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Foto do escritorSiqka

Uma panela de Kousa Mahshi em uma breve estadia em Zarqa

Depois da Guerra dos Seis Dias, mais uma vez transferiram meu pai de posto e mais uma vez tivemos que mudar de casa. O exército o enviou para o noroeste de Amã, para a cidade de Zarqa. Não havia instalações militares onde pudéssemos ficar com ele. Inicialmente, fomos morar com a família da minha tia. A casa não era espaçosa o suficiente para abrigar todos nós: meus pais e sete filhos, mais outros dez filhos da família da minha tia. Juntos, conseguíamos transformar dois quartos, uma cozinha e um banheiro do lado de fora em um lar temporário para duas famílias.


Naquele tempo, tudo mudava rapidamente para os palestinos e para os jordanianos. Em Zarqa, não havia oficialmente campos de refugiados, mas os palestinos predominavam na região desde 1967. Boa parte dos jordanianos viviam distantes das grandes cidades, muitos deles em áreas isoladas onde cultivavam suas terras e cuidavam de seus animais, incluindo os majestosos camelos. Para nós, crianças, a vida dos beduínos era fascinante, com suas tendas colorindo o deserto. Enquanto isso, nós, os refugiados palestinos, éramos obrigados a nos aglomerar próximo às áreas urbanas, onde estavam concentrados os serviços de assistência da UNRWA.


Minha tia cedeu um espaço em sua casa, que não era suficiente nem para sua própria família, mas eu até gostava. Nos momentos de oração, nossa pequena república parecia uma mesquita lotada. Tudo o que fazíamos era feito em grupo e não havia espaço para individualidades, principalmente em nossos hábitos alimentares.


Certa vez, as mulheres de casa decidiram embarcar numa jornada culinária em direção às raízes da nossa tradição: a elaboração do Kousa (abobrinhas) Mahshi (recheadas), um dos pratos mais famosos no Oriente Médio. A beleza desse prato, além, é claro, de seu sabor indescritível, está justamente na devoção de seu preparo; se alguém te preparar um prato desses durante sua estadia no Oriente Médio, saiba que seu anfitrião está feliz com sua visita, pois, sinceramente, é um dos pratos mais demorados e difíceis de se fazer. Este foi o motivo de escolhermos justamente esse prato em respeito à família que com tanto carinho nos acolheu, como um agradecimento por toda sua solidariedade para conosco.


Com uma faca afiada e movimentos cuidadosos, eu cortava as pontas das abobrinhas, enquanto, com uma colher pequena, retirava suas entranhas com uma calma quase religiosa. Cada gesto era um tributo à yama, zelando para não danificar as abobrinhas e evitar despertar a ira das cozinheiras. Enquanto isso, minhas irmãs preparavam o recheio com carne moída, arroz, cebola e uma combinação de pimenta-do-reino, sete temperos e uma pitada de especiarias encantadas, cujo sabor e aroma nos transportavam para os jardins mágicos da Palestina.


Após ter os ingredientes harmoniosamente misturados, começamos a rechear as abobrinhas. Entre risadas e compartilhamento de histórias, nos dedicamos horas a fio a essa tarefa, afastando os curiosos esfomeados que rondavam. Uma vez recheadas, as abobrinhas foram delicadamente banhadas com molho de tomate fresco e hortelã;


O kousa mahshi, transcendia a mera arte culinária; era uma celebração da nossa unidade familiar, um ritual de transmissão de afeto e cuidado mútuo. Para mim, preparar as abobrinhas e rechear uma por uma era mais do que uma experiência culinária; era uma jornada de aprendizado, crescimento e, acima de tudo, um teste de paciência.


No centro da sala, minhas irmãs estenderam os tecidos pelo chão e depositaram cuidadosamente a grande qidr de kousa mahshi. Yama, com sua autoridade materno-general, decretou que todos lavassem as mãos antes de se sentarem para o jantar.


Apesar de toda a preparação meticulosa, eu já não tinha mais apetite para abobrinhas. Passei horas retirando o recheio das abobrinhas, preenchendo abobrinhas com outros ingredientes, sentindo o cheiro das abobrinhas; foi um dia inteiro ali na cozinha com as abobrinhas, minhas irmãs e as abobrinhas delas. Eu só queria comer logo e me livrar daquilo.


Eu aguardava ansiosamente diante da imensa panela repousada no chão, esperando que os famintos chegassem logo para matar o que estava me matando. Passei o dia sendo torturada com aquele cheiro sem poder comer sequer uma das menores abobrinhas que fosse. O primeiro a aparecer foi meu irmão Nidal, sempre o primeiro a se servir e também o primeiro a encontrar uma forma de perturbar minha paz. Ao passar por trás de mim, Nidal puxou meu cabelo, provocando-me. Era impressionante como nessas horas ninguém percebia, somente quando eu reagia às provocações é que eu era vista. Ergui-me para dar uma surra nele antes que yama me visse. No ímpeto de fugir, ele circulou a tigela, quase a alcançando, mas, ao tentar saltar sobre ela, acabou por tropeçar e mergulhar seu pé no kousa mahshi fumegante, esmagando as abobrinhas e, ainda por cima, queimando-se molho escaldante; lá se foi todo um dia de trabalho duro.


Enquanto ele abria o berreiro, os raios que saltavam dos olhos de yama se encontraram com os meus. Temendo as consequências de mais um incidente à mesa, minha alma fugiu do corpo e me deixou sozinha para sofrer as consequências.

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