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Foto do escritorSiqka

A vida clandestina de Mahmud

Na nossa casinha, vivemos os melhores e os piores momentos em família, houve até alguns momento de relativa paz, mas nunca duravam o tanto que queríamos. Tínhamos muito pouco, mas o que conseguimos com o esforço dos meus pais e do meu irmão Mahmoud, que começou a trabalhar para ajudar a família, era muito mais do que a maioria dos palestinos, especialmente os refugiados de 1967 que dependiam exclusivamente dos programas de assistência da UNRWA.

 

Foi nessa época, logo após terminar a pintura em nossa casa, que Mahmoud, para orgulho de todos, foi aceito na universidade. Minha mãe, com todo o pouco dinheiro que ganhava com suas costuras, preparava uma sacola com pão, queijo, bolachas e outros alimentos para sustentar meu irmão durante a semana. Ela caminhava vários quilômetros com aquela sacola pesada até a casa de uma amiga, cujo filho estudava com Mahmoud, para que ele pudesse entregar a comida a meu irmão, garantindo que ele tivesse o necessário para a semana. Aqueles com melhores condições ou que moravam mais perto voltavam para casa toda semana, mas meus pais só podiam arcar com isso uma vez por mês. Assim, eu tinha que esperar um mês inteiro para estar com ele e compartilhar o pouco tempo que ele tinha com nossos pais.

 

Toda vez que Mahmoud vinha para casa, era motivo de celebração. Ele sempre foi muito carinhoso com todos nós, e eu tive a sorte de ser sua preferida – e, diga-se de passagem, ainda sou! Quando ele chegava, eu inventava dificuldades na escola só para passar horas ao seu lado, aproveitando as "aulas particulares" que criava como desculpa para estar mais tempo com ele. Hoje sei que ele nunca caiu na minha armação; Mahmoud estava sempre genuinamente interessado em saber como eu estava me saindo na escola.

 

Não há como medir o carinho que sinto por cada membro da minha família, e menos ainda como quantificar o que sinto por cada um. No entanto, minha relação com meu irmão Mahmoud era diferente. As dificuldades que meus pais enfrentaram os endureceram, tornando-os mais rígidos e sérios ao longo do tempo, sempre focados nas necessidades básicas: o que comeríamos, como pagar as contas e como criar os filhos com segurança, proporcionando uma vida razoavelmente normal em meio àquela situação. Nesse ambiente, não havia muito espaço para gestos de carinho ou declarações de afeto. Mahmoud, no entanto, era bem diferente de meus pais. Apesar de todas as dificuldades que enfrentou, muito mais do que se pode lembrar, ele sempre encontrava uma maneira de ser carinhoso, afetuoso e atencioso, especialmente comigo, e isso nos uniu profundamente. Nas épocas ou situações mais difíceis, ele se tornou a fortaleza em que eu me apoiava, oferecendo o conforto e a segurança de que tanto precisava.

 

Foi quando Mahmoud começou a estudar em outra cidade que aprendi um dos conceitos fundamentais do Islã: a caridade. Lembro-me de ver minha mãe mexendo em sua velha caixa de joias pouco antes dele partir. A caixa já não estava cheia como antes; muitas joias haviam sido vendidas ao longo do caminho entre a Palestina e a Jordânia para comprar comida ou ajudar algum parente. Naquele dia, ela retirou de lá a mais preciosa de todas: a pulseira com medalhas palestinas que meu pai lhe deu como dote. Eu sabia o que aquilo significava: minha mãe estava disposta a vender aquela pulseira para financiar os estudos de meu irmão. Embora a pulseira tivesse um imenso valor simbólico para ela, o futuro de Mahmoud era ainda mais importante.

 

A caridade é um dos cinco pilares do Islã, e os muçulmanos costumam ajudar os irmãos mais necessitados. No entanto, nas condições em que viviam os palestinos, um massacre após o outro, todos nós éramos necessitados. Além disso, há outra dificuldade entre os palestinos: não costumamos pedir ajuda facilmente, especialmente os homens, que se sentem muito desconfortáveis ao fazê-lo. Sei que minha mãe vendeu aquela joia para ajudar meu irmão a estudar, mas não tenho dúvidas de que ela faria o mesmo por qualquer um de nós, ou até mesmo por um desconhecido. Essa característica de minha mãe a acompanhou até o último dia de sua vida. Pouco antes de falecer, ela reuniu a mim e às minhas irmãs e expressou seu desejo de que, após sua partida, dividíssemos alguns de seus pertences e vendêssemos o restante para ajudar outras pessoas. Havia apenas um detalhe: eu estava excluída dessa lista. Minha mãe acreditava que, como eu estava em uma condição financeira melhor do que a das minhas irmãs, não precisava da herança. Quando ela finalmente descansou, seguimos suas ordens.

 

Meus pais sempre foram unidos em todas as suas lutas. No sofrimento ou na alegria, enfrentaram tudo juntos. Vender aquela pulseira era simbólico não só para minha mãe, mas também para meu pai, que não podia arcar sozinho com as despesas de Mahmoud. Embora aquela pulseira fosse o que sobrou de uma vida à qual ambos gostavam de recordar, sei que nenhum dos dois hesitou ou teve dúvidas de que aquele era o motivo certo para vender a pulseira de ouro com medalhas da Palestina.

 

Foi assim que meus pais conseguiram enviar seu primeiro filho para a universidade. Todos nós nos realizávamos através dele, e eu ficava orgulhosa de poder dizer às minhas amigas que meu irmão estava estudando fora, em uma universidade. Mas, enquanto me exibia com o sucesso do meu irmão na rua, em casa eu sentia muito a sua falta. Ele sempre enviava cartas para meus pais, mencionando todos os irmãos, e, para mim, sempre deixava recomendações para que eu estudasse. Eu estudava, não só para honrar seus conselhos, mas também para que o tempo passasse mais rápido, para que as férias chegassem logo e meu irmão pudesse voltar para nos ver.

 

Mas as férias começavam e terminavam, e Mahmoud nunca aparecia. Enquanto os outros alunos costumavam viajar durante os feriados, finais de semana e férias, meu irmão não tinha dinheiro para ir e vir e usava o período sem aulas para trabalhar. Algo mais estava acontecendo com ele, e aquele período sem vê-lo marcou o início de um dos maiores dramas em nossa casa. Foi nessa época que Mahmoud começou a se envolver em certas atividades clandestinas.

 

Quando, finalmente, meu irmão entrou pela porta da frente, estava visivelmente mudado. Ao sentar na sala e deixar sua mochila de lado, respirou fundo, como se o ar de casa fosse o único puro o suficiente para encher seus pulmões. Conversou com meus pais sobre os estudos e o trabalho, mas havia algo mais que parecia querer dizer, mas não conseguia encontrar forças para expressar. No fundo, acho que meu pai entendia bem a razão daquela angústia e, embora minha mãe não quisesse admitir, ela também sabia. A única que parecia alheia à situação era eu.

 

Durante os meses em que ficou fora, algo na escola mudou completamente meu irmão. Em casa, ele se tornou silencioso e introspectivo, sempre com um livro em mãos, procurando um lugar tranquilo para ler. Eu tentava não incomodá-lo mais do que o necessário, mas queria aproveitar o tempo que ele estava ali, sabendo que logo retornaria para a universidade. Passei a observá-lo dia e noite, tentando encontrar o momento certo para me aproximar, mas isso foi se tornando cada vez mais difícil. Seus dias começavam mais tarde do que o habitual para um muçulmano, que costuma acordar antes do alvorecer para a primeira oração. Mahmoud saía de casa quase todas as noites e sempre chegava de madrugada. Meu pai esperava até sua chegada para perguntar onde esteve, com quem falou e o que estava fazendo, mas Mahmoud sempre respondia que estava cansado e ia dormir, sem fornecer as respostas para aquele interrogatório.

 

Essa situação perdurou por alguns dias, até que Mahmoud começou a evitar meu pai, e os dois quase passavam pela mesma porta.

 

Uma noite, meu pai ficou sentado sob a pintura de Mahmoud na sala, esperando o retorno do meu irmão. Yaba havia encontrado, entre as coisas de Mahmoud, um uniforme meticulosamente passado. Esse uniforme não fazia parte da vestimenta escolar, ele era tudo o que meu pai temia, e ele sabia que, a partir daquela noite, as coisas nunca mais seriam como antes para nenhum de nós.

 

Inquieto, Yaba se levantava do sofá para vigiar pela janela cada carro que passava pela rua. Pouco antes do amanhecer, meu irmão entrou na sala, e meu pai disse: “Agora vamos conversar.” Não havia ira ou rancor na voz de meu pai, mas naquela noite, a Jordânia parecia estremecer com um terremoto silencioso; não por muito tempo. A conversa logo mudou de tom. Meu pai, que nunca havia brigado com meu irmão – o filho mais velho e sempre motivo de orgulho – estava em choque e expressou sua raiva de maneira clara e alta, em um tom de voz que eu nunca imaginei que ele pudesse atingir. Acordei para testemunhar a única briga que já vi em casa. Mahmoud argumentava seus motivos, enquanto meu pai tentava fazê-lo entender que suas atividades secretas estavam colocando toda a família em risco.

 

Meu irmão havia se juntado a uma organização. Mesmo sem compreender completamente o que isso implicava, os motivos que ele apresentava pareciam razoáveis. Ele falava sobre lutar e libertar a Palestina, apontava para sua pintura e dizia: “Ali está nossa casa, ali está nossa terra, e precisamos voltar para lá. Mas só conseguiremos isso se lutarmos. Os sionistas não nos devolverão nenhum centímetro de nossa terra se não lutarmos por ela.”

 

No final da discussão, meu pai se sentou, baixou o tom de voz e fez um gesto com a mão, indicando que meu irmão também se sentasse. Ele disse que compreendia e se orgulhava de ter um filho como Mahmoud, mas que era crucial considerar que suas atividades estavam colocando toda a família em risco, especialmente porque ele trabalhava para o exército jordaniano.

 

Mahmoud se manteve irredutível e deixou isso claro. Meu pai olhou profundamente em seus olhos e, em silêncio, se retirou.

 

O que Mahmoud estava fazendo era, ao mesmo tempo, errado e evidentemente certo. De algum modo, isso deixava meu pai orgulhoso. Embora as ações de Mahmoud fossem arriscadas e colocassem a família em perigo – como meu pai repetiu dezenas de vezes naquela noite –, havia uma parte de yaba que admirava a coragem e a convicção de meu irmão. Ele compreendia o desejo de lutar pela Palestina, mas a preocupação com os riscos envolvidos era palpável. Assim, enquanto o orgulho pelo compromisso e a determinação de Mahmoud era evidente, a inquietação pela segurança da família e do próprio filho também era profunda.

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