ESPINHO E O CRAVO - Yahya Al-Sinwar - Capítulo VI
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Capítulo VI
Após a ocupação de 1967, a vila de Surif, onde minha tia Fathiya vivia, tornou-se mais um símbolo da resistência palestina, assim como muitas outras vilas da nossa terra. Situada na Linha Verde, entre os territórios ocupados em 1948 e aqueles sob domínio jordaniano até 1967, Surif suportou com bravura as represálias pela resistência que antecedeu a Nakba.
Em uma rotina pacata e orgulhosa, os moradores de Surif viviam em casas simples e belas, rodeadas por oliveiras e figueiras, sustentando-se com o cultivo e criação de animais. Com tradições enraizadas e costumes antigos, os homens eram conhecidos pela coragem e as mulheres pela modéstia. Ao se mudar de Gaza, minha tia se adaptou rapidamente, reconhecendo na vila o mesmo espírito resistente de nossa gente, embora houvesse um leve sotaque diferente na fala dos moradores.
O marido de minha tia, Abdul Fattah, havia concluído o ensino médio em Hebron, onde fez muitos amigos e conheceu bem a cidade. Ele planejava estudar na Faculdade de Sharia da Universidade da Jordânia, mas a doença do pai o obrigou a adiar os estudos e, posteriormente, com a morte do pai, ele abandonou definitivamente a ideia. Herdou o comércio de tecidos da família e a responsabilidade pela terra, encontrando conforto em promover a educação do irmão, Abdul Rahman, que seguia os mesmos passos no colégio em Hebron.
Com frequência, Abdul Fattah observava do telhado de sua casa as ruínas de 'Alyn, relembrando os dias em que combatentes da Jihad Sagrada acampavam ali, antes da ocupação. Ele contava histórias de bravura dos habitantes da vila que ofereciam apoio aos lutadores e relatava um episódio memorável: um homem da vila avistou um comboio vindo de Beit Shemesh para Etzion e avisou os combatentes, que armaram uma emboscada. Naquele dia, trinta e cinco soldados e médicos foram mortos, e essa ação marcou Surif com o rancor dos ocupantes, que, em 1967, bombardearam a vila em retaliação.
Em Hebron, Abdul Fattah cultivou uma ampla rede de relações com comerciantes e empresários, onde o debate sobre a resistência se misturava aos interesses cotidianos. Juntos, debatiam o futuro, temendo mais as represálias do que acreditando nos resultados da resistência. Muitos duvidavam que grupos de fedayeen, com armas simples, pudessem desafiar o exército israelense, questionando como a luta desigual poderia trazer algum benefício prático diante do fracasso dos exércitos árabes combinados. Para muitos, o anseio por uma vida mais estável e próspera pesava mais que a ideia de uma resistência incerta e perigosa.
Abdul Fattah raramente desafiava abertamente as opiniões dos presentes em suas reuniões, preferindo ouvir e argumentar de forma cautelosa e lógica. Depois de uma ou duas horas, o grupo se dispersava, muitas vezes encerrando a conversa com alguém dizendo: “Que nos importa? Deixe a criação para o Criador, e Deus nos trará o que é melhor.” A frase, proferida no típico dialeto de Hebron, marcava o tom das discussões resignadas e talvez céticas dos encontros.
Foi em uma dessas ocasiões que Abdul Fattah conheceu "Abu Ali", alguém que parecia profundamente convencido da importância de agir pela causa. Para ele, mesmo que a resistência não fosse suficiente para libertar a pátria, era um dever nacional. Os dois passaram a se encontrar com frequência, seja nas ruas de Hebron ou em Surif, onde discutiam a necessidade de resistir e de não se conformar em apenas buscar ganhos materiais. Essa afinidade fortaleceu a amizade entre eles. Em um momento de confidência, Abu Ali revelou a Abdul Fattah sua vontade de transformar a resistência em um movimento organizado, planejando viajar para a Jordânia e propor sua ideia ao Fatah, cujos feitos, após a vitória em Karameh, lhe davam prestígio e influência.
Abdul Fattah apoiou o plano, prometendo a Abu Ali cautela e comprometimento em cada passo, enquanto Abu Ali se preparava para a viagem, usando um pretexto comercial para evitar suspeitas. Na Jordânia, em meio a celebrações pela vitória de Karameh, Abu Ali rapidamente encontrou a liderança do Fatah, que acolheu sua proposta e forneceu recursos para que ele iniciasse a organização de células armadas na Cisjordânia.
De volta à Cisjordânia, Abu Ali começou a recrutar jovens em várias cidades e vilas. Em cada cidade, ao encontrar alguém confiável, ele compartilhava a missão, pedindo que recrutassem mais dois ou três amigos para fortalecer a rede. Logo, uma estrutura de resistência se formou, abrangendo várias regiões, do norte até Hebron. A tarefa de reunir armas ficou sob a responsabilidade de Abdul Fattah, cujas atividades comerciais ofereciam uma cobertura ideal para a operação.
Com o tempo, as células começaram a atuar, realizando operações modestas, como ataques a patrulhas de ocupação e emboscadas. Contudo, como é comum na resistência, uma das células sofreu um revés, levando à captura de seus membros. Sob intenso interrogatório, alguns confessaram e as prisões se espalharam, alcançando Abu Ali, que foi levado à prisão de Hebron. Mesmo submetido a um interrogatório severo, Abu Ali mostrou notável resiliência, mantendo silêncio enquanto outros, sob pressão, confessavam.
A inteligência israelense deteve Abdul Fattah após rastrear as ligações e amizades de Abu Ali. A prisão foi acompanhada de uma busca devastadora em sua casa, deixando um rastro de destruição nos móveis e utensílios. Durante o processo, minha tia e seu filho, Abdul Rahim, também sofreram abusos. Abdul Fattah foi levado à prisão de Hebron, onde suportou duras sessões de interrogatório e tortura, enquanto tentavam fazê-lo admitir o envolvimento com Abu Ali, usando a falsa alegação de que este já havia confessado. No entanto, Abdul Fattah permaneceu firme em sua negação e, por isso, foi condenado a seis meses de detenção administrativa sem qualquer acusação formal. Abu Ali, por outro lado, recebeu uma sentença de cinco anos, baseada nas confissões de alguns jovens que, ao contrário de Abdul Fattah, não conseguiram suportar a pressão.
Esse episódio foi o marco inicial da jornada de minha tia por um novo mundo — o das prisões. Ela começou a visitar o marido uma vez por mês. No dia da visita, acordava antes do amanhecer, preparava o filho e saía, carregando-o no colo até o centro da vila. De lá, tomava um dos poucos carros que passavam em direção a Hebron. Na chegada, percorria uma longa caminhada até o prédio da prisão e do gabinete do coordenador militar. Ali, encontrava-se com centenas de pessoas, todas aguardando, como ela, para ver seus entes queridos. Nas filas, segurava seu documento de identidade, esperando que sua vez chegasse. Muitas vezes, no entanto, os guardas anunciavam que o lote estava completo, forçando-a a esperar o próximo. Ao chegar a uma pequena abertura na parede, entregava seu documento ao guarda, que o verificava antes de liberá-la para a seção feminina, onde era submetida a uma revista rigorosa e humilhante. Mas, segurando sua raiva, ela mantinha a calma, focada em garantir o encontro com Abdul Fattah, que aguardava ansiosamente. Após a revista, os visitantes eram guiados por corredores escuros até a sala de visitação. De frente para uma parede com janelas gradeadas, ela encontrava Abdul Fattah através das barras de ferro. Lágrimas escorriam dos olhos dos visitantes ao ver seus entes queridos, separados por grades e impossibilitados de um abraço ou de uma palavra mais íntima.
Mal recuperados da jornada, do cansaço e das humilhações, os visitantes eram logo interrompidos pelos guardas, que batiam palmas e declaravam o fim da visita. Com os prisioneiros sendo puxados para trás das portas de ferro, Abdul Fattah tentava conter as lágrimas, evitando que os guardas vissem seu sofrimento. Ele se fortalecia e, com voz firme, encorajava sua esposa: “A provação logo acabará, apenas mais cinco meses. Cuide de Abdul Rahim e de nossa casa. Mande minhas saudações à família e aos vizinhos.” Ela, por sua vez, enxugava as lágrimas com a ponta de seu lenço bordado, dizendo: “Não se preocupe, fique firme. Cuide-se.”
Enquanto isso, nas ruas e vielas, novos grupos e células de resistência se formavam por toda a Cisjordânia. Jovens partiam para os vales e montanhas para treinar com armas antigas, guardadas pelos pais ou avós durante anos, prontos para o confronto iminente. Apesar do armamento rudimentar e da inexperiência, esses jovens carregavam o fervor e o ímpeto de quem estava determinado a lutar, movidos pelo espírito indomável da juventude.
Naquela pequena loja, onde Abdul Fattah, o marido da minha tia, e Abu Ali costumavam se reunir com outros comerciantes nos dias frios para tomar chá, eram comuns as conversas sobre a luta, as prisões recentes de Abdul Fattah e Abu Ali, e a aparente futilidade de seus esforços. Ali, refletiam sobre o tempo que desperdiçaram, e um dos homens chegou a calcular que Abdul Fattah, ao ganhar três shekels israelenses por dia, perderia pelo menos quinhentos shekels durante seu período na prisão, sem mencionar a humilhação e a desvalorização de sua imagem e de sua família.
A situação econômica precária em que se encontravam, que os líderes israelenses percebiam como um potencial fator para incentivar a adesão à resistência (ou “atividades de sabotagem”), ao lado da necessidade israelense de mão de obra para desenvolver seu jovem estado, levou-os a considerar a abertura gradual de oportunidades de emprego para palestinos, embora com uma triagem de segurança rigorosa. O anúncio das novas autorizações de trabalho nos territórios ocupados em 1948, realizado pelos escritórios de passaportes, despertou um intenso debate entre a população palestina.
Na praça do bairro, onde os homens se reuniam diariamente, o assunto gerava opiniões divididas. Mesmo debilitado pela idade e pela saúde frágil, meu avô participava dessas discussões. Para alguns, trabalhar para Israel era impensável; era como colaborar na construção do estado inimigo, enquanto seus soldados se preparavam para lutar contra nosso povo e nossa nação. Trabalharem para Israel era, para eles, uma traição. Porém, outros, mais realistas, compreendiam que a realidade se impunha, e que a existência de Israel não seria abalada pela ausência de algumas centenas ou milhares de trabalhadores palestinos.
A verdade era que muitas famílias precisavam do básico — pão, leite — e, para alguns, trabalhar em Israel era uma necessidade, um meio de manter suas famílias em seus campos e vilas, em vez de forçá-los a partir. Para aqueles da loja em Hebron, aceitar trabalho em Israel era mais comum. Ali, o aspecto econômico era visto com pragmatismo; as oportunidades de trabalho representavam uma maneira de melhorar as condições de vida e dar mais estabilidade às famílias locais, fortalecendo sua determinação em permanecer na terra até que Deus trouxesse uma mudança.
Entretanto, entre os combatentes da resistência, especialmente em campos de refugiados como o Beach Camp, essa decisão era vista como um erro grave. Eles começaram a monitorar os que possuíam autorizações de trabalho, coletando-as para destruí-las depois de explicar os riscos e como isso comprometia a lealdade nacional. Em algumas ocasiões, aqueles que resistiam em entregar as autorizações eram golpeados com bengalas, esbofeteados ou repreendidos.
Um desses trabalhadores, desesperado, tentava resistir, apontando para os oito filhos que o aguardavam, passando fome, já que a ajuda da UNRWA era insuficiente. Implorava aos combatentes para manter sua permissão, suplicando que considerassem sua situação. Mas, com lágrimas nos olhos, os combatentes insistiam em tirá-la, forçados a confrontar a dura contradição entre a realidade implacável das necessidades básicas e os altos ideais nacionais que buscavam defender. Depois, sentavam-se em silêncio, em conflito, envergonhados pela situação, mas determinados a continuar sua luta.