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Foto do escritorClandestino

Um triz

/// Crônica de Camille Borges ///


A realidade só é boa enquanto ela ainda é uma expectativa. Quando um projeto se concretiza, nos despedimos de nossas idealizações e é aí que começamos a conviver com aquela conquista, que parecia mais bonita quando ainda era vista como algo inalcançável. Existe um momento em nossas vidas que realizamos grandes sonhos. Algumas pessoas vivem tempo suficiente para que esse recorte da existência se repita uma série de vezes. Outras não, quem sabe realizem um ou nenhum sonho.


Existe uma linha fina que separa a nossa expectativa do final de tudo. Um triz – e muitas vezes atravessamos esse espaço sem perceber. Cruzamos a linha de partida, dançamos colados à valsa de um quase e aí já é outro dia. É aqui que minha história começa. Eu estava distraída no trânsito, precisando correr para chegar ao aeroporto, mas também estava impotente com o mar de carros que nos afogava na avenida movimentada.


Quando, de repente, tudo era água. O asfalto foi sendo tomado por pequenas ondas, no início parecia lama, depois o mundo foi virando piscina gostosa, queda d'água, cachoeira para a gente se molhar. Me dei por vencida, perderia o voo. Largamos os carros enfileirados, partimos para nossas casas. Convidei Ana para um café. Aparentemente, aquele novo tipo de mundo nos autorizava a falar em plena terça-feira: “- Hoje eu não vou trabalhar”. Paramos de correr, nos encontramos mais vezes.


Naqueles dias, nos divertimos muito, Ana e eu, bailando, com a enchente nos costurando, as águas passeando pelas casas. As ruas viraram grandes tábuas de escorregar. As moradias se transformaram em piscinas com coisas para fazer. Era possível nadar e cozinhar, boiar e adormecer, refrescar-se em dia quente de trabalho, minha parte preferida. Tudo estava mais divertido. O inesperado. A novidade. O sonho. A expectativa.



Até que percebemos que as águas não paravam mais de subir. Os jornais chegavam até nossas casas boiando, anunciando o fim de tudo, o fim dos tempos, o fim do mundo. Aquela seria a próxima cidade enterrada pelas águas. Tudo enterrado. Era isso, estaríamos todos mortos dentro de alguns dias.


Então, em algum momento, quando as águas já ultrapassavam o topo dos prédios, Ana mergulhou e aí percebeu que tinha fôlego infinito. Ficou cara a cara com o novo mundo. Um sonho, que era realidade. Iríamos viver! Era possível respirar embaixo das águas, novamente viver, viver, viver! Ela subiu até a superfície e convidou todos nós para a descida. Parte daquele povo não topou. Lá embaixo a gente nunca olhava para cima. Quem olhasse encontrava a sombra dos corpos boiando. A gente não sabia se eles iriam passar a eternidade deslizando sobre as águas ou se já eram matéria morta, passeando naquele novo formato de cemitério. Eu torcia pela segunda opção. Viver sendo levado de um lado para o outro era coisa ruim de imaginar.


Nem todos se adaptaram a esse novo cenário. Subiram para morar ou morrer na superfície. Debaixo das águas, a vida estava de cabeça para baixo. Os mortos enterrados acima daqueles que estavam vivos. Os vivos vivendo embaixo daqueles que estavam enterrados em cima de nossas existências. Ir ao cemitério perdeu o sentido, o que encontraríamos por lá? Passamos a viver esperando a próxima morte. Como será que foi a primeira morte do mundo? Como descobriram o que significava partir e nunca mais voltar? Como seria um enterro na nossa casa inundada?


Mas eu não, eu não temia a próxima partida. Eu já era íntima da morte. Havia suportado muitas despedidas. Quando perdemos aqueles que importam para nós, parte da gente fica enterrada junto deles. Às vezes enterramos um tiquinho da nossa esperança, velamos um pedacinho dos nossos sonhos, enterramos o desespero. Eu aprendi a não me surpreender. A morte era uma visita indesejada, chegava bagunçando minha casa. Nunca batia na porta, escancarava, era barulhenta, me fazia tremer.


Todos que eu amava morriam do mesmo jeito, sem avisar. Eu nunca pude me preparar. Mas será que existe um jeito de se preparar para a morte? Fui ficando assim, apática, com dificuldade de me despedir de tudo. Uma viagem boa não podia acabar nunca, um pedaço de torta deveria abraçar minhas papilas gustativas para sempre, a virada de um ano bom anunciava a despedida do melhor ano que já vivi. Eu tinha dificuldade com despedidas, uma vez minha analista me disse isso. Parecia que eu me despedia de pessoas com mais facilidade do que de momentos.


O fato é que eu já pensava em morte. Eu vivia qualquer encontro como se fosse o último. Parece uma vida de merda, mas é apenas a vida de quem já perdeu quase todos. Eu lembro que já não fazia novos amigos. Eu acreditava que poderia ser a responsável por tantas partidas, vociferava: “Quanto menos gente conheço, menos despedidas eu vivo”. E me consolava assim.


Sentei-me à mesa para seguir a conversa debaixo das águas. Olhei para a cabeceira, avistei meu tio. Por um instante fiquei confusa, achei que ele já tinha partido. Segurei a mão de Ana e, de repente, éramos uma só. Perguntamos, como se já não pudéssemos segurar nossas línguas: “- Tio, tu sentes falta de estar vivo?”


Ouvi uma buzina ensurdecedora, despertei em sobressalto, olhei para a janela, havia um brilho que ofuscava as cenas que percorriam meus olhos. Pisquei algumas vezes até que percebi, há poucos metros, um corpo estirado no asfalto. Um motoqueiro ao chão, coberto com aquele papel brilhoso, cercado por vidas armadas, armadas de vontade de viver, armadas de fuzil para proteger. Passou rápido, mas eu pensei: para onde ele estaria indo antes daquele triz? Qual era sua história? Para onde estava correndo? Ao seu lado, um legista vasculhava sua carteira, buscava seus cartões, fotografias, documentos, um bilhete recém-utilizado com sua amante no motel, quem sabe, qualquer prova de algo. Quando alguém morre, a privacidade do morto vai embora junto com a sua alma. Após o acidente, o trânsito desafogou e seguimos em frente. Saí dos meus pensamentos, pois estava na hora de encarar a realidade.

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