Miriam
Há muito tempo, uma jovem, protegida pela sombra de uma tamareira, enfrentava sozinha as dores do parto. Seu rosto, banhado por lágrimas, clamava a Allah por alívio da dor que a consumia.
Sensível à súplica da jovem, Allah enviou o anjo Jibril – Gabriel – para confortar seu coração aflito. Com uma voz serena, o anjo revelou-lhe a presença divina ao fazer brotar um riacho aos seus pés, uma fonte de vida em meio à provação. Seguindo as instruções do anjo, a jovem sacudiu o tronco da tamareira, e das palmas caíram tâmaras, frutos da benevolência de Allah. Com o riacho a seus pés e as tâmaras em mãos, a jovem encontrou a força necessária para dar à luz a seu filho, um presente divino em meio ao deserto de sua dor.
Após o nascimento, a jovem, agora mãe, voltou à sua cidade com o filho nos braços. Em vez de ser recebida com celebração, ela foi alvo de olhares acusadores e palavras amargas. Surpresos e incrédulos, os moradores questionavam sua honra, sem compreender o milagre que se desdobrava diante de seus olhos. Então, o recém-nascido, com a sabedoria e a autoridade dos escolhidos, defendeu sua mãe da injustiça. Com palavras que ecoaram no silêncio, ele proclamou sua missão divina e a pureza de sua mãe, desafiando aqueles que ousavam difamá-la.
Apesar da hostilidade persistente, Allah, em sua infinita sabedoria, instruiu a jovem a fugir para terras ao sul, em busca de proteção para seu filho. Assim, mãe e filho iniciaram uma jornada através das areias escaldantes do deserto, em direção ao Egito. Ao longo do caminho, Allah providenciou tâmaras para sustentá-los. Assim, a jovem e seu filho, escolhidos para uma missão sagrada, tornaram-se os refugiados palestinos mais conhecidos da história, cujas vidas atravessaram eras e continentes.
Eu ouvi e li tantas vezes a história de Maryam e do profeta Issa no Alcorão que não consigo me lembrar da primeira vez, mas recordo vividamente da voz serena de yama, minha mãe, ao contar. Esta narrativa é tão universal que é difícil imaginar alguém que nunca a tenha ouvido. Talvez você os reconheça pelos nomes ocidentais: Jesus, o profeta, e sua mãe corajosa, Maria. Em árabe, eles são conhecidos como Isa e Maryam. Não por acaso, meus avós, refletindo a reverência e o respeito que nossa cultura tem pela mãe do profeta, escolheram Miriam como nome para minha mãe[1].
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Miriam, tinha 17 anos quando suas irmãs invadiram seu quarto com uma notícia emocionante: "Parece que encontraram um pretendente para você". As irmãs não tinham muitos detalhes, mas ouviram dizer que Ahmad Saleh Daoud não era um velho gordo.
As famílias Deib e Daoud já se conheciam por frequentarem a mesquita al-Nabi Huda, a única na cidade. No entanto, as mulheres da família Daoud decidiram visitar Miriam para conhecê-la melhor. Ambas as famílias residiam na cidade de al-'Abbasiyya, localizada no distrito de Yaffa. Durante a década de 1940, embora não fosse muito grande, a cidade abrigava quase seis mil habitantes. A maioria da população, incluindo as famílias Deib e Daoud, era muçulmana, havendo apenas cinco famílias cristãs na região. Embora uma comunidade judaica estivesse inicialmente presente na Palestina naquela época, os colonos judeus chegaram a al-'Abbasiyya somente após o início das imigrações ilegais, e mesmo assim seu número não ultrapassava duzentos.
Ahmad Daoud, o mais velho de onze irmãos, aguardava ansiosamente notícias sobre o encontro. "Ela é bonita?" foi sua primeira pergunta. Suas irmãs, cuidadosas em sua avaliação, viam Ahmad como mais do que apenas o irmão mais velho; elas jamais aprovariam uma mulher que não estivesse à altura de seus padrões. "Além de bonita, ela tem um corpo muito belo", responderam, deixando Ahmad empolgado.
O destino da Palestina pairava incerto, mas para Miriam e Ahmad, que não se envolviam em questões políticas, o único futuro que vislumbravam era aquele que poderiam construir juntos. Ahmad se apaixonou à primeira vista, dizia ele. Ele estava sentado na casa da família de Miriam, quando ela entrou na sala para servir o café. Enquanto as irmãs se deslumbravam com um bracelete com várias medalhas em formato de moedas palestinas – adorno usado apenas pelas mulheres mais ricas –, discretamente Miriam desviou o olhar das preciosidades para se fixar apenas em Ahmad.
O casamento não estava sob o controle de nenhum dos noivos, mas ambos ansiavam pelo acordo entre as famílias, na esperança de ao menos trocarem as primeiras palavras. Por sorte, o destino sorriu para eles, e talvez as joias que os Daoud levaram como presente tenham ajudado um pouco.
Em seu casamento, Miriam irradiava uma luz própria, mais intensa que qualquer joia que pudesse usar. Mesmo o bracelete com suas medalhas de ouro parecia opaco diante do brilho que emanava dela. Seu vestido, imaculado com nossos tradicionais bordados não poderia ser entregue tão fácil aos invasores.
O começo da nova vida como membro da família Daoud foi desconcertante. Contudo, Ahmad e suas irmãs a tratavam com carinho, enquanto os pais a acolhiam como uma filha. Os Deib reconheceram que ela seria cuidada e protegida, e assim, Daoud e Deib se uniram em uma só família.
A vida de Miriam e Ahmad seguia seu curso, e em pouco tempo ela estava grávida, trazendo ainda mais felicidade ao jovem casal e a todos os Deibs e Daouds.
Enquanto dentro de casa reinava a paz e felicidade, do lado de fora, uma matilha de lobos famintos espreitava, esperando o momento certo para atacar. Em 13 de dezembro de 1947, enquanto minha mãe descansava com a barriga que começava a crescer, foi despertada pelos estrondos das explosões e tiros que faziam tremer as paredes da casa. As milícias do Irgun Zvai Leumi não esperaram a retirada dos britânicos para lançarem uma série de ataques devastadores em dezenas de cidades e vilarejos por toda a Palestina. Em al-'Abbasiyya, quatro veículos invadiram a cidade, disfarçados de soldados britânicos os milicianos passaram despercebidos aos olhos árabes, lançando granadas de mão e disparando indiscriminadamente contra as casas. O caos se instalou nas ruas, palestinos foram baleados em cafeterias, cargas explosivas foram detonadas em casas e carros locais.
Apesar das alegações britânicas de tentarem impedir o ataque, a realidade estava estampada nas páginas do jornal Filastin na manhã seguinte. As tropas britânicas chegaram ao local enquanto o ataque estava em pleno curso, mas não quiseram intervir de forma eficaz. Cercaram parcialmente a aldeia, deixando uma rota de fuga aberta ao norte de al-'Abbasiyya para os agressores escaparem impunes. Sete vidas foram ceifadas naquela noite em nossa cidade, e outros sete ficaram gravemente feridos. Por sorte, as famílias Daoud e Deib não sofreram tais perdas, mas no dia seguinte todos estavam nas ruas para lamentar os mártires e cuidar de seus vizinhos.
A verdade é que os britânicos relutavam em confrontar qualquer uma das milícias judaicas, especialmente o Irgun. Quando o Irgun entrou em al-'Abbasiyya, tanto a organização quanto seu líder Menachem Begin eram oficialmente considerados terroristas pelos britânicos. Um título que não os impediu de cometer esse e outros crimes atrozes ao longo daqueles meses, o pior deles aconteceu no início de abril do ano seguinte.
Logo que meu irmão Mahmud nasceu, entre os dias 9 e 11 de abril, antes do amanhecer, as milícias do Irgun Zvai Leumi e Stern Gang[2] invadiram Deir Yassin, um vilarejo que havia firmado um pacto de não agressão com os sionistas. Os 400 moradores, grande maioria pastores, acordaram com explosões de granadas atiradas contra suas casas. Os que ousaram sair foram surpreendidos por rajadas de metralhadoras. Homens foram fuzilados a sangue-frio, as mulheres não tiveram a mesma sorte de uma morte rápida, antes elas foram abusadas em frente aos seus pais, mães e filhos, para só então serem fuziladas. Concretizado o massacre, as casas foram saqueadas e os corpos foram queimados, dentre eles havia trinta bebês, os poucos sobreviventes foram obrigados a marchar por bairros judeus em Jerusalém e depois foram assassinados. Menachem Begin, visando causar pânico nos palestinos, convocou a imprensa para exibir os cadáveres como troféu. Aquele ataque tinha como intuito principal servir de alerta aos palestinos de que não havia meios para resistir e aqueles que tentassem, seriam trucidados. O Plano Dalet deu certo, cada dia que passava mais e mais cidades eram tomadas e pilhadas.
Quando as milícias sionistas trouxeram a Nakba até nossas portas, minha mãe atravessou o país de uma ponta a outra, carregando meu irmão Mahmud nos braços até Jericó. Enquanto seus pais permaneciam em Ramallah e suas irmãs partiam para outras cidades com as famílias de seus maridos, a vida dela, tão fiel à sua fé, mudou rapidamente, de maneiras que jamais imaginaria. Yama era forte e devota a Deus, assim como a mãe do profeta. Por mais provações que enfrentasse e mais dificuldades que encontrasse, ela sabia que Allah sempre estaria presente para prover as tâmaras em seu caminho.
[1] Maria e Miriam são variantes do mesmo nome, derivado do hebraico "Miryam". No grego antigo, foi adaptado como "Mariam" e depois simplificado para "Maria" no latim. Em árabe, o nome é "Maryam". Essas variações refletem adaptações culturais e linguísticas nas tradições judaica, cristã e islâmica, onde todas essas figuras são profundamente reverenciadas.
[2] O Stern “LEHI” foi considerado a organização mais fanática e perigosa Mandato Britânico. Em janeiro de 1941, o Stern enviou uma carta ao embaixador da Alemanha nazista sugerindo união dos esforços entre judeus e nazistas contra os ingleses. Yitzhak Shamir, líder do Stern, que tinha conhecimento desta carta, seria eleito Primeiro-ministro de Israel em 1983. Em 1993 Yasser Arafat, teve conhecimento desta carta, se recusou a usá-la. Esta carta está guardada nos arquivos do Ministério de Relações Exteriores em Berlim, e nos arquivos do Yad Vashem (Memorial do genocídio), em Jerusalém, sob a cota E 234151-8.