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Foto do escritorSiqka

Do outro lado do rio

Na Jordânia, não demorou muito para que yaba conseguisse um dos empregos mais improváveis para um refugiado palestino: servir no exército do rei. Apesar de estar disposto a ser um combatente para sustentar sua família, o rei não permitia palestinos armados em suas fileiras. Qualquer palestino que cruzasse para a Jordânia era admitido apenas em empregos braçais. Não importava se fossem médicos, professores, advogados ou exercessem qualquer outra profissão; ali eram vistos como uma segunda classe, destinados apenas a trabalhos em obras ou na limpeza de alguma coisa. E assim foi com meu pai. Mesmo dentro do exército, ele trabalhava na rouparia, cuidando dos uniformes dos oficiais.

Sempre que possível, yaba retornava a Jericó para visitar a família e trazer dinheiro e mantimentos, já que estavam escassos na Palestina. Parecia para a comunidade internacional que vivíamos apenas de farinha. Mas essas idas e vindas não só consumiam tempo, como também o pouco dinheiro que ele conseguia juntar. Foi então que chegou o momento de outra difícil decisão: trazer a família para a Jordânia.

Mesmo naquela época era difícil para um palestino deixar o seu país para viver em outro, mesmo que o novo país também fosse árabe e predominantemente muçulmano, como a Jordânia. Após viver por algum tempo no Brasil, percebi que muitas pessoas têm a crença de que, por sermos árabes, compartilhamos os mesmos costumes e pertencemos a uma única cultura identificada como "árabe", com nosso país sendo genericamente referido como "as Arábias". A realidade não é tão simplista e preconceituosa como retratada em filmes. Embora compartilhemos a etnia árabe devido ao idioma comum, cada país apresenta suas próprias nuances linguísticas, culturais e sociais. Mesmo ao interagir com um árabe egípcio, jordaniano ou iraquiano, por exemplo, é comum encontrar diferenças significativas. Nós, palestinos, tendemos a organizar nossa sociedade em grupos, como cidades ou vilarejos, e trabalhamos frequentemente juntos na terra, ajudando-nos mutuamente durante as colheitas. Na Jordânia daquela época, a sociedade para além das grandes cidades, era organizada em tribos de beduínos em regiões remotas. Muitos viviam em tendas e subsistiam principalmente da criação de ovelhas, galinhas e até mesmo camelos. Quando eu era criança, ficava encantado com o estilo de vida daqueles beduínos jordanianos, que nos parecia tão exótico quanto pode parecer para você hoje.

Na religião também existem certas diferenças. Predominantemente, os árabes costumam ser muçulmanos, sejam sunitas ou xiitas, mas também existem árabes cristãos de várias denominações, como os coptas, ortodoxos gregos e até mesmo os apostólicos romanos. Além disso, há muitos judeus em países árabes, até mesmo na Palestina. Para os palestinos, nunca houve distinção entre muçulmanos, judeus ou cristãos. As comunidades viviam em harmonia, trabalhavam a terra juntas e cuidavam dos locais sagrados, como igrejas, mesquitas e sinagogas. Vários desses locais, como a Tumba dos Patriarcas em Hebron, a cidade de Jerusalém e a Igreja de São Jorge em Al-Khader, são sagrados para as três religiões, já que todas derivam do patriarca Abraão.

Com toda essa diversidade cultural, a Ponte Rei Hussein não era apenas a separação entre um país e outro, mas também o elo entre dois universos distintos.

 

Como já disse antes, eu nasci na Jordânia, mas sempre gostei mais do lado da outra margem do rio Jordão. Minha maior felicidade era quando yaba anunciava que íamos a Jericó visitar meus avós. Eu não gostava de viver em Ma´an. Nossa casa era um pequeno barraco feito de telhas que pareciam agir de forma contrária ao isolamento térmico; quando fazia frio ou chovia, dentro de casa ficava ainda mais gelado, e nos dias quentes, parecia um forno lá dentro. Não tínhamos banheiro dentro de casa; compartilhávamos um banheiro externo com outras famílias que também residiam ali, um para as mulheres e outro para os homens. Assim, apesar de meus avós também morarem em uma casa simples, para mim parecia um palácio.

Bem cedo, estávamos prontos, meus pais, meus irmãos e eu, para embarcar em um ônibus rumo a capital Amã e depois para Jericó. As cidades Amã e Jericó ficam muito próximas, tão próximas que não levaria muito mais do que uma hora em condições normais, mas o ônibus que pegávamos parecia multiplicar esse tempo por quatro. Meu pai entregava as malas a um auxiliar do motorista, que as amarrava no teto do ônibus, enquanto minha mãe lutava por algum espaço que pudesse acomodar ela, meu pai e os filhos, junto com os outros passageiros. Era cansativo, especialmente para meus pais, mas para mim, divertido, pois achava essas viagens uma aventura completa.

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