O Tecelão de Histórias
Em árabe, avô se pronuncia "sidi", e provavelmente essa foi a palavra que mais pronunciei na infância. Meu avô – ou sidi como prefiro continuar chamando – era um herói para todos nós. Diferente de meu pai, de alguma forma ele conseguiu encontrar a paz e certa estabilidade em Jericó e decidiu ficar por ali, esperando pela hora que pudesse novamente utilizar aquela chave que ele guardava com tanto carinho.
Com o passar do tempo, ele conseguiu substituir a tenda improvisada por uma casa alugada na cidade, que ficava lotada de filhos, filhas, netos e netas durante as férias ou feriados. Tenho uma memória quase palpável daquela casa, a começar por uma parreira de uvas que fornecia sombra fresca desde a parte de trás do terreno até a entrada. Além do conforto e proteção contra o sol, essa parreira nos presenteava com os mais deliciosos sabores da minha infância. Por dentro, a casa era espaçosa, ou talvez eu fosse tão pequena na época que não conseguia percebê-la de outra maneira. Lembro-me apenas de um grande quarto onde nos amontoávamos para dormir.
Não havia um único Ramadã que não passássemos em Jericó. Sendo o Ramadã o principal feriado religioso para os muçulmanos, todos se reuniam na casa dos meus avós. Era a época em que eu reencontrava meus muitos primos para brincadeiras intermináveis. A casa ficava repleta de crianças, e éramos todos uma fonte constante de diversão para o meu avô, que era nosso adulto favorito.
Durante o Ramadã, os muçulmanos jejuam do nascer ao pôr do sol, e sendo minha família religiosa, essa prática se aplicava a todos nós. Seguindo o calendário lunar, o Ramadã é celebrado em lembrança da revelação do Alcorão ao profeta Muhammad (S.A.W)[1]. Esse período é um momento de profunda reflexão espiritual para todos os muçulmanos do mundo, em que buscamos elevar o espírito acima das vontades terrenas. Isso se manifesta em práticas religiosas que incluem caridade, fraternidade, estreitamento dos laços familiares, leituras corânicas individuais ou em grupo e, o mais importante, o jejum, rompido com uma refeição especial ao pôr do sol.
Minha avó, mais séria que sidi, passava a maior parte do dia na cozinha, preparando as refeições que só poderíamos comer após o pôr do sol. Era uma tortura passar o dia com fome, aguardando ansiosamente para saborear as delícias preparadas por ela e minhas tias. Ela desejava que passássemos mais tempo com ela e frequentemente nos chamava para aprender a cozinhar. Mas eu, com meus cinco anos, não estava interessada nisso; minha única vontade era brincar na rua com meus irmãos, primos e primas.
Pela manhã, escapávamos de minha avó. Depois de um dia inteiro jogando bola, soltando pipas, correndo e se escondendo, voltávamos todos para casa. Meu avô sorria ao ver as crianças sujas de terra, minha avó tinha uma reação oposta e não nos deixava quebrar o jejum enquanto não nos livrássemos daquele estado deplorável e das camadas de sujeira que trazíamos da rua em nossos corpos.
Quando o Ramadã acabava, voltávamos a rotina normal e sem a obrigação do jejum, meu avô incumbia a mim a missão de providenciar o café da manhã para turma. Assim que amanhecia ele me dava cinco moedas de dinar e uma lista, que eu já havia decorado. Pães, tomates, pepinos, queijo - esses eram os itens para o café da manhã. Ele sempre frisava que o dinheiro tinha que ser suficiente para adquirir tudo e que eu deveria ser responsável, fazendo os cálculos por conta própria; se eu exagerasse em alguma compra, não sobraria dinheiro para outro item. Partia eu, cheia de entusiasmo, para minha missão matinal, e logo percebi que o dinheiro não dava conta de comprar tudo em quantidades iguais a da lista. Assim, se ele pedisse cinco tomates, eu solicitava ao vendedor que colocasse apenas quatro, garantindo que eu pudesse receber o troco. Um dia, sidi questionou como eu conseguia fazer o dinheiro render, pois, por mais que ele tentasse, nunca dava certo. Tive que ser honesta. Pensei que ele se zangaria, mas esse sentimento não fazia parte dele.
Além de todas as qualidades já mencionadas, havia um motivo especial que tornava sidi meu adulto favorito: ele era um exímio mestre na arte de contar histórias, o melhor de todo mundo. Nós, seus netos e netas, éramos sua fiel plateia, disputando cada centímetro de espaço à luz oscilante do lampião. Entre os feixes de luz e as sombras assustadoras que dançavam ao seu redor, buscávamos captar as expressões no rosto daquele que protagonizava as próprias aventuras. Para nós, ele era tão sábio e antigo quanto os profetas, tão corajoso quanto os guerreiros e tão místico quanto os djins que habitavam suas histórias.
Ao deitar-me para dormir, revisava cada frase, cada expressão, e recriava mentalmente cada imagem que o jogo de luz e sombra desenhava nas paredes, recriando a imagem dos monstros das histórias de meu avô.
Escondida sob o cobertor, sussurrava preces a Allah, implorando por proteção. E de alguma forma, parecia funcionar, pois Allah enviava seu mais valente guerreiro para me salvar; o guerreiro era meu avô. Ao perceber meu medo, ele me convidava a aninhar entre ele e minha avó. Suas costas constituíam uma muralha de segurança, enquanto as mãos afetuosas de minha avó acariciando meu cabelo me proporcionavam o conforto e o carinho necessários para mergulhar em um sono profundo.
Em casa, na Jordânia, especialmente nos campos de refugiados palestinos, reinava o caos e a improvisação, frequentemente acompanhados por conflitos entre os palestinos e as forças policiais jordanianas. Contudo, quando eu estava com meus avós em Jericó, experimentava uma espécie de trégua daquela turbulência.
Quando os primeiros botões de flores despontavam no oásis, era o sinal aguardado dos nossos piqueniques familiares. Sob a majestosa sombra da figueira ancestral de Jericó, meu avô acendia a fogueira enquanto minha avó preparava a refeição e nós, crianças, brincávamos livremente na praça ensolarada. Após aventuras entre risos, corridas e escaladas em árvores, vovó nos chamava para comer. Sentávamo-nos em círculo no chão, ao redor do banquete que, com a devoção de uma grande cozinheira, ela preparara. Todos compartilhávamos da refeição no mesmo prato. Eu era só uma criança, talvez por isso não compreendesse plenamente, mas aquele gesto de partilhar a comida em um único prato simbolizava a mais profunda união entre nós.
Fartos e sem energia para brincar, aproveitando o tempo para fazer a digestão, meu avô se preparava para protagonizar mais uma de suas histórias. "Há muitos anos", dizia batendo no tronco da figueira, "aqui morava um cobrador de impostos muito rico". E prosseguia:
– Apesar de toda sua riqueza, o coração daquele homem estava vazio. Um dia, ouviu dizer que um profeta havia chegado ao oásis de Jericó e estava preenchendo os corações das pessoas com amor, algo que ele sabia que precisava. Curioso, o cobrador de impostos decidiu ver esse profeta com seus próprios olhos. Ele seguiu a multidão que rodeava o profeta, mas não conseguia vê-lo por ser muito baixo. Fazendo uma pausa dramática, meu avô olhava para o topo da figueira e apontava para o alto, “ele subiu lá naquele galho mais alto” e continuava:
– As pessoas começaram a caçoar do homem, mas ele não se importava. Enquanto procurava com os olhos na multidão, o profeta se aproximou da figueira e olhou para cima, dizendo ‘Zaqueu, desce depressa, porque hoje vamos jantar juntos’. O homem desceu da árvore muito emocionado e recebeu o profeta em sua casa. Aquele profeta, que havia cruzado toda a Palestina, era como todos nós: ele havia se tornado refugiado ainda na infância. Seu nome era Issa, ou, em português, Jesus.
Ao concluir a narrativa, os olhos do meu avô se embaçavam. Aquela figueira sob a qual estávamos abrigados tinha sido testemunha do encontro entre Zaqueu e Jesus, e mesmo tanto tempo depois, ela permanece de pé no mesmo lugar, no centro de Jericó. Sempre que reflito sobre essa história, me vejo como aquela árvore. Sei que, embora minhas sombras se projetem em outras terras, minhas raízes estão tão profundamente fincadas no solo palestino quanto as daquela figueira.
[1] Os muçulmanos usam as siglas "SAW" ("Sallallahu Alayhi Wasallam", que significa "Que a paz e as bênçãos de Deus estejam sobre ele" em árabe) após mencionar o nome do Profeta Maomé. Essas siglas expressam respeito e reverência ao Profeta. Para tornar a leitura mais fluida para leitores ocidentais, essa prática foi adotada apenas na primeira citação de seu nome.