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Foto do escritorSiqka

A Guerra dos Seis dias

Ainda estava imersa em profundo ressentimento, evitando encarar diretamente yaba, sentindo o peso da vergonha em minhas costas. Ansiava pelo momento de ir para Jericó, onde poderia encontrar alguma distração e fugir, nem que fosse por um breve momento, da presença de meu pai. Finalmente, aquele dia tão aguardado chegou.

 

Nossa família recebeu um convite para um casamento de um parente na Palestina, e a expectativa da viagem era a oportunidade que eu esperava. Eu me via repetidamente construindo e desconstruindo os planos de viagem em minha mente, até que yaba anunciou que nenhum de nós poderia acompanhá-lo. O exército não lhe concedeu folga suficientemente longa para a jornada; então, ele partiria apenas com meu irmão mais velho, Mahmoud, retornando logo após a festa. De certa forma, mesmo que decepcionante, senti um alívio, pois não teria mais que me esquivar toda vez que nossos olhares se cruzassem.

 

Na sexta-feira, que marcava o início da folga, meu pai e Mahmoud partiram antes mesmo que eu pudesse me despedir. O final de semana transcorreu rapidamente, enquanto eu sonhava com as iguarias do casamento. Aguardava a chegada de meu pai e irmão na segunda-feira, desejando ardentemente reconstruir nossa conexão. Preparei-me para ir à escola, sabendo que, ao retornar, yaba estaria à minha espera. No entanto, antes que eu pudesse sair, fui interrompida pelo estrondo ensurdecedor que rompeu os céus da Jordânia: eram os caças israelenses rasgando o espaço aéreo em um ataque que chamaram de "preventivo".

 

O dia 5 de junho de 1967 ficou gravado na história como o início daquilo que seria conhecido como a Guerra dos Seis Dias, mas para mim, foram seis dias de angústia interminável. As notícias chegavam pelo rádio, e os vizinhos as compartilhavam, cada um interpretando, acrescentando ou distorcendo os fatos conforme sua própria percepção. Até onde sabíamos, os israelenses haviam atacado bases militares egípcias no Sinai e agora estavam avançando sobre a Jordânia, Iraque e Síria. Nas primeiras horas da manhã, os caças israelenses já haviam destruído grande parte dos aviões árabes ainda em solo.

 

Minha mãe entrou em desespero. Mesmo que meu pai trabalhasse apenas na rouparia, ele estava vinculado ao exército jordaniano e, pior ainda, era palestino, o que o tornava um alvo potencial para os israelenses. Meus irmãos mais velhos saíram em busca de informações sobre yaba e Mahmoud, visitando vizinhos e parentes próximos. Porém, naquele momento, qualquer notícia vinda da Palestina parecia uma ilusão; todos os palestinos na Jordânia tinham familiares ainda na Terra Sagrada e, naquele momento de crise, todos buscavam informações sobre seus entes queridos.

 

Nas ruas, muitos palestinos corriam desesperados, ansiosos para se unir ao contra-ataque e retornar à Palestina, armados e prontos para defender suas famílias e sua terra natal da qual foram expulsos. No entanto, a política do exército jordaniano era de rejeitar a admissão de soldados palestinos em suas fileiras. Os poucos que eram aceitos ocupavam funções não combatentes, como era o caso de meu pai. Assim, não havia palestinos treinados para enfrentar Israel e a sensação de impotência crescia a cada minuto.

 

O primeiro dia da guerra transcorreu em meio à incerteza, sem que pudéssemos compreender totalmente o que estava acontecendo. No entanto, o dia seguinte revelou-se ainda mais sombrio. Surgiram relatos de combates entre israelenses e jordanianos em Jerusalém e outras cidades palestinas, que estavam na época sob o domínio da Jordânia e do rei Hussein. A mesma situação se repetia na Faixa de Gaza, onde os palestinos também enfrentavam as forças israelenses, que passavam sem dificuldades por eles para enfrentar os egípcios no Sinai.

 

Com vastas áreas desérticas separando a Jordânia da Palestina, assim como o Sinai, as tropas árabes que avançavam por terra eram dizimadas pelas bombas napalm dos israelenses.

 

Diante do cenário desolador, com a maioria das tropas árabes aniquiladas e o restante debilitado em termos de moral e recursos, chegou o terceiro dia, 7 de julho, e com ele uma resolução de cessar-fogo por parte da ONU. Contudo, tanto Egito quanto Jordânia contestaram a comunidade internacional, alegando que Israel não estava cumprindo o cessar-fogo e continuava avançando sobre territórios árabes. A guerra persistia, impiedosa e implacável e, para piorar, nenhum sinal de yaba ou Mahmoud.

 

O último exército a resistir foi o sírio, mas mesmo ele não foi capaz de combater os israelenses, nem frear seu avanço. Ao término do sexto dia de guerra, os israelenses haviam causado mais de 20.000 vítimas árabes, enquanto Israel sofreu quase 1.000 baixas. Além das perdas de combatentes, houve 20 civis israelenses mortos em ataques aéreos árabes em Jerusalém, 15 soldados da paz da ONU mortos por ataques israelenses no Sinai e 34 funcionários dos EUA mortos no incidente do USS Liberty, quando forças aéreas israelenses atingiram um navio de pesquisa da marinha dos Estados Unidos.

 

Ao fim do sexto dia, Israel havia anexado quatro vezes mais território, incluindo a Cisjordânia e a cidade santa de Jerusalém Oriental, onde o general israelense Moshé Dayan falou ao rádio: "Esta manhã, o exército de Israel libertou Jerusalém... Voltamos ao nosso lugar mais sagrado, voltamos para nunca mais nos separarmos". O recado de Dayan soou alto e claro para os israelenses, mas o recado servia também para que os palestinos ouvissem. As baixas e perdas territoriais não foram apenas sentidos pelos palestinos.  Israel tomou também as Colinas de Golã da Síria, a Península do Sinai do Egito, além da Faixa de Gaza, que estava sob controle egípcio.

 

A guerra chegou ao fim, mas até então, nenhuma notícia de yaba ou Mahmoud havia chegado até nós. Eu só conseguia pensar que se algo terrível tivesse acontecido com meu pai, perderia para sempre a chance de me redimir. Era um pesadelo duplo, pois me atormentava a ideia de que meu pai partiria sem que eu pudesse expiar minha vergonha, sem que eu pudesse me despedir.

 

Finalmente, yaba e Mahmoud retornaram para casa, exaustos, famintos e cobertos de sujeira. Passaram todo o fim de semana no casamento, mas foram surpreendidos pelo início da guerra quando tentavam voltar para casa naquela segunda-feira. Diante do caos, yaba levou meu irmão para uma tubulação de esgoto desativada, onde se esconderam até que as explosões cessassem e pudessem atravessar o rio Jordão de volta para nós.

 

Meu pai e irmão voltaram com outros 500.000 palestinos que foram novamente deslocados de suas casas. Naquele momento, parecia que a Jordânia abrigava mais refugiados palestinos do que jordanianos. O campo de Baqa’a, na capital, tornou-se um imenso amontoado de pessoas e barracas improvisadas com as lonas fornecidas pela UNRWA. Nenhum bairro no país abrigava mais pessoas do que aquele campo, um problema que o rei logo trataria de resolver.

 

Enquanto minha mãe e minhas irmãs mais velhas cuidavam do descanso de yaba e Mahmoud, eu os observava enquanto dormiam, ansiando pelo momento em que meu pai acordaria para que eu pudesse expressar todo o arrependimento que carregava. Queria mostrar-lhe que havia mudado durante sua ausência, mas, apesar de minha transformação e amadurecimento forçado, percebi que alguém estava ainda mais profundamente alterado. Ninguém falava muito sobre os seis dias que meu pai e meu irmão passaram escondidos nas tubulações, mas Mahmoud estava nitidamente diferente após aquele episódio. Quando cruzaram o rio Jordão, meu irmão já não era o mesmo.

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