Yaba
Eu nasci na cidade de Ma´an. Sou palestina, porém, nascida em um campo de refugiados na Jordânia, pouco tempo depois de meu pai levar minha mãe e meus irmãos para lá. Foi meu pai quem escolheu meu nome. Em árabe, Faysa tem um significado parecido com “aquela que se comunica”, algo que caberia bem em minha personalidade; mas a verdade é que yaba passava horas ouvindo pelo velho rádio uma cantora egípcia chamada Faysa Ahmed. Por vezes assisti ao meu pai cantarolando com o ouvido colado no rádio “a rainha dos amores, minha adorável mãe, você é mais preciosa que minha alma e meu sangue” e seguia ele de olhos fechados e levantando as notas do refrão “você sente minha felicidade muito cedo, e você sente minha tristeza antes mesmo que eu sinta.” Yaba cantava com o rádio, aquele hino em homenagem às mães, como se de alguma forma sua mãe pudesse ouvi-lo do outro lado do rio.
Yaba cruzou a ponte Al-Karameh antes mesmo de ela ganhar esse nome. Os israelenses, assim como os britânicos antes deles, chamavam a única ligação entre a Palestina e a Jordânia, de Ponte Allenby. Para os jordanianos, era conhecida como Ponte Rei Hussein. No entanto, desde 1968, todos os palestinos, com orgulho, passaram a se referir a ela como Ponte Al-Karameh – mas isso abordaremos mais adiante. O ponto é que, após a Nakba, Yaba precisou deixar sua família para trás e cruzar a ponte sozinho, na tentativa de oferecer alguma chance de sobrevivência, já que a Palestina que conhecera estava despedaçada e a metade que sobrou ardia em chamas.
Os britânicos oficialmente deixaram a Palestina em 14 de maio de 1948, após terem testemunhado de perto a expulsão e o massacre de palestinos pelos sionistas, a quem eles ajudaram a se estabelecer em nossa terra. Logo após a partida dos britânicos, David Ben-Gurion proclamou a independência do Estado de Israel, sobre os escombros e cadáveres palestinos. No norte da Palestina, os deslocados foram forçados a seguir para o sul do Líbano ou atravessar a fronteira para a Síria. Os que viviam na costa mediterrânea foram empurrados para a área próxima à fronteira com o Egito, que se tornou a maior prisão ao ar livre do mundo, conhecida como Faixa de Gaza. Já os habitantes da região central, como minha família, foram empurrados em direção à Jordânia. A única coisa que restou da vida que yaba havia cultivado com meu avô foi a chave da casa. No entanto, Ben-Gurion determinou a destruição completa das pequenas cidades capturadas para que não houvesse para onde os palestinos pudessem retornar. Al 'Abbasiyya foi uma delas. Assim, a chave que meu avô enterrava cada vez mais fundo em seu bolso se tornou apenas um símbolo de uma esperança distante.
Durante a primeira marcha forçada, Yaba conduziu toda a família em direção ao leste. Em Ramallah, meu pai e meu avô se mantinham atentos a qualquer notícia, constantemente ligados aos rádios e jornais, ou buscando informações de outras formas possíveis. As aglomerações em frente aos escritórios improvisados da ONU e da Cruz Vermelha, onde se distribuía farinha, tornaram-se os melhores pontos de encontro para obter informações. Os postos de atendimento médico também se tornaram a última esperança para aqueles que procuravam por familiares desaparecidos. Minha mãe conseguiu reencontrar seus pais e suas irmãs. Embora as famílias estivessem divididas em diversos campos de refugiados improvisados pelo país, quase todos sobreviveram, com exceção dos mais idosos. Pelo pouco que sei sobre meus bisavós, eles foram as primeiras vítimas fatais da Nakba.
Diante desse caos, yaba assumiu a responsabilidade de proteger os próprios pais, suas irmãs, minha mãe e seu bebê. Convencido de que a segurança em Ramallah era insuficiente, ele decidiu que a melhor opção, mesmo que temporária, era prolongar a marcha e seguir até Jericó. Acreditava que Jericó ofereceria um refúgio mais seguro e, caso a situação se agravasse, estariam mais próximos da fronteira com a Jordânia, facilitando uma possível fuga.
Em Jericó, a responsabilidade de prover para sua família pesava sobre os ombros de yaba. Ele sentia o peso de depender dos sacos de farinha que a comunidade internacional chamava de ajuda humanitária para aliviar o peso na consciência de terem sido responsáveis da catástrofe que despejaram sobre nós. Ele, que antes prosperava comercializando as laranjas, limões e outros frutos que cultivava com meu avô em suas terras, viu-se obrigado a aceitar qualquer trabalho que lhe garantisse alguns dinares para levar para casa, o que não era fácil em uma cidade superlotada com refugiados sem emprego.
Minha mãe começou a bordar e costurar para ajudar meu pai, não que ela não soubesse, afinal o bordado palestino é uma herança cultural, mas ela nunca precisou fazer em troca de dinheiro. Mesmo com minha mãe ajudando com algumas costuras, não era suficiente e como quase todas as outras mulheres refugiadas estavam fazendo o mesmo, não tinha demanda para toda aquela oferta. Isso foi incomodando yaba profundamente.
Quando pediu a mão de minha mãe em casamento, ele nunca imaginou que ela precisaria trabalhar por aqueles poucos dinares. Toda vez que minha mãe colocava um bracelete de ouro adornado com medalhas palestinas ela lembrava que havia sido o primeiro presente de meu pai, antes mesmo de saber se o casamento seria ou não firmado pelas famílias. Acredito que ele tenha endurecido por ter sido impedido de dar a vida que prometeu para minha mãe quando se casaram. Ele nunca tocou no assunto e eu nunca precisei perguntar para saber que aquela angústia havia forjado a rigidez que eu conhecia.
Os dias como refugiados se arrastaram até se transformarem em meses. Yaba começou a tomar consciência de que Jericó não era o melhor lugar para reconstruir uma vida. Do alto dos morros escarpados, passou a olhar cada vez mais para as terras que se viam na outra margem do Jordão. Ele sabia que por mais difícil que fosse, aquele era um horizonte que só seria alcançado quando seus pés dessem o primeiro passo.
Foi uma das decisões mais difíceis que meu pai tomou na vida. Atravessar o rio não era apenas deixar para trás os pais, as irmãs e principalmente esposa e filhos, mas abdicar do que tivera e de quem ele próprio foi no passado. Yaba nunca deixou de ser um bom pai, marido, irmão e filho, mas as dificuldades que enfrentou o transformaram de uma forma que durante minha juventude era difícil compreender. Queria ter compreendido bem antes o quanto ele lutou por nós e o quanto lutou contra sua própria cultura para que eu pudesse fazer minhas próprias escolhas.
Yaba foi mais do que um herói, ele foi um verdadeiro pai. Hoje choro quando lembro que ele faleceu sem que eu pudesse me despedir e agradecer por todas as difíceis escolhas que teve de fazer para juntar os cacos de nossas vidas.
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