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Foto do escritorClandestino

A palmada e nossas meninas

/// Texto de Camille Borges ///


A primeira vez que entrei no consultório da minha terapeuta, decidi conversar sobre minha relação com o meu pai. Meu pai costumava me bater, mas ele sempre dizia que era para o meu bem, sabe? Ele também dizia que filha que não apanha dá mais trabalho durante a adolescência, fica irresponsável e não cuida direito da vida. Nunca entendi direito essa lógica, mas era assim que as coisas funcionavam.


Quando eu não agia da forma que ele esperava, eu era ameaçada. Eu era ameaçada até com as coisas mais banais e cotidianas. “Se você não tirar uma nota boa, você vai ver.” “Cala a boca que teu irmão tá falando!”


Eu aprendi muito cedo que o peso da voz de uma mulher é diferente do peso da voz de um homem. E que nós precisamos de um esforço infinitamente maior para sermos ouvidas. E foi assim que eu cresci.


Depois que meu pai me dizia essas coisas, ele costumava rezar comigo na hora de dormir. Me abraçava, me ninava e dizia que eu era a criança mais linda do mundo. Isso sempre ficou confuso na minha cabeça. Se eu era tão linda, a ponto de ser considerada a menina mais linda do mundo, como eu também merecia apanhar por tirar uma nota ruim em uma matéria que eu não entendia?


Eu pensava que meu pai ia me proteger da violência, mas ele me ameaçava, mas também depois me cobria de carinho.


Agora estou aqui na sala de espera, escolhendo o tema da minha próxima sessão. Eu poderia falar sobre meu último encontro com Eduardo e a forma estranha que ele não me deixou concluir as frases ao longo da nossa conversa, mas não tenho certeza se isso é relevante para meu processo. Talvez eu poderia pensar na minha relação distante com meu irmão, mas não sei se isso é interessante o suficiente para entreter a tarde da minha terapeuta. Vou escolher algum tema engraçadinho para a gente conversar. Agradar a todos é algo importante para mim.

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