Baqa`a
Nos dias quentes, a agitação das partidas de futebol no campo de Baqa’a levantava a poeira da rua de terra batida. Eu adorava brincar com meus amigos, mais com os meninos do que com as meninas. Yaba sempre me dizia que eu era muito grande para ficar perambulando com os moleques do campo. Eu não entendia bem; como podia ser grande demais para brincar com os meninos e ainda jovem demais para usar o hijab?
Yaba saía de casa muito cedo. Após a oração da alvorada, ele pegava a bicicleta e seguia para o trabalho. Eu observava pela janela até vê-lo desaparecer na ladeira e, antes que minha mãe percebesse, corria para a rua, para evitar que ela me pedisse para cuidar de alguma criança.
As meninas do campo costumavam fazer suas próprias bonecas; minha mãe me dava os restos de tecido de suas costuras para que eu pudesse fazer as minhas. Yama era muito habilidosa com a costura e os bordados. Ela aprendeu a costurar quando estava em Jericó, pois a família já não tinha mais a renda das plantações e todos precisavam se virar como podiam. Eu gostava de fazer as bonecas, mas assim que percebia que ninguém estava olhando, corria para a rua para fazer pipas com os meninos. Minhas pipas eram as mais coloridas e bonitas do campo. Os meninos, apesar de suas cismas em brincar com as meninas, talvez por eu ser a melhor no basquete, futebol, pega-pega, esconde-esconde e na arte de fazer pipas, me viam como um deles.
Brincava de qualquer coisa que estivesse disponível, mas nenhuma brincadeira superava o esconde-esconde. Alguém, de olhos fechados, começava a contagem: "uahad, tnain, tolete" até chegar a cem. Quando ouvia "miatum", que completava a contagem, eu já estava longe. Entre as tendas, barracos e ruelas improvisadas, existiam os melhores esconderijos, sejam para guerrilheiros ou para simples crianças brincando de esconde-esconde. Décadas depois, ao ver meus netos na mesma brincadeira, gargalhei sozinha, lembrando da minha infância. Para eles, não havia tantos esconderijos como havia para as crianças palestinas em um campo de refugiados.
É estranho pensar assim. Não quero romantizar nossa tragédia ou medir o sofrimento de todos os refugiados pela minha própria métrica, mas é um fato que nós, palestinos, nos acostumamos tanto com a vida pulando de um campo para outro que não nos abatemos facilmente. É impossível ir a um campo palestino e não ver uma criança brincando em terrenos que a maioria das pessoas não suporta nem ver pela tela do celular. Isso não diminui o sofrimento, mas precisamos viver, e viver da melhor maneira possível e de forma mais comum possível, mesmo nas condições mais cruéis. Essa é a nossa maior forma de resistência.
A brincadeira foi perdendo a graça com o tempo. Em um Natal, minha mãe fez para mim e para minhas irmãs lindos vestidos vermelhos com golas brancas, todos iguais. Eu amei o vestido. Era Natal, mas eu estava pensando em usá-lo até o próximo Ramadã. Havia muitos palestinos cristãos em Baqa`a, e embora fôssemos muçulmanos, todos comemoravam juntos as mesmas festas. Como já mencionei, temos uma versão um pouco diferente da história de Jesus e seu nascimento, mas acreditamos e respeitamos tanto quanto os cristãos. Na verdade, ser palestino é um privilégio, pois, não importa se muçulmano, cristão ou judeu palestino, celebramos todas as festas das três religiões. Em alguns anos, as datas religiosas até coincidem no calendário, como pode acontecer com o Ramadã islâmico, o Pessach judaico e a Páscoa cristã.
Naquele ano, todos que nos visitavam davam algumas moedas para as crianças. Assim que juntamos um bom capital, corremos para uma praça onde haviam colocado alguns balanços e cobravam alguns poucos centavos em troca de alguns minutos no balanço. Eu amava, mas não queria sujar o vestido. De repente, algo chamou minha atenção. Olhei para o lado e vi um tumulto, uma briga cotidiana, das muitas que acontecem em qualquer lugar. Me aproximei e subi em uma caminhonete estacionada para ficar na altura dos adultos e ver melhor. Logo, tomei uma pedrada na cabeça. Doeu muito, e senti o calor do sangue escorrendo pelo meu rosto. Quando percebi, a gola branca do meu lindo vestido já estava tão vermelha quanto o resto dele, todo empapado de sangue. Corri para casa. Depois de alguns pontos na testa e uma falha horrível no cabelo, meu pai me olhou sério e disse, com toda calma e firmeza, que eu já era uma mocinha e não poderia mais ficar andando pela rua como um moleque. Justo naquele dia, eu nem tive tempo para brincar no balanço.
As recomendações de meu pai não surtiram o efeito que ele queria. Certo dia, assim que ele saiu para o trabalho, olhei para a ladeira e havia um alvoroço entre os meninos. Tinha chegado entre nós uma novidade chamada “carrinho de rolimã” e eu estava ansiosa por aquela novidade. Nossa ladeira no campo de refugiados de Baqa`a não perdia em nada para nenhuma estação de esqui suíça. Me esgueirei e dei fuga, sem esquecer da minha sentinela. Colocava minha prima de vigia no telhado, e como suborno, a deixava entretida com as bonecas que eu fazia com os retalhos que minha mãe me dava. Do alto, ela vigiava a ladeira da rua para me avisar quando yaba estivesse chegando. Se ela dissesse que não havia sinal dele, eu brincava o quanto podia. Sempre dava certo, até o dia em que deu errado.
Lá estava eu com minha vigia no telhado. Assim que ela deu o sinal, me juntei no topo de nossa estação improvisada. Os meninos desciam a ladeira com maestria, e pensei que, se eles podiam fazer aquilo, eu poderia fazer dez vezes melhor e, quem sabe, dez vezes mais rápido. O carrinho descia a ladeira fazendo um barulho que só não era superado pela poeira que levantava. Quando chegou a minha vez, me ajeitei como um piloto se prepara para uma grande corrida. Posicionei os pés no apoio para direcionar a tábua do assento, agarrei-me firme onde podia e, sem hesitar, lá fui eu.
No começo, achei que seria a campeã. O carrinho seguiu os primeiros metros sem problemas, mas logo começou a ganhar velocidade, e o trepidar aumentou. Eu sentia nos ossos cada uma das pedras da rua, e meu cérebro parecia bater dentro da minha cabeça. A poeira invadia minha boca, meu nariz e, para piorar, meus olhos. Não sei como, foi tão rápido que nem percebi quando perdi o controle da direção e acabei chegando antes do meu carro na linha de chegada; esfolada dos pés à cabeça.
Foi uma cena deprimente, toda machucada, do rosto aos cotovelos e joelhos. Eu queria chorar, não tanto pela dor, mas pela raiva dos meninos que começaram a rir. Os adultos na rua olharam calados por um segundo. Vendo que eu estava viva, voltaram a seus afazeres como se nada tivesse acontecido.
Minha vigia, que assistia à cena toda do seu camarote privativo, desceu correndo até a rua para me ajudar. Ela ajudou a limpar minha roupa e disse: "seu pai vai te matar". A essa altura, eu nem queria mais saber de corridas, só pensava: "yaba vai me matar mesmo". Por mais que eu pensasse em desculpas para dar quando meu pai chegasse, não encontrava nenhuma. Cedo ou tarde, ele iria descobrir que eu estava mais uma vez com os meninos. "Ele ia me matar de qualquer jeito", pensei.
Minha prima teve a brilhante ideia: "vamos contar a verdade".
– Ah claro, você quer mesmo que eu morra para ficar com minhas bonecas. – Respondi.
– Então o que vai dizer?
– Vou dizer que estava andando e passei mal com esse calor e acabei caindo. Aí eu choro e vai ficar tudo bem.
– Ele nunca vai acreditar! Você tem muita imaginação! – Afirmou ela, encerrando a conversa.
Naquele dia, assim que vi meu pai descendo de bicicleta pela ladeira, sentei-me na porta de casa e comecei um choro improvisado. Ele me perguntou o que aconteceu. Para minha sorte, todos os meus amigos tinham medo do meu pai, então se dissiparam mais rápido que a poeira do campo quando viram a bicicleta. Olhei nos olhos dele, passou pela minha cabeça todo o carinho que yaba tinha por mim e que eu não queria perder. Então, como toda criança que ama seus pais, fiz o que meu coração mandou: menti! Contei para ele a minha história. Hoje fico imaginando se ele acreditou de verdade. Naquele momento, ele não disse nada, apenas me levou para dentro de casa e concordou com a cabeça. Acho que, no fim das contas, ele sabia que eu estava mentindo descaradamente, mas achava que todos aqueles esfolados seriam o suficiente para eu aprender a lição. Não foi!
Assim que meus machucados sararam, lá fui eu novamente para a rua. Minha mãe fazia de tudo para evitar que eu entrasse em conflito com yaba, então ela me incumbia de cuidar dos meus irmãos mais novos. Ela tinha muitos afazeres no campo, buscando ganhar um dinheirinho extra para contribuir com as economias da família. Cuidar dos meus irmãos era algo que nos ajudava mutuamente. Eu, esperta como sempre fui, trocava essas tarefas com as vizinhas. Quando minha mãe saía, eu ia até a casa de alguma mulher que tivesse filhos na mesma idade que os meus irmãos e me oferecia para ajudar nos afazeres domésticos. Lavava, cozinhava, passava, varria o chão, qualquer coisa. No final, pedia que elas olhassem meus irmãos rapidinho, pois eu precisava sair por um momento, mas logo retornaria. Eram nesses momentos que eu precisava aproveitar intensamente para brincar.
Um dia, enquanto eu colocava essa estratégia em prática e uma vizinha cuidava de meus irmãos, tudo deu errado. Yaba desceu a ladeira com sua bicicleta sem que eu percebesse. Ele chegou por trás e me segurou pelo braço. “Agora morri” eu pensei. Assim que olhei para ele, levei um tapa no rosto. Chorei como nunca tinha chorado na vida; até hoje sinto o peso da sua mão. Minha tristeza não era pela dor física, os machucados que eu escondia por brincar na rua doíam muito mais, mas eu sentia a dor de ter decepcionado meu pai. Essa dor, eu nunca mais esquecerei.