” (Alcorão 19:30)
Quanto à assunção de Maria não existe nenhuma fonte islâmica que ateste ou refute a crença popular cristã, tampouco há descrição sobre sua morte. No entanto a Igreja do Sepulcro de Santa Maria, administrada pela Igreja Ortodoxa Grega, em Jerusalém, possui um local para que os peregrinos muçulmanos possam fazer as suas orações.
A viagem até Éfeso foi completamente diferente do que tínhamos planejado, mas como não existe bússola em nossas viagens, deixamos o vento nos guiar. Sem ver o templo de Ártemis – o qual atualmente se resume a uma única pilastra de pé – nem a Casa de Maria, passamos o dia com a sensação de perder dois locais símbolos das raízes do feminismo. No entanto, assim que chegamos em Izmir, descemos para jantar com os amigos sírios, mencionados em “Democracia, um colete salva-vidas”. Percebi uma linda mulher vindo com seu filho, olhei para ela meio de canto para não a constranger, para minha surpresa, ela me olhava também. Ela sorriu e disfarçou, sorri de volta.
O marido que a acompanhava puxou assunto com o Lucas que conversava com nossos amigos sírios. Mais à vontade, a mulher me perguntou sobre minha tatuagem de Allah. Quando percebi, outro casal – com outro lindo menino – se juntou a nós; por coincidência, palestinos de Gaza que têm amigos em comum com Lucas. A bagunça idiomática que fizemos conversando fez a rua parar e sorrir por alguns instantes. Entre inglês, português, turco, árabe, tudo muito precário e acompanhado de boas mímicas e jogos de adivinhação, acabamos nos entendendo. Aquela sensação de perder um pouco de Ártemis e Maria logo se calou, pois acabamos conhecendo duas mulheres, mães assim como eu, uma de cada extremo do planeta. No fim, seguimos nossos caminhos com a certeza de que a vida é um mistério glorioso; em momentos de sintonia como esses, tenho a certeza de que o universo feminino transcende o idioma, as fronteiras e o tempo. Maria e Ártemis certamente estavam entre nós; o passeio estava completo.