Ahmad Qatamesh, professor palestino que passou mais de 14 anos detido por Israel sem apresentação de provas. Seu "crime" era resistir à ocupação e ensinar sobre a não-violência.
“Pois como pode um tirano governar os livres e os orgulhosos, a não ser pela tirania de sua própria liberdade e pela vergonha de seu próprio orgulho?” Khalil Gibran
14 de abril de 2016, 3h59
Sete jipes acompanhavam o blindado em alta velocidade enquanto percorria o bairro al-Bireh. Fechando a rua, os veículos posicionaram-se aguardando instruções, e 45 soldados israelenses permaneciam à espera da confirmação. Às 4h, a voz no rádio autorizou o início da operação. Os cães latiam, denunciando a movimentação das botas compassadas que cruzavam a rua. Pouco a pouco, as luzes se acendiam nas casas ao redor, mas ninguém se atrevia a olhar pela janela.
Com os fuzis em punho, os soldados flanquearam a porta da frente do suposto "terrorista", enquanto um último segundo de silêncio pairava. A porta foi derrubada, e em questão de segundos, os soldados invadiram a casa, revirando cada cômodo. Os israelenses buscavam por Ahmad Qatamesh, um conhecido comunista que, naquela noite, não se encontrava em casa. Oficiais interrogavam a esposa e as crianças, enquanto os recrutas vasculhavam a residência em busca de qualquer evidência que pudesse incriminar o procurado.
A prisão de Qatamesh era a prioridade naquela noite, e as ordens recebidas autorizavam a invasão de todas as casas em Ramallah, com interrogatórios a todos os moradores, até que o alvo fosse localizado.
Após a derrubada de várias portas e o terror instaurado pela ação militar, às 4h30, as Forças de Ocupação Israelense (IOF) alcançaram a residência de Khaled Qatamesh, irmão do procurado. Os soldados iniciaram o interrogatório ali mesmo, exigindo respostas sobre o paradeiro do suposto terrorista.
"Onde ele está?" questionou um dos oficiais.
"Vocês devem saber, pois já o prenderam tantas vezes", respondeu Khaled.
Algemado em sua própria casa, Khaled escutava no rádio dos interrogadores a notícia de que seu irmão havia sido encontrado nas proximidades. Assim que localizado, o suspeito foi encapuzado, algemado e lançado na traseira de um dos veículos. A ação foi tão rápida que as IOF não levaram sequer uma folha de papel das casas vasculhadas, incluindo a do próprio terrorista.
Qatamesh, preso pela primeira vez na década de 1970 e em várias ocasiões subsequentes, sempre sob a acusação de pertencer à Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP), é conhecido por ser o palestino que passou mais tempo preso pela chamada Detenção Administrativa. 14 anos encarcerado sem o devido julgamento legal ou apresentação de provas. Nunca tendo empunhado uma arma ou utilizado a violência para fins políticos. Ahmad Qatamesh foi injustamente acusado de representar um risco à segurança nacional israelense, quando, na realidade, seu único "risco" reside no fato de ser um respeitado professor de ciência política na Universidade Al-Quds.
O cerco, ou melhor dizendo, "circo", montado para prender o "terrorista" não levou em consideração o fato de que seu único crime era escrever livros e palestrar para jovens, sempre propondo alternativas de paz e governança entre palestinos e israelenses. O estado sionista, ao acusar um professor universitário, utilizou do terror para mais uma vez enviá-lo ao cárcere sem apresentar provas concretas.
Não usarei seu Tarbush
Em sua segunda detenção, em 1992, o professor foi interrogado e torturado nos primeiros 100 dias, durante os quais escreveu suas memórias do cárcere no livro posteriormente intitulado "Não Usarei seu Tarbush"[1]. As sessões de tortura tinham como objetivo extrair uma falsa confissão de que o prisioneiro era um dos líderes da FPLP. Durante seis anos sem julgamento e sem acesso às provas de sua detenção, Qatamesh afirmava que seu vínculo com a FPLP havia terminado há mais de uma década, sendo um líder político do partido, não do seu braço militar. Incapaz de comprovar essa alegação e sem apresentar as provas, o Shin Bet acusou o professor de perpetrar ataques terroristas contra Israel de dentro da prisão, prolongando repetidamente seu tempo de detenção.
As autoridades israelenses têm utilizado a detenção administrativa[2] e a Lei Contraterrorismo[3] como alternativa para evitar que opiniões políticas e ideias baseadas em não violência de ativistas e intelectuais se tornem ainda mais populares como forma de resistência. Nos últimos anos, professores, artistas, poetas e poetisas que propõem mudanças pacíficas e estratégicas no cenário político têm incomodado tanto quanto e até mesmo foram tratados como iguais aos membros das resistências armadas.
O Professor Qatamesh chegou a sugerir publicamente o fim das divisões entre o Hamas e a Autoridade Palestina. Em 2011, Qatamesh foi preso por manifestar apoio à campanha de 1300 presos em greve de fome.
A Anistia Internacional declarou o professor Qatamesh como prisioneiro de consciência[4], justificando que não havia nenhum indicador que o associasse ao braço armado da FPLP. A organização acrescentou que o professor jamais fez ou declarou algo que fomentasse a violência. A organização, que defende os direitos humanos, entende que muitos dos prisioneiros palestinos são prisioneiros de consciência mantidos apenas pelo exercício pacífico de seu direito à liberdade de expressão e associação. As razões para as contínuas prisões administrativas de Ahmad Qatamesh refletem o alcance de seu ativismo político entre estudantes e ativistas palestinos. Suas visões políticas e métodos de não violência fizeram com que o professor tivesse sua detenção estendida sete vezes consecutivas. No decorrer da prisão do professor, ativistas dos direitos humanos do mundo inteiro, incluindo Israel, protestaram por sua soltura. Em 26 de dezembro de 2013, dois anos e meio após sua detenção, Ahmad Qatamesh foi finalmente libertado. Menos de três anos após sua soltura, o professor estava novamente dentro de um jipe do exército israelense a caminho da prisão, sem provas.
“Uma vez mais, Ahmad Qatamesh parece estar sujeito à implacável política de detenção administrativa de Israel. A Anistia Internacional acredita que ele foi detido apenas por suas atividades políticas não violentas e por escrever, além de impedir o ativismo de outros palestinos. Confirmar a ordem de detenção administrativa contra ele seria uma violação flagrante de seu direito à liberdade de expressão”, disse Magdalena Mughrabi, vice-diretora para o Oriente Médio e Norte da África da Anistia Internacional.
Relatores Especiais da ONU têm apelado repetidamente para que Israel encerre as práticas de detenção administrativa. O Comitê Contra a Tortura da ONU expressou que tais medidas deixam os prisioneiros vulneráveis à tortura e aos maus-tratos. O uso desse tipo de detenção deve ser voltado para a prevenção e nunca para fins punitivos, como tem sido o caso em Israel. Mesmo esse tipo de detenção está sujeito ao princípio da proporcionalidade, portanto, deve ser empregado somente quando o suposto perigo não puder ser evitado por meio de processo penal ou de medidas administrativas menos prejudiciais aos direitos humanos.
Antes de ser preso, Ahmad Qatamesh foi ameaçado para que não falasse mais em público e não escrevesse mais sobre a ocupação. Todas as vezes, ele recusou, declarando à inteligência militar que ele é um escritor e um acadêmico, e falaria e escreveria o que quisesse. Ele tinha 70 anos quando foi novamente preso, sem provas.
[1] O tarbush é um tipo de chapéu de origem árabe, também conhecido como fez ou fez marroquino. É caracterizado por sua forma cônica com uma coroa plana e sem aba. O tarbush foi historicamente usado em várias regiões do mundo árabe e do norte da África como parte do traje tradicional masculino.
[2] A detenção administrativa é uma prática utilizada por alguns países para deter indivíduos por períodos prolongados sem acusação formal ou julgamento. Essa prática tem sido criticada por organizações de direitos humanos devido ao seu potencial de abuso e violação dos direitos individuais.
[3] A Lei de Contraterrorismo é uma legislação usada por Israel para criminalizar palestinos e árabes-israelenses sob o pretexto de combater o terrorismo. Essa lei permite a detenção prolongada sem acusação formal, uso extensivo de provas secretas em tribunal e restrições ao acesso à revisão judicial. Ela amplia as definições de terrorismo e aumenta as penas para crimes de segurança. Essa legislação é criticada por violar os direitos humanos e é usada para intimidar e punir dissidentes políticos e defensores dos direitos humanos.
[4] A expressão cunhada pelo advogado e ativista Peter Benenson (de família judaica britânica) é geralmente associada às pessoas presas em consequência da expressão não violenta de suas ideias, convicções, crenças ou ideologia. A expressão foi inicialmente adotada pela organização Anistia Internacional, posteriormente seu conceito foi ampliado, passando a incluir as pessoas encarceradas em razão de sua raça ou etnia, religião ou orientação sexual.