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O Padrão de Ocultação: Como a Indústria da Desinformação brasileira invisibiliza a opressão na Palestina

Há um ditado popular que afirma: "Quando um cachorro morde uma pessoa, isso não é notícia; mas quando uma pessoa morde um cachorro, isso é notícia." Essa máxima, serve como um ponto de partida para a análise dos critérios de noticiabilidade que governam a Indústria da Desinformação no Brasil. O interesse midiático, mais do que qualquer princípio abstrato de relevância informativa, é construído sobre a espetacularização do incomum, do inesperado, do que foge ao ordinário. É assim que o ineditismo, a excepcionalidade, adquirem centralidade na escolha do que será transformado em notícia.

No contexto da ocupação israelense na Palestina, essa lógica revela-se particularmente perniciosa. Desde 7 de outubro de 2023, uma data marcada pelos ataques do Hamas, observamos uma cobertura midiática massiva e repetitiva dos atos "terroristas" cometidos pela organização palestina. Tal cobertura, sem dúvida, remete ao cenário descrito pelo ditado popular: a "pessoa mordendo o cachorro". A excepcionalidade do evento foi amplificada por uma imprensa ávida por retratar o ocorrido como um rompimento com a normalidade. Esse mesmo fervor jornalístico não se manifesta com igual intensidade, ou mesmo com frequência, quando o assunto é a violência cotidiana e estrutural imposta pelo Estado de Israel sobre os palestinos ao longo de mais de 76 anos de ocupação. Esse fenômeno é o que Perseu Abramo identificou como o "Padrão de Ocultação". Segundo Abramo, a imprensa adota uma prática de silêncio deliberado em relação a determinados fatos, construindo uma realidade mediada por escolhas editoriais conscientes [1]. De fato, não seria razoável esperar que todo e qualquer acontecimento no mundo fosse noticiado por todos os veículos de comunicação; há, certamente, uma pluralidade de enfoques que atende a diferentes áreas de interesse — esportes, meio ambiente, cultura, entre outros. Contudo, no campo das editorias que se propõem a tratar de questões de interesse público, como política internacional, economia ou direitos humanos, as omissões são fruto de decisões intencionais e articuladas no planejamento editorial.

A escolha de não dar visibilidade aos crimes de guerra cometidos por Israel contra os palestinos, ou de minimizar a violação sistemática dos direitos humanos sob o regime de apartheid, é uma decisão editorial que revela o poder da mídia em moldar percepções. A lógica é simples: aquilo que não é noticiado não existe no imaginário coletivo. Se a imprensa omite as atrocidades da ocupação israelense, a ocupação torna-se, aos olhos da opinião pública, uma questão de menor relevância ou até mesmo inexistente. Assim, quando o Hamas realiza seus ataques, esses são enquadrados imediatamente como "terrorismo", desprovidos de qualquer contexto histórico ou político. Este é o efeito mais nefasto do "Padrão de Ocultação": a criação de uma narrativa invertida, onde o oprimido torna-se agressor, e o ocupante, a vítima. A imprensa, ao desconsiderar os 76 anos de ocupação e opressão sistemática, falha em proporcionar ao público uma compreensão mais completa do conflito. A consequência disso é a legitimação de ações desproporcionais, como os bombardeios indiscriminados que atingiram civis, escolas, hospitais e campos de refugiados na Faixa de Gaza e que datam bem antes de 7 de outubro. Ao ocultar a realidade da ocupação, a mídia perpetua uma lógica colonialista que desumaniza os palestinos e justifica a violência contra eles.

 

Após o 7 de outubro de 2023, a mídia hegemônica não poupou adjetivos ao se referir ao Hamas, mas optou, uma vez mais, por ocultar importantes aspectos da história. O Hamas, fundado em 1987, durante o início da Primeira Intifada, inicialmente concentrava seus ataques em alvos militares israelenses, evitando, até 1994, atentados contra civis. Esse cenário mudou radicalmente após o massacre de Baruch Goldstein, um colono judeu nascido nos Estados Unidos, que, em 1994, invadiu uma mesquita em Al-Khalil (Hebron) e assassinou 29 palestinos em um protesto violento contra os Acordos de Paz de Oslo I [2]. Este evento, que foi amplamente ignorado pela mídia à época, transformou a estratégia de resistência do Hamas. O grupo justificou sua mudança tática com base no princípio de reciprocidade, argumentando que, se o Estado de Israel tinha o direito de atacar civis palestinos, os grupos de resistência palestinos também o teriam. No entanto, é preciso destacar que o Hamas é apenas uma das diversas facções de resistência à ocupação, e suas táticas não são universalmente aceitas nem mesmo entre os próprios palestinos. A Organização para a Libertação da Palestina (OLP) e a Autoridade Palestina (AP), por exemplo, têm criticado a abordagem militar do Hamas, preferindo uma luta mais diplomática.

É nesse contexto que devemos analisar a cobertura jornalística do 7 de outubro. A mídia brasileira, ao reportar os acontecimentos daquele dia, deu espaço quase exclusivo à narrativa israelense. O "Jornal Nacional" dedicou 33 minutos de sua programação à divulgação de comunicados da Embaixada de Israel no Brasil, da Confederação Israelita do Brasil (CONIB), da Federação Israelita do Estado de São Paulo e do Congresso Judaico Latinoamericano (CJL). Em contraste, não houve nenhuma menção às declarações da Embaixada Palestina no Brasil ou da Federação Árabe Palestina no Brasil (FEPAL). Novamente, o principal jornal do país, exibiu imagens e entrevistas com muitos moradores de Israel, mas apenas uma única fala de um senhora palestina fugindo de Gaza, na qual ela diz: “Claro que estamos com medo. Eles podem nos varrer da face da Terra. Que Deus os proteja e a nós também” [3]. Essa fala desconstrói a narrativa de que todos os palestinos são terroristas, especialmente quando uma senhora, transformada em refugiada, pede proteção divina até mesmo para os habitantes do Estado responsável por sua situação.

A ausência de vozes palestinas na cobertura jornalística reflete o que Perseu Abramo chamou de "Padrão de Ocultação". O apagamento deliberado das narrativas palestinas na imprensa brasileira não é acidental; trata-se de uma escolha editorial consciente que molda a percepção pública. Ao ocultar o histórico de 76 anos de ocupação, a mídia contribui para a construção de uma memória coletiva distorcida, onde o foco reside nos ataques do Hamas, enquanto a violência estrutural e cotidiana da ocupação israelense é relegada ao esquecimento.

Nos dias subsequentes ao 7 de outubro, a Indústria da Desinformação continuou a seguir este padrão. As cenas dos bombardeios israelenses sobre Gaza, que atingiram civis, hospitais e campos de refugiados, foram escassamente noticiadas, e quando o foram, raramente traziam as vozes dos palestinos. Em entrevista concedida por Ualid Rabah, presidente da FEPAL, ele afirma que a Globo não deu qualquer resposta aos pedidos de cobertura balanceada, enquanto outros veículos, como Band e SBT, adotaram posturas intermediárias, ainda que mantendo-se dentro da narrativa hegemônica pró-Israel e que da pior maneira, A Record emitiu diversas notícias com apelo religioso favorecendo e legitimando a agressão israelense. [4]

Esse padrão de ocultação, que exclui sistematicamente o outro lado da história, não é apenas uma questão de desequilíbrio editorial, mas uma ferramenta poderosa de manipulação da memória coletiva. Ao omitir a longa história de violência e opressão enfrentada pelos palestinos, a mídia contribui para legitimar a violência contra eles, invertendo a lógica do opressor e do oprimido. Assim, o que resta na memória do público brasileiro são as imagens dos militantes do Hamas invadindo Israel e sequestrando civis, enquanto as causas profundas do conflito são intencionalmente silenciadas.

Essa prática deliberada de ocultação é parte de uma estratégia mais ampla de desinformação, que visa manter o público desinformado sobre a realidade da ocupação israelense. Ao longo das décadas, a mídia ocidental tem consistentemente falhado em cobrir de forma justa e equilibrada os crimes de guerra cometidos por Israel, preferindo retratar a resistência palestina como terrorismo, sem contextualizar a violência sistemática que a precede.

Abramo estava certo ao afirmar que a imprensa não apenas relata a realidade, mas a constrói. A categorização de fatos como "jornalísticos" ou "não-jornalísticos" não é uma distinção objetiva, mas sim um reflexo das visões de mundo e das escolhas ideológicas dos editores e proprietários de veículos de comunicação. A ausência de cobertura sobre determinados eventos equivale, na prática, à sua eliminação da esfera pública. Quando a mídia opta por ignorar os crimes de guerra cometidos por Israel, está, de fato, participando de uma construção artificial da realidade, que substitui a verdade por uma ficção conveniente. Neste contexto, é necessário questionar o papel da mídia como formadora de opinião pública. A quem interessa essa narrativa que oculta a brutalidade da ocupação e amplifica a violência de quem resiste? Ao negar aos palestinos a dignidade de serem reconhecidos como vítimas de um regime colonial, a mídia reforça estruturas de poder globais que sustentam a permanência do status quo. Como acadêmicos e críticos da Indústria da Comunicação, devemos desvelar esses mecanismos de ocultação e expor a realidade por trás da construção midiática, que transforma a exceção na regra, e a violência cotidiana em algo invisível. A tarefa de desconstruir o "Padrão de Ocultação" é, assim, uma responsabilidade urgente. Para além de meras discussões sobre critérios de noticiabilidade, trata-se de uma luta pela verdade e pela justiça, que começa por reconhecer que, em pleno século XXI, a Palestina continua a ser uma nação ocupada e silenciada.

 

Referências

[1] P. Abramo, Padrões de manipulação na grande imprensa, São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2016.

[2] Monitor do Oriente, “Hebron, a cidade de Abraão,” Al-Khalil, 2023.

[3] Jornal Nacional, Jornal Nacional, Rio de Janeiro, 7 de outubro de 2023.

[4] U. Rabah, “Entrevista com Ualid Rabah, presidente da Federação Árabe Palestina (FEPAL),” Guarujá, 2024.

 

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