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Foto do escritorSiqka

Imane Khelif, a mulher que engoliu o “feminismo branco” com cuscuz argelino

O feminismo branco persiste, e o caso da boxeadora argelina Emane Khelif serve como uma evidência flagrante dessa realidade. É profundamente lamentável que a controvérsia em torno da identidade de gênero de Khelif, medalhista de ouro nos Jogos de Paris 2024, revele uma lógica tão absurda quanto as próprias discussões sobre gênero. Mais perturbador ainda é a constatação de que as lutas sociais, de gênero e raciais continuam a ser travadas de forma segregada e, às vezes, elitista.

 

Embora possa haver o argumento de que, como homem, eu não tenha "lugar de fala" nesse debate, minha posição antirracista e anti-imperialista justifica meu engajamento. O conceito de "feminismo branco" pode não ser amplamente conhecido, e uma breve explicação se faz necessária. O termo critica as abordagens feministas que se concentram quase exclusivamente nas experiências e necessidades das mulheres brancas, frequentemente negligenciando ou marginalizando as questões enfrentadas por mulheres de outras etnias e origens, particularmente mulheres negras, indígenas, árabes e orientais. O feminismo branco pode priorizar questões como igualdade salarial e direitos reprodutivos sem considerar como essas questões impactam de maneira diferenciada mulheres de diversos contextos raciais e socioeconômicos.

 

Historicamente, essa exclusão foi evidente nas primeiras marchas sufragistas nos Estados Unidos, onde mulheres negras eram frequentemente relegadas ao fundo das manifestações ou explicitamente excluídas. O movimento sufragista, liderado majoritariamente por mulheres brancas, focava na obtenção do direito ao voto, ignorando as questões específicas enfrentadas pelas mulheres negras. Um exemplo foi a marcha sufragista em Washington, D.C., em 1913, onde Ida B. Wells, uma proeminente ativista pelos direitos civis, desafiou a segregação ao marchar ao lado de suas colegas brancas, resistindo às tentativas de marginalização dentro do próprio movimento.

 

O ativismo histórico de Ida B. Wells é um dos mais significativos para os movimentos feministas globais, mas sua relevância tem sido frequentemente subestimada devido à sua identidade negra. Se Wells fosse uma estadunidense branca, é provável que tivesse recebido um reconhecimento muito mais amplo. A contribuição de Wells para a luta pelos direitos civis e feministas, notadamente sua batalha contra o linchamento e sua defesa dos direitos das mulheres, merece um reconhecimento proporcional ao impacto de seu trabalho, frequentemente eclipsado por uma história de marginalização racial.

 

No contexto atual, a Islândia é frequentemente citada como um modelo de igualdade de gênero. Em outubro de 2023, uma greve massiva contra a disparidade salarial entre homens e mulheres paralisou o país, com a participação até da primeira-ministra, Katrín Jakobsdóttir. No entanto, é impossível ignorar que, naquela mesma semana, o genocídio palestino, com mulheres e crianças como principais vítimas, já se prolongava há mais de dez dias. Durante a onda de protestos na Islândia, não houve menção ao feminicídio das mulheres palestinas, o que evidencia uma realidade perturbadora: O salário das mulheres brancas era mais importante que a vida das mulheres palestinas.

 

Infelizmente, a situação para Khelif, após sua vitória nas oitavas de final em Paris 2024, foi semelhante. Ela enfrentou uma campanha de ódio nas redes sociais, com comentários racistas e insinuações sobre seu gênero. Embora a questão tenha recebido alguma atenção da mídia e de grupos feministas legítimos, muitos outros grupos se mostraram omissos, revelando uma hierarquização das lutas, onde a visibilidade e a importância atribuídas às questões enfrentadas por mulheres brancas parecem sobrepor-se aos horrores vividos por mulheres de outras partes do mundo.

 



A batalha travada por Khelif fora dos ringues em 2024 não foi um evento isolado. Aos 16 anos, ela se destacou no futebol em sua aldeia rural de Tiaret, desafiando a resistência e a hostilidade dos meninos. Sua habilidade em desviar dos ataques acabou direcionando-a para o boxe, onde enfrentou desafios ainda mais significativos. O custo e a necessidade de viajar semanalmente para treinar foram obstáculos adicionais, que Imane superou vendendo sucata e cuscuz para financiar suas viagens e sessões de treinamento. Em 2023, Khelif foi desclassificada nas semifinais do Campeonato Mundial em Nova Délhi devido a testes de elegibilidade de gênero realizados pela Federação Internacional de Boxe (IBA), que não é reconhecida pelo Comitê Olímpico Internacional (COI). Além das adversidades dentro do ringue, Khelif também enfrenta ignorância e preconceito. Questiona-se se a situação teria sido diferente se ela não fosse árabe. Como teria sido a repercussão se Khelif fosse islandesa, francesa ou de outra nacionalidade, mas de pele branca?

 

No Brasil, diversos grupos feministas, ao criticarem o uso do véu e outras formas de vestimenta religiosa, frequentemente desconsideram as dinâmicas culturais e os desafios específicos enfrentados por mulheres de diferentes sociedades. Embora a luta por igualdade de gênero seja crucial e urgente, quando se torna seletiva e predominantemente branca e ocidental, ela acaba se transformando em um clube elitista.

 

Desde 31 de janeiro de 2024, o que muitos – machistas ou feministas brancos – não sabem é que Khelif é embaixadora nacional da UNICEF. Quando assumiu essa posição e foi entrevistada pela UNICEF, Khelif disse: “Meu sonho é ganhar uma medalha de ouro. Se eu ganhar, mães e pais poderão ver até onde seus filhos podem ir. Quero inspirar particularmente meninas e crianças desfavorecidas na Argélia.” Como sabemos, agora Khelif é campeã olímpica, e esperamos ansiosos para vê-la continuar sua trajetória, inspirando crianças do mundo a lutar contra o racismo e comer os “feminismo branco” com cuscuz argelino.

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