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Polêmica prisão de judeu ortodoxo em sinagoga israelense gera uma visão deturpada da realidade. Saiba a diferença entre as correntes políticas e ideológicas judaicas

Ontem, o Jornal Clandestino reportou a prisão de um judeu ortodoxo em uma sinagoga israelense. A notícia, divulgada tanto no jornal israelense Haaretz quanto no palestino Eye On Palestine, desencadeou uma polêmica preocupante, revelando preconceitos que ainda permeiam o debate público. O preconceito, que se baseia em julgamentos sem conhecimento prévio, é um dos maiores desafios que este canal (clandestino) se propõe a combater; por isso escrevi esta postagem para esclarecer alguns pontos e trazer mais clareza ao assunto.


Primeiramente, é fundamental entender que conceitos como judaísmo, semitismo e sionismo são distintos e não devem ser confundidos. Neste ponto, recorro a trechos do meu livro “Artigo 19: Violação da Liberdade de Opinião e Expressão na Palestina” para trazer mais precisão à discussão:

 

 

 

Sionismo é uma palavra derivada de Sião, nome bíblico de uma colina localizada em Jerusalém. O Sionismo foi um termo criado por Nathan Birnbaum no século XIX para servir como apelo religioso afim de unir os professantes do judaísmo entorno de uma identidade nacional e, assim fundar um Estado judeu. [...] A palavra sionismo de Birnbaum foi disseminado entre a comunidade europeia por Theodor Herzl durante o Primeiro Congresso Sionista realizado em Basiléia, Suíça, em 1897. Durante o congresso, os primeiros sionistas destacaram os pogroms no leste europeu para fundamentar a necessidade de criar uma nação judaica independente. Segundo Stuart Hall, eventos históricos como os pogroms enfrentados pelos judeus na Europa são conside­rados na pós-modernidade como ferramentas essenciais na formação da identidade cultural. Em suas palavras, esses fenômenos transformam a "desordem em 'comunidades'" (Hall, 2006).

 

Judaísmo é a religião que tem como livro sagrado a Torah, também conhecida como Pentateuco. Este conjunto representa os cinco primeiros livros da bíblia hebraica e cristã. [...] Assim como em outras religiões, o judaísmo não pode ser cientificamente classificado como etnia. O termo torna-se confuso devido à diversidade étnica, que inclui os ashkenazi, originários da Europa Central e Oriental; sefarditas, provenientes da Península Ibérica e do Oriente Médio; mizrahim, representan­do judeus do Oriente Médio e Norte da África, entre outros grupos. Dessa forma, ser judeu não se limita a uma etnia, mas a uma identidade compartilhada que abrange vários aspectos culturais. A relação entre religião e a “etnia” judaica fica ainda mais confuso quando judeus se declaram ateus, pois se o judaísmo é uma religião e não etnia, como podem existir judeus ateus?

Quando alguns judeus se declaram ateus, estão destacando que não seguem as crenças e práticas religiosas associadas ao judaísmo. Eles ainda podem se identificar cultural, historicamente e socialmente como judeus. A identidade judaica pode ser vista como uma combinação complexa de elementos religiosos e cultu­rais, essa diversidade reflete a amplitude da experiência judaica ao longo do tempo e em diferen­tes comunidades. Portanto, a existência de judeus ateus não nega a natureza religiosa do judaísmo, mas destaca a riqueza e a complexidade da identidade judaica além da prática religiosa. [...]

Theodor Herzl é um exemplo de judeu não praticante. Mesmo em sua obra "O Estado Judeu", ele imaginou um território secular para um povo que se identificava por sua herança cultural judaica. Essa consciência levou o jornalista austro-húngaro, apesar de sua abordagem secular, a adotar estrategicamente estruturas que também respeitassem as raízes culturais judaicas, como a promoção do uso do idioma hebraico. [...]

Outros exemplos de judeus não praticantes da religião e até mesmo ateus são: Noam Chomsky, Isaiah Berlin e até Karl Marx[1], todos antissionistas. [...]

 

Semita é uma palavra derivada da expressão bíblica contida em Gênesis e referia-se a linhagem de descendentes de Sem, filho de Noé. O termo tem como principal característica o conjunto linguís­tico compartilhado por povos antigos originárias na sua maioria do Oriente Médio, que inclui o acádio, o amárico, o árabe, o aramaico, o assírio, o hebraico, o maltês e o tigrínia, que compartilham as mesmas origens culturais. Os primeiros sionistas provinham de nações modernas de culturas híbri­das, dessa maneira falavam os idiomas de suas nacionalidades (russo, alemão, francês, ucraniano etc.) e compartilhavam no máximo o uso do iídiche, um idioma não semita. Adotar o hebraico como idioma nacional foi a fórmula encontrada pelos sionistas para reivindicar sua “origem” semita. [...]

 

“Talvez alguém opine que haverá um grande inconveniente em que não tenhamos ainda um idioma comum. Haveremos de falar hebraico?  Quem, entre nós, sabe hebraico suficiente para pedir um bilhete de trem? Não há quem saiba fazê-lo.” (Herzl, 1997)

 

O termo “antissemita” surgiu pela primeira vez no século XIX, cunhada pelo jorna­lista alemão Wilhelm Marr como um eufemismo para o Judenhass (ódio aos judeus). Desde então, o termo passou a ser amplamente associado ao ódio aos seguidores do judaísmo. O sionismo aproveitou essa ambigui­dade linguística para rotular os críticos de sua ideologia como “terroristas antissemitas”. Noam Chomsky, também um linguista e judeu, explica que a palavra “terrorista” pode ser facilmente alternada para “defensor da liber­dade” e de volta para “terrorista” com base na intenção de quem a utiliza.

 

“o termo ‘terrorismo’ é usado para definir atos terroristas cometido por inimigos contra nós americanos ou nossos aliados israelenses. Este uso para propaganda é praticamente universal”.  (Chomsky, 2002) 

 

Sionismo, judaísmo e semitismo, não são sinônimos. Devemos considerar que os palestinos falam o idioma árabe, portanto, são mais do que qualquer outro, um povo semita.


  


 

Mas, não para por aí, e compreendido os conceitos de sionismo, judaísmo e semitismo, aqui precisamos ser mais cirúrgicos e profundos nessa discussão. Dentro da religião judaica, assim como no islamismo e no cristianismo, existem diversas ramificações. No judaísmo, essas variações incluem diferentes correntes de pensamento que se desenvolveram ao longo dos séculos, especialmente entre os séculos XVII e XIX, quando os judeus enfrentavam perseguições por toda a Europa, muito antes da ascensão do nazismo. Cada uma dessas correntes desenvolveu sua própria interpretação do judaísmo e políticas para proteger suas comunidades.

 

Haskalá

A Haskalá, ou iluminismo judaico, emergiu na Alemanha no século XVIII como o primeiro movimento intelectual e cultural judaico, liderado por Moisés Mendelssohn e outros, com o objetivo de renovar tradições científicas e o hebraico, promovendo a integração dos judeus na nova sociedade europeia. A aceitação da Haskalá permitiu uma maior participação pública dos judeus, embora tenha gerado conflitos com o judaísmo ortodoxo. Apesar de relativamente conservadora, a Haskalá foi crucial para o desenvolvimento do nacionalismo judaico e outras ideologias posteriores.


Yiddishismo

O Yiddishismo foi um movimento cultural e linguístico que emergiu no século XIX entre os judeus da Europa Oriental, valorizando o iídiche como central à identidade judaica. Ao contrário do Sionismo, que defendia a criação de um Estado judaico, o Yiddishismo focava na preservação da cultura e identidade judaicas através da língua iídiche, influenciando fortemente a literatura, teatro, música e imprensa judaica do século XX.

 

Sionismo

O Sionismo, liderado por Theodor Herzl, promovia a formação de um Estado Nacional para os judeus na Palestina. Apesar da resistência de grande parte da comunidade judaica, incluindo os ortodoxos e os adeptos da Haskalá e do Yiddishismo, o Primeiro Congresso Sionista em 1897 decidiu pela colonização da Palestina. Embora a maioria dos judeus preferisse emigrar para a América do Norte, os sionistas usaram discursos religiosos para justificar a colonização e implementaram leis para assegurar a substituição da população árabe por uma população judaica.

 

Neturei Karta

O Neturei Karta, um grupo judaico antissionista formado por judeus húngaros e lituanos que se estabeleceram na Palestina no início do século XIX, antes das imigrações sionistas, destacou-se por ajudar a comunidade palestina em Jerusalém. Eles acreditam que a redenção judaica deve ser divina, não realizada pelo sionismo. Com membros em Israel, EUA, Inglaterra e outros países, o grupo se opõe ao sionismo e apoia a libertação da Palestina, alegando que o sionismo contribuiu para o Holocausto nazista. Os rabinos do Neturei Karta consideram o sionismo uma afronta a Deus, violando os Três Juramentos do Talmud, que proibiam os judeus de reivindicar a Terra de Israel à força e de se rebelar contra outras nações.


Judaísmo Haredi

Grupos como o Neturei Karta, parte do judaísmo ortodoxo Haredi sob a liderança de Edah HaChareidis, rejeitam a participação na política e o financiamento estatal de suas instituições. Após a criação de Israel, o judaísmo Haredi se destacou por sua oposição ao sionismo e ao Estado de Israel, não celebrando feriados nacionais como o Yom Ha'Atzmaut (Dia da Independência de Israel). Os Haredi, que não se consideram sionistas, dividem-se em dois grupos: antissionistas, que acreditam que a independência judaica antes da vinda do Messias é um pecado, e não-sionistas, que veem Israel como um Estado sem significado religioso. Esses grupos são minoritários em Israel e não possuem representação significativa devido à Lei de Retorno de 1950, que permite a imigração de qualquer pessoa que declare algum vínculo com o judaísmo ao Estado de Israel, enquanto nega o retorno aos 5,8 milhões de refugiados palestinos.

 


 

 

Mas qual é a relação disso tudo com a prisão do judeu ortodoxo em Israel? A interação gerada pela postagem do Jornal Clandestino mostrou que muitas pessoas ainda confundem conceitos como judaísmo, semitismo, sionismo, e o que significa ser antijudaico, antissemita ou antissionista. Essa confusão é compreensível, dado que o debate é relativamente recente na comunidade brasileira. Apesar de meus esforços para ser o mais didático e conciso possível, sei que ainda sim teremos problemas semânticos, mas, espero que esta contribuição ajude a abrir portas para uma melhor compreensão.


Agora, o ponto central desta discussão é o perigo de generalizações que podem levar a erros graves. Após a prisão em Israel, muitos passaram a acreditar que todos os judeus ortodoxos são antissionistas e, portanto, pró-Palestina. Essa visão é simplista e perigosa. Existem grupos ortodoxos radicais em Israel, como o Kach, fundado pelo rabino ortodoxo Meir Kahane, que promovem a violência, especialmente contra palestinos. Em Hebron, por exemplo, há comunidades ortodoxas conhecidas por ataques violentos contra palestinos.


Por outro lado, na Palestina, há grupos de samaritanos que, embora não se considerem judeus, são antissionistas mais fervorosos que o próprio Neturei Karta. No entanto, pouco se fala sobre essas comunidades, pois são vistas pelos sionistas como palestinas.


Após os eventos de 7 de outubro, ficou claro que a falta de conhecimento prejudica até mesmo os judeus antissionistas em todo o mundo. Sem uma compreensão clara de quem é quem, pessoas identificadas como judias têm sofrido preconceitos, o que pode levar a novos massacres de inocentes. A prisão de um judeu ortodoxo não o torna automaticamente um defensor da Palestina, assim como ser ortodoxo não significa, por si só, nada além de uma identidade religiosa.


Quando rotulamos indivíduos ou grupos inteiros, cometemos o mesmo erro histórico que levou a estigmatizar todos os árabes — incluindo turcos, persas, pashtuns e outras etnias não árabes — como terroristas. Será que é assim que queremos evoluir como sociedade? Rotular judeus ortodoxos ou qualquer outro grupo é um erro perigoso. Colocar todo um grupo acima do bem e do mal é ainda pior, assim como afirmar que todos os palestinos pensam e agem da mesma maneira, sem considerar suas individualidades.


Em resumo, existem ortodoxos bons e maus, palestinos bons e maus, assim como em qualquer grupo humano. Somos todos seres humanos, capazes de empatia, amor, dignidade, mas também de violência, rancor e vingança. Portanto, devemos observar o mundo como ele realmente é e ver as pessoas como elas são: seres humanos, não rótulos. Deixemos os rótulos para os refrigerantes!

 

 


 

 

Notas

 [1] Karl Marx faleceu em 14 de março de 1883, em uma época em que o termo sionista não era popular. Apesar disso, destaca-se que, como filósofo, Marx se opunha vigorosamente a qualquer forma de opressão. A conclusão sugerida no texto é que, com base no posicionamento filosófico geral de Marx pode interpretá-lo como antissionista.


Bibliografia

Berger, M. (2018). Israel’s hugely controversial “nation-state” law, explained. Fonte: Vox: https://www.vox.com/world/2018/7/31/17623978/israel-jewish-nation-state-law-bill-explained-apartheid-netanyahu-democracy

Chomsky, N. (2002). 11 de setembro. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.

Feiner, S. (2019). Towards a Historical Definition of the Haskalah. Liverpool University Press, Liverpool.

Grosfeld, I., Sakalli, S., & Zhuravskaya, E. (2017). Middleman Minorities and Ethnic Violence: Anti-Jewish Pogroms in the Russian Empire. The Review of Economic Studies, London.

Guérin, V. (1880). Description Géographique, Historique Et Archéologique de la Palestine. 

Hall, S. (2006). A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A.

Herzl, T. (1997). O Estado Judeu (Consulado Geral de Israel em São Paulo ed.). São Paulo: Porteiro Editor Digital.

Meir, G. (1976). Minha Vida. Jerusalém: Bloch.

Ribeiro, E. M. (2010). O ORIENTE MÉDIO E O ISLÃ SOB O VIÉS DA MÍDIA. UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO, Rio de Janeiro.

Simons, J. (2021). Divine Violence, Profane Peace: Walter Benjamin, Rabbis for Human Rights, and Peace in Israel-Palestine. Journal of Ecumenical Studies, pp. 363-386.

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