Por falar do Afeganistão... O Afeganistão também é...
No ano passado, após a volta dos talibãs e em meio à vasta proliferação de textos e transmissões ao vivo sobre o tema, escrevi um texto que agora gostaria de divulgar e compartilhar com vocês. Em todos os jornais, sob todos os holofotes, estão o Afeganistão e a pretensa reconquista de seu território por “eternos estudantes” (leia-se, não formados?) de teologia (talib'an), mais habilidosos no manuseio da Kalachnikov do que da fiqh, do ijma ou do ijtihad, entre tantas outras disciplinas islâmicas. Há algumas semanas, as redes sociais (Facebook, Twitter ou Instagram) têm sido inundadas por “afeganistólogos”, que, da noite para o dia, se tornaram “especialistas”, “peritos”, com uma opinião sobre tudo e, sobretudo, uma opinião. No entanto, o Afeganistão não pode ser reduzido a essa caricatura digna de Hollywood, em que se misturam turbantes, chadris, burqas e o cultivo de papoulas, tendo como pano de fundo estradas poeirentas, por onde centenas de milhares de pessoas tentam escapar do horror, presente há 40 anos na longínqua “terra dos Pachtuns”. O Afeganistão também é uma história de 100.000 anos, como demonstram os sítios arqueológicos de Aq Kopruk, na província de Balque, ou na bacia hidrográfica do Helmand. Falar do Afeganistão é falar, também, dos impérios aquemênida (Ciro II e Dario I), grego (Alexandre, o Grande) e indo-gregos. Ou seja, estamos muito, mas muito distantes do eterno bordão, já consagrado, de um “Afeganistão, cemitério de impérios” – imagem tão simplista quanto estigmatizante! O Afeganistão não é um cemitério de impérios, mas, sim, um lugar onde impérios são erguidos, desfeitos, dialogam e constroem novos impérios e civilizações. É o encontro de Buda e Zeus, que, graças a um sutil Kama Sutra, gerou um sincretismo cultural mágico e portentoso, chamado greco-budismo, com seus monastérios e estupas. É a Rota da Seda, que uma China predatória e ambiciosa busca reinstaurar, negociando, desde já, vultosos contratos com os talibãs: “business is business”, diriam os americanos, obcecados pelo lítio afegão! E o que dizer dos pobres Budas de Bamiyan, torturados (se é que é possível torturar estátuas!) e logo destruídos pelos talibãs, em 2001? É o Império Sassânida, o Império Gasnévida de Mamude de Gásni, que sonhava em reunir, num mesmo time, Ferdusi, Albiruni e Avicena (um pouco como o Paris Saint-Germain, ao reunir Messi, Neymar e Mbappé!). O Afeganistão também é literatura, na prosa de Atiq Rahimi, Mohammad Hossein Mohammadi, Khaled Hosseini, Chekeba Hachemi, Mohammad Daud Miraki e Spôjmai Zariâb, ou ainda, na poesia de Abdul Ghafoor Liwal, que conseguem, com sua estética, versos e escrita, destruir ou abalar a verborreia inútil das fatwas talibânicas! Esqueçam os nomes de Mollah Omar ou Karzai – e lembrem mais desses outros! O Afeganistão também é cinema, nas lentes de Hassan Fazili, que foi condenado ao exílio e teve que imigrar ilegalmente para a Europa, ou da jovem Shahrbanoo Sadat, de Sahraa Karimi, entre tantos outros... Lembrem desses nomes! O Afeganistão tem uma culinária surpreendente! O Naan-e-Afghani é um delicioso pão afegão, e o que dizer dos korma (guisados), do Kabuli Palau (arroz pilaf), do mau e dos ashaqs! O Afeganistão também é artesanato, com seus tapetes magníficos, cujos fios tecidos contam a história de um país igualmente magnífico. Tamanha é a perfeição dos tapetes que se tem por hábito molhá-los um pouco, para deformá-los e não incorrer na ira de Deus, o único ser perfeito do universo! O Afeganistão é tudo isso ao mesmo tempo. Se você, por acaso, encontrar afegãos, lembre-os de quem eles realmente são! Converse sobre sua história fantástica, sua cultura, sua culinária, seus escritores – ajude-os a não esquecer quem são nesse momento de reconstrução, pois, como diz o provérbio de origem africana: “quem se esquece de onde veio, não sabe para onde vai”.